sexta-feira, 26 de junho de 2020

Lya Luft e o voto bolsonarista

Lya Luft e o voto bolsonarista[1].
Paulo Baía[2]
 


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O voto é uma relação de "Troca Assimétrica", movida por afetos e cognição, no estrito sentido do significado das palavras afeto e cognição.

Afeto como a disposição de alguém por alguma coisa, seja positiva ou negativa, e cognição como a capacidade de processar informações e transformá-las em conhecimento, com base em um conjunto de habilidades como a percepção, a atenção, a associação, a imaginação, o juízo, o raciocínio e a memória.

O voto tem uma racionalidade na escolha, o eleitor faz um balanço de perdas e ganhos, uma avaliação de benefícios e custos de sua ação eleitoral.

A escolha nessa "Troca Assimétrica" sempre é mais vantajosa para o candidato do que para o eleitor.

O eleitor, por seus afetos e cognição, centra sua escolha na sua própria história de vida e de sua malha de sociabilidade.

Mesmos os votos mais altruístas, movidos por "Causas", são enredados em um convívio de afetos e cognições do "mundo visível e experimentado" pelo eleitor.

O candidato fala e se expõe sempre de maneira "segmentada" ou "individualizada" para captar a decisão do eleitor.

O candidato faz um processo de "sedução" do eleitor, fazendo com que o eleitor troque seu voto ou por adesão ao candidato ou por repúdio aos demais candidatos, sem que necessariamente haja adesão ao candidato escolhido.

A racionalidade da escolha eleitoral é sazonal, raramente estruturada e atemporal.

O momento do voto, seu tempo e espaço, são os vetores de motivação afetiva e cognitiva para uma escolha assimétrica, que sempre traz consequências positivas ou negativas para o autor da escolha.

Assim foi com Lya Luft, que não é uma ressentida, desencantada, desalentada.

É uma mulher forte, sabe o que quer e é determinada.

Vanguardista em sua geração, mulher libertária no campo profissional e existencial.

Extremamente culta e com elevado nível de escolarização, já possuia um mestrado em linguística em 1975 e outro em literatura brasileira em 1978, época em que muito poucos tinham o título de mestre no Brasil.

Leitora de Friedrich Schiller, poeta, filósofo, médico e historiador alemão.

Leitora de Johann Wolfgang von Goethe, Santo Tomás de Aquino e Jean Paul Sartre.

Professora notável na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi inovadora e pioneira dos primeiros cursos de pós-graduação no país.

Tradutora ousada, colocou em língua portuguesa Virgínia Woolf, Thomas Mann, Herman Hesse e muitos outros.

Como escritora tem destaque com "As coisas humanas", " Pensar é transgredir" e "Quarto fechado", que são mergulhos na alma humana.

Foi uma combatente contra a ditadura vinculada ao grupo de intelectuais/psicanalistas de Hélio Pelegrino, denunciando torturadores da área médica, psiquiatra e psicanalista que atuaram na ditadura brasileira a partir de 1964.

No Rio de Janeiro, participou das primeiras e históricas campanhas eleitorais do PT para o governo do estado com Lysâneas Maciel para governador e Vladimir Palmeira para o senado em 1982.

Em 1985 fez a campanha do desconhecido Wilson Farias do PT, tendo como vice a socióloga Miriam Limoeiro Cardoso, para a prefeitura do Rio de Janeiro, mesmo sendo amiga de Saturnino Braga do PDT e Marcelo Cerqueira do PSB, também candidatos.

O voto de Lya Luft, mesmo como escolha individual, tem significado público, é simbólico em termos políticos e sociológicos.

Representa a ambiência de afetos e cognição de um momento temporal de 57 milhões de brasileiros.

Não sabia que Lya Luft tinha votado em Jair Bolsonaro; se alguém me contasse, eu não acreditaria.

Soube com a entrevista da própria declarando seu arrependimento.

