domingo, 23 de outubro de 2016

O amor na alta modernidade

O amor na alta modernidade *

George Gomes Coutinho **

Peço licença ao editor para sair da seara dos processos de tomada de decisão sem abandonar a reflexão sobre as mudanças que ocorrem em nossos tempos. A política é das manifestações mais evidentes, tal como a economia, de que o mundo que conhecemos no século XX desmoronou. Mas, há outras formas mais sutis para pensarmos essas mesmas mudanças. Uma delas é justamente a esfera das relações íntimas.

O leitor menos próximo das trincheiras onde decidi fincar bandeira pode perguntar com ares de perplexidade: o que sociólogos em particular ou cientistas sociais em geral podem dizer sobre o amor? A resposta soa desconcertante. As relações afetivas são objeto de pesquisa, ensaios e produções diversas há muito na sociologia. São espaços onde se estruturam, de forma prática e em narrativas, formas de convivência que redundam tanto na reprodução humana quanto em maneiras de conviver.  Flertes, namoros, casamentos, amantes, dizem muito sobre o nosso processo civilizatório. Cada período apresenta os seus próprios critérios de legitimidade tal como ocultam e reprimem outros formatos.  Afinal, desde sempre há o “amor que ousa dizer seu nome” e circula nas catacumbas da esfera pública.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman em sua série liquida sobre a sociedade observa com certo ceticismo saudoso o status adquirido pelas relações afetivas no atual momento. Bauman argumenta que o caráter demasiado efêmero adotado pelo amor hoje mantém afinidades com as práticas de consumo. Tudo é descartável, o que inclui os seres humanos. Desta maneira, os nossos amantes não duram mais que uma estação. As raízes não se estabelecem e o vazio afetivo viceja.

Eu sou menos nostálgico que Bauman. Talvez na faceta contemporânea do amor onde “tudo que é sólido se desmancha no ar” esteja a possibilidade de sairmos dos últimos resquícios ossificados da tradição e do imaginário trágico shakespeareano. Um cenário onde indivíduos independentes e livres se relacionam pelos