sábado, 20 de junho de 2020

Os semblantes conhecidos*


Campos dos Goytacazes é uma cidade com cerca de 500 mil habitantes. Estamos a aproximadamente 280km do Rio de Janeiro e a 250km de Vitória, situados praticamente no meio do caminho entre as duas capitais – precisando de 4 horas para alcançar uma cidade ou outra. São Paulo está muito longe e Brasília nem se fala. As grandes cidades do Nordeste são uma realidade distante, o Norte parece inatingível e o Sul assemelha-se a um outro país. “Estamos longe demais das capitais”. Talvez por isso tenhamos uma falsa sensação de isolamento.
Quando chegaram as primeiras notícias sobre o coronavírus, lá no final de 2019, aquilo não parecia um problema nosso – não era uma questão brasileira e tampouco campista. Aos poucos, a epidemia foi se alastrando pelo mundo e ganhando notoriedade até o momento em que foi alçada à categoria de pandemia. Àquela altura, ainda assim para muitos o problema parecia distante: uma triste situação vivenciada pela Itália – uma tragédia humanitária que obrigava toda uma população a se trancar em suas casas. Os noticiários indicavam 500, 700 ou mais de 800 mortes italianas diárias. O vírus já causava estrago na França, ameaçava a poderosa Alemanha e encurralava a Inglaterra. A crise atravessou o Atlântico e a cidade que nunca dorme foi obrigada a ficar acordada com suas ruas vazias.
O vírus começou a se espalhar no Brasil, mas por aqui haveria de ser diferente. “Deus é brasileiro e o nosso povo é forte”. O vírus fez sua primeira vítima, em São Paulo. Apenas 1 e tão longe, “por que vamos alterar nossas vidas?”. As vidas já estavam alteradas. A recomendação de isolamento social já era imperativa e muitas atividades foram suspensas. As ruas perderam movimento e a ameaça distante já estava próxima. A proximidade não deveria assustar, o presidente da república, cada vez mais em letras minúsculas, argumentava que apenas as pessoas do “grupo de risco” deveriam se preocupar, pois era apenas uma gripezinha. A promessa era leviana e torta: preservar vidas e manter empregos. Como já tinha virado costume, mais uma vez o Brasil criou uma lente polarizada para interpretar os eventos. Se você defendesse a importância do isolamento social, seria taxado de comunista; se falasse que era necessário preservar empregos, seria um bolsonarista. A falsa dicotomia estava estabelecida e bolsonaro mais uma vez venceu impondo argumentos falsos e vazios. Esquivou-se de suas responsabilidades. Estabeleceu um auxílio emergencial insuficiente para manter os trabalhadores informais – propôs R$200, mas o congresso impôs que fossem R$600. O presidente posou de virtuoso e generoso por tamanho auxílio, tratando de varrer para debaixo do tapete a proposta miserável de seu governo. Não criou uma política ativa de preservação de empregos e não estabeleceu planos para salvar pequenas e médias empresas. Em uma reunião ministerial que tornou-se pública, o ministro da economia verbalizou sinteticamente todo seu desprezo pelos pequenos empresários brasileiros – mas nada disso  conseguiu abalar a fé cega de uns 30% da população que mantem-se, até o presente, como arautos da ignorância e da irracionalidade. O presidente lançou a responsabilidade sobre governadores e prefeitos. Com isso abafou todas as suas falhas e continuou a negar o avanço de uma doença que flagelava a população brasileira.
Campos, em um momento de pura inspiração, foi equiparada a Milão e Nova Iorque. Em um típico caso de vertigem de baixa altura, foi lançado na planície do Solar e da Senzala o mesmo slogan, adaptado, que meses antes tinha sido apresentado na Itália e nos EUA: “Lockdown Não. Campos não pode parar”. Culparam o Prefeito, que seguiu as recomendações das instituições de pesquisa científica e da OMS, pelos prejuízos econômicos no comércio da cidade e pelo crescente desemprego. Nenhuma culpa foi atribuída ao presidente por sua falta de atitude na criação de medidas para a Economia.
Prefeitos e Governadores do país, quando a quarentena aproximava-se de seu terceiro mês, pressionados e enfraquecidos politica e economicamente, resolveram flexibilizar as regras de isolamento sem que houvesse redução nas quantidades de casos e de mortes diárias. A quarentena, desacreditada e desestimulada pelo presidente da republica, nunca atingiu os resultados esperados. Com isso, a epidemia só fez recrudescer – ampliando não apenas a tragédia humanitária, mas degradando cada vez mais nossas fracas bases econômicas. A crise, que poderia ter durado entre 3 e 5 meses, parece se desdobrar no tempo e no espaço. Não há previsão de quando isso vai acabar e nem os rincões mais distantes do país estão em segurança.
E não é só isso. Quanto mais a crise se desdobra, mais ela se aproxima de nós. Continuamos longe demais das capitais, mas agora temos um vírus em nossas ruas. As pessoas contaminadas, que antes não falavam português e que depois passaram apenas a ter outros sotaques, agora são nossas conterrâneas e se referem ao coronavírus como “vírus cabrunco” ou “vírus lamparão”. E na medida em que as restrições de movimentação são reduzidas, os números de casos diários se multiplicam. Já passamos de mil casos e o número de casos diários, atualmente, já supera o número de casos registrados ao longo das primeiras semanas da pandemia por aqui. Os doentes agora não possuem apenas histórias, eles possuem histórias conhecidas, pois seus semblantes também são conhecidos. Boa parte de nós, hoje, conhece alguém que já teve a doença – ou mesmo alguém que já perdeu a vida para a doença. O problema estava na China, chegou na Europa, alcançou os Estados Unidos e viajou ao sul para desembarcar em São Paulo, no Rio e, depois, em nossa cidade. As vítimas que eram estrangeiras, tornaram-se compatriotas e agora são conterrâneas. O que estava longe, chegou em nossa cidade, faz parte da vizinhança e, se já não o fez, poderá em breve atingir nossas famílias. E o mais triste é saber que nem a tragédia será capaz de abalar os discursos obtusos e os argumentos mentecaptos que contaminaram nosso povo.

Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.

* Publicado no site do Jornal Folha da Manhã em 13 de Junho de 2020.

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