Por que votou? De acordo com seu relato, fez uma escolha assimétrica movida pela rejeição aos demais candidatos, em função de suas experiências de vida em relação aos competidores.

Escolheu não ganhar muito ou quase nada a ter que perder, na sua avaliação afetiva e cognitiva, com a vitória dos demais candidatos.

Com a escolha de Jair Bolsonaro, Lya Luft materializou seus afetos e cognições no segundo semestre de 2018.

O arrependimento público em junho de 2020 mostra outro momento de afetos e cognição. Lya Luft percebeu, por sua vivência no cotidiano do governo Jair Bolsonaro desde janeiro de 2019, que sua escolha eleitoral lhe trouxe perdas, perdas grandes e significativas, em vez de ganhos pequenos ou não ganhos. 

O voto de Lya Luft torna-se um "Voto Desvio Padrão" para se compreender a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro.

Como "Troca Assimétrica" , como uma racionalidade eleitoral em que todos ganham - os eleitores pouco e menos que o candidato - a votação de 57 milhões de votantes bolsonaristas está revelando que a "Assimetria" foi muito maior. O eleitor está descobrindo que, não só não ganhou nada com a rejeição aos demais candidatos, como efetivamente está perdendo com sua escolha em 2018.

O "Voto Lya Luft" foi um padrão, que pode explicar a escolha de Jair Bolsonaro pela rejeição, como um decisão de racionalidade política da maioria dos votantes em Bolsonaro. Essa mesma racionalidade está a promover "Arrependimentos", pois a lógica da "Troca Assimétrica" foi rompida com as perdas e com um "custo" que é imensamente alto e sem benefícios.

O "Arrependimento Público de Lya Luft" pode vir a se tornar um fenômeno coletivo para a maior parte dos 57 milhões de eleitores.

Creio que o voto "Lya Luft" explica, como padrão, a enorme escolha por Jair Bolsonaro nas regiões Sul e Sudeste do país.

O "Arrependimento" é um mecanismo psíquico, social e político que vem com a admissão pelo indivíduo de uma nova realidade em sua vida.

É um desprendimento com as amarras de um passado próximo ou distante, um ato de libertação, de arrojo pessoal ou coletivo.

O arrependimento de Lya Luft, para mim é muito bem-vindo, e basta para tê-la como aliada na luta contra o neofascismo do governo Bolsonaro.

Nessa questão eu estou sintonizado com Renato Janine Ribeiro, Sergio Abranches, Jose Alvaro Moises, Marcos Nobre e Bolívar Lamounier.

O "Voto Lya Luft" descortinou uma linha nova para entender o voto bolsonarista em 2018.

Não foi um voto de "toscos" e "imbecilizados", foi uma escolha feita preferencialmente pela "não escolha" aos demais candidatos.

Uma tomada de decisão dramática, contraditória, com subjetividades afetivas e cognitivas complexas, com dúvidas e incertezas no voto. 

Sem estigmatizar eleitores de Jair Bolsonaro , sem "a prioris" morais condenatórios, com técnicas sociológicas e políticas, podemos decifrar o voto de Lya Luft e compreender pelo menos 30 milhões dos 57 milhões de votos em Jair Bolsonaro, nas principais cidades das regiões Sul e Sudeste do Brasil.

Nas demais regiões e na maioria das cidades do interior de São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul temos outras variáveis de entendimento em que a "Idéia Projétil" de Jair Bolsonaro é protagonista das escolhas. Nessas os eleitores estão tendo "ganhos" com o voto em Jair Bolsonaro.



* "Woman with book" - Pablo Picasso - Disponível em: https://gr.pinterest.com/pin/421931058816494367/ (acesso em 26 de junho de 2020).

[1] Texto republicado com a autorização do autor. Post originalmente disponível em: https://www.facebook.com/paulorsbaia.baia/posts/4208907562515317  (acesso em 26 de junho de 2020)


[2] Sociólogo e Cientista Político. Professor da UFRJ.




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