sábado, 8 de outubro de 2022

Religião e política: o assunto que não vai calar - Esther Alferino

 

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Religião e política: o assunto que não vai calar **


Esther Alferino ***

 

Entrei no mestrado em 2018, ano de eleição, até então a mais triste eleição da minha vida.

Eu pesquisei a trajetória do pastor Silas Malafaia no mestrado.

Eu vivi a História sendo feita nos próximos anos enquanto analisava tudo sociológica e politicamente. Eu quase sucumbi.Ter que analisar o bolsonarismo (não apenas, mas também) foi muito difícil pra mim enquanto indivíduo.

Antes disso eu já estava debruçada sobre os pentecostais e a política, não apenas eleitoral, mas também.

Posso falar sobre algumas coisas que aprendi com isso, enquanto mulher de esquerda do interior de família crente e também enquanto cientista social.

Não teve uma só vez que eu fosse falar sobre minha pesquisa que alguém não tenha me perguntado como consigo entrar nesse meio de pessoas tão "bitoladas".

Nós do campo progressista, em particular nós, os altamente escolarizados, infantilizamos, chamamos de burros e bitolados pessoas que não temos a menor habilidade para dialogar.

Nossa incapacidade de dialogar com o povo ridiculariza o outro. Estou falando no plural, me incluindo, apesar de ter sido criada crente pobre no interior e conhecendo de dentro a realidade dos protestantes brasileiros.

As pessoas da igreja são sujeitos de desejos, ambições e sonhos, como eu, você e seu tiozão do ZAP que nunca pisou em uma igreja crente mas repete as mesmas fake news sobre bebê não binário e igreja luciferina.

Ri de quem é dizimista enquanto paga por uma consulta xamânica com um branco fantasiado.

O padre fake não é o único absurdo de religiosidade diante de nós.

Nossa incapacidade de dialogar com o povo, com nossa síndrome de superioridade diante dos que vão ao culto, dão ofertas, é tão sintomática e problemática como o senso de superioridade de quem não gosta de futebol no país do futebol. Não entendeu nada.

Não conseguir compreender as razões práticas e subjetivas dos evangélicos pode nos custar outra eleição.

Não tem nada a ver com "a igreja chegar onde o Estado não chega", tem a ver com o nosso descolamento da realidade do povo. As pautas morais e as fake news vão vencer de novo e não se trata de virar crente nem católico da renovação carismática.

Educação política também é sobre isso.

Pelos idos de 2014 a pastora Ana Paula Valadão fez profecias sobre ter chegado o tempo dos evangélicos entrarem na política. Ela foi chamada de "muito louca" por determinado blogueiro progressista.

Há um plano de poder para o país, um plano que inclui todas as esferas, e até agora esse plano tem sido muito bem sucedido em sua empreitada.

Bancada evangélica, muitos legisladores católicos alinhados às mesmas pautas morais, a demanda por um ministro do STF "terrivelmente evangélico". Nada disso começou ontem.

Durante os governos do PT as igrejas cresceram e muito. Em particular as pentecostais alinhadas à Teologia da Prosperidade. Edir Macedo já fez campanha pro Lula.

Um governo que garantisse liberdade religiosa e a tão sonhada prosperidade material não são suficientes para o plano de poder de grandes lideranças religiosas.

Silas Malafaia afirma com todas as letras que crente é cidadão, e que portanto não apenas pode, como deve, exercer um papel ativo na vida pública. Tomar os espaços. Disputar as consciências. Ocupar cargos.

As pautas morais, ainda que nascidas e firmadas em fake news, foram o caminho da disputa de consciências. E eles estão vencendo. Eles já consolidaram parte importantíssima do plano de poder. Veja bem o Congresso, o Senado e as casas legislativas estaduais.

O fiel e a fiel comum, que estão de joelho no chão clamando pra que os filhos voltem vivos para casa, estão atravessados e afetados por quem os ampara. Não é fruto de bitolamento, nós somos parte do que nos cerca também.

Existe um "terrorismo gospel" (com licença da expressão exagerada), e as pautas sobre Deus, pátria e família são o grande apelo.

Distinguir o fiel genuíno de um líder poderoso é necessário pra não cairmos no maniqueísmo raso de "bons e maus".

Não penso em dar diagnóstico, mas penso que a reflexão sobre por que na disputa pelas consciências quem afeta é o líder espiritual e não a vida material (que só piorou nos últimos 4 anos) é urgente.

*  Expulsion of the Money-changers from the Temple, pintura de Giotto Di Bondone, circa 1304. Disponível emhttps://www.wga.hu/html_m/g/giotto/padova/3christ/chris111.html, acesso em 08 de out. de 2022.

** Publicado originalmente nas redes sociais da autora em duas partes. Reproduzimos aqui com a autorização de Esther.

*** Cientista Social pela Universidade Federal Fluminense, Mestre em Sociologia pela Universidade Estadual do Norte do Fluminense e Doutoranda pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

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