Fonte: Terra (aqui)
Não consigo respirar!*
Renata Souza**
Não consigo respirar. O
que me impede de respirar neste momento não é a insuficiência respiratória
causada pela Covid-19. Não consigo respirar diante de tantas notícias de morte
de pessoas negras de forma cruel e executória. Não consigo respirar porque mal
termino de ficar em choque com uma morte cruel, ou treze, e outras mais cruéis
ainda acontecem. Não consigo respirar, porque cada dia um dos nossos é morto de
forma violenta, vítimas de um sistema racista e desumano.
Vivemos
em uma sociedade que nos impede de respirar e, consequentemente, de existir.
Uma sociedade que, historicamente, colocou os negros em uma situação de
subalternidade. Que coisificou, vilipendiou, massacrou e sufocou a nós negros e
negras. Uma sociedade da hierarquia e do privilégio branco.
A
abolição da escravidão, as conquistas cidadãs, o avançar do tempo, da
tecnologia e dos modos de vida trouxeram poucas mudanças para a construção do
negro no imaginário social. Tanto no Brasil quanto em outros países que, em seu
passado, adotaram a escravidão como forma de relação de produção. Uma vez que,
o que vemos diariamente é a coisificação, a execução sumária e a chacina de
pessoas negras. O que vou chamar aqui de "negrocídio", isto é, a
morte de pessoas negras, simplesmente por elas serem negras.
A
pandemia, por si só, já traz motivos que nos impedem de respirar de forma
adequada, seja no sentido denotativo, pelo contágio da Covid-19 ou pelo uso de
máscaras. Seja no sentido conotativo, por estarmos há mais de 80 dias
“trancados” em nossas residências, para quem tem uma. Entretanto, as
mortes de pessoas negras de forma brutal, que, nas últimas semanas, vêm sendo
noticiadas, tanto no Brasil quanto no EUA, são apenas uma pequena parcela de
mortes da população negra que conseguiu romper o espiral de naturalidade e o
estado de letargia que sempre vivemos em relação ao negrocídio.
Quantos
homens e mulheres negros são silenciados, sufocados, asfixiados diariamente no
Brasil, vítimas do racismo estatal, e sequer ficamos sabendo. Quantos pretos,
que já são considerados invisíveis em vida, permanecem assim em sua
morte. Os quais nem seus familiares têm a oportunidade de velar porque o
corpo sumiu. Uma vez que, a lógica "sem corpo sem crime" é uma velha
conhecida das instituições que deveriam servir e proteger. Isso para falar da
face mais visível e cruel da violência contra o povo negro. A violência
estatal, que encontra nas forças de segurança a personificação da mão, nada
invisível, que aperta o gatilho.
O
silenciamento do povo negro não se dá só nessas infelizes tragédias que estamos
vendo nas últimas semanas. A morte do americano George Floyd desencadeou uma
comoção internacional. Que penso ser justa, digna e legítima. Mas só pra avisar
que, aqui, abaixo da linha do equador, todos os dias um preto é morto de forma
cruel. O racismo, aqui no país tropical, existe e mata com tanta ou mais
crueldade que os agentes públicos americanos. Que corpos pretos são
sentenciados diariamente na fila do SUS, na cozinha da madame, nas unidades de
socioeducação, na escola pública, nas cadeias, etc. O negro aqui serve pra
tudo! Menos para ser respeitado.
Até
quando não vamos conseguir respirar? Até quando nossa vida vai valer menos? Até
quando a polícia vai achar que eu sou suspeita? Até quando eu vou servir apenas
para fornicar? Até quando a hipocrisia vai reinar? Até quando eu vou ter que me
calar? Até quando...
*
Publicado originalmente em Ururau Jornal Online (aqui).
**
Professora de Sociologia da Educação Básica, Mestre em Sociologia Política, Pesquisadora
do Núcleo Cidade, Cultura e Conflito e Doutoranda em Sociologia Política na
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).
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