Campos dos Goytacazes é uma cidade com
cerca de 500 mil habitantes. Estamos a aproximadamente 280km do Rio de Janeiro
e a 250km de Vitória, situados praticamente no meio do caminho entre as duas
capitais – precisando de 4 horas para alcançar uma cidade ou outra. São Paulo
está muito longe e Brasília nem se fala. As grandes cidades do Nordeste são uma
realidade distante, o Norte parece inatingível e o Sul assemelha-se a um outro
país. “Estamos longe demais das capitais”. Talvez por isso tenhamos uma falsa sensação
de isolamento.
Quando chegaram as primeiras notícias sobre
o coronavírus, lá no final de 2019, aquilo não parecia um problema nosso – não
era uma questão brasileira e tampouco campista. Aos poucos, a epidemia foi se
alastrando pelo mundo e ganhando notoriedade até o momento em que foi alçada à
categoria de pandemia. Àquela altura, ainda assim para muitos o problema
parecia distante: uma triste situação vivenciada pela Itália – uma tragédia
humanitária que obrigava toda uma população a se trancar em suas casas. Os
noticiários indicavam 500, 700 ou mais de 800 mortes italianas diárias. O vírus
já causava estrago na França, ameaçava a poderosa Alemanha e encurralava a
Inglaterra. A crise atravessou o Atlântico e a cidade que nunca dorme foi
obrigada a ficar acordada com suas ruas vazias.
O vírus começou a se espalhar no Brasil,
mas por aqui haveria de ser diferente. “Deus é brasileiro e o nosso povo é
forte”. O vírus fez sua primeira vítima, em São Paulo. Apenas 1 e tão longe,
“por que vamos alterar nossas vidas?”. As vidas já estavam alteradas. A
recomendação de isolamento social já era imperativa e muitas atividades foram
suspensas. As ruas perderam movimento e a ameaça distante já estava próxima. A
proximidade não deveria assustar, o presidente da república, cada vez mais em
letras minúsculas, argumentava que apenas as pessoas do “grupo de risco”
deveriam se preocupar, pois era apenas uma gripezinha. A promessa era leviana e
torta: preservar vidas e manter empregos. Como já tinha virado costume, mais uma
vez o Brasil criou uma lente polarizada para interpretar os eventos. Se você
defendesse a importância do isolamento social, seria taxado de comunista; se
falasse que era necessário preservar empregos, seria um bolsonarista. A falsa dicotomia
estava estabelecida e bolsonaro mais uma vez venceu impondo argumentos falsos e
vazios. Esquivou-se de suas responsabilidades. Estabeleceu um auxílio
emergencial insuficiente para manter os trabalhadores informais – propôs R$200,
mas o congresso impôs que fossem R$600. O presidente posou de virtuoso e
generoso por tamanho auxílio, tratando de varrer para debaixo do tapete a
proposta miserável de seu governo. Não criou uma política ativa de preservação
de empregos e não estabeleceu planos para salvar pequenas e médias empresas. Em
uma reunião ministerial que tornou-se pública, o ministro da economia
verbalizou sinteticamente todo seu desprezo pelos pequenos empresários
brasileiros – mas nada disso conseguiu
abalar a fé cega de uns 30% da população que mantem-se, até o presente, como
arautos da ignorância e da irracionalidade. O presidente lançou a
responsabilidade sobre governadores e prefeitos. Com isso abafou todas as suas
falhas e continuou a negar o avanço de uma doença que flagelava a população
brasileira.
Campos, em um momento de pura inspiração,
foi equiparada a Milão e Nova Iorque. Em um típico caso de vertigem de baixa
altura, foi lançado na planície do Solar e da Senzala o mesmo slogan, adaptado,
que meses antes tinha sido apresentado na Itália e nos EUA: “Lockdown Não.
Campos não pode parar”. Culparam o Prefeito, que seguiu as recomendações das
instituições de pesquisa científica e da OMS, pelos prejuízos econômicos no
comércio da cidade e pelo crescente desemprego. Nenhuma culpa foi atribuída ao
presidente por sua falta de atitude na criação de medidas para a Economia.
Prefeitos e Governadores do país, quando a
quarentena aproximava-se de seu terceiro mês, pressionados e enfraquecidos
politica e economicamente, resolveram flexibilizar as regras de isolamento sem
que houvesse redução nas quantidades de casos e de mortes diárias. A
quarentena, desacreditada e desestimulada pelo presidente da republica, nunca
atingiu os resultados esperados. Com isso, a epidemia só fez recrudescer –
ampliando não apenas a tragédia humanitária, mas degradando cada vez mais
nossas fracas bases econômicas. A crise, que poderia ter durado entre 3 e 5
meses, parece se desdobrar no tempo e no espaço. Não há previsão de quando isso
vai acabar e nem os rincões mais distantes do país estão em segurança.
E não é só isso. Quanto mais a crise se
desdobra, mais ela se aproxima de nós. Continuamos longe demais das capitais,
mas agora temos um vírus em nossas ruas. As pessoas contaminadas, que antes não
falavam português e que depois passaram apenas a ter outros sotaques, agora são
nossas conterrâneas e se referem ao coronavírus como “vírus cabrunco” ou “vírus
lamparão”. E na medida em que as restrições de movimentação são reduzidas, os
números de casos diários se multiplicam. Já passamos de mil casos e o número de
casos diários, atualmente, já supera o número de casos registrados ao longo das
primeiras semanas da pandemia por aqui. Os doentes agora não possuem apenas
histórias, eles possuem histórias conhecidas, pois seus semblantes também são
conhecidos. Boa parte de nós, hoje, conhece alguém que já teve a doença – ou
mesmo alguém que já perdeu a vida para a doença. O problema estava na China,
chegou na Europa, alcançou os Estados Unidos e viajou ao sul para desembarcar
em São Paulo, no Rio e, depois, em nossa cidade. As vítimas que eram
estrangeiras, tornaram-se compatriotas e agora são conterrâneas. O que estava
longe, chegou em nossa cidade, faz parte da vizinhança e, se já não o fez,
poderá em breve atingir nossas famílias. E o mais triste é saber que nem a
tragédia será capaz de abalar os discursos obtusos e os argumentos mentecaptos
que contaminaram nosso povo.
Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.
* Publicado no site do Jornal Folha da Manhã em 13 de Junho de 2020.
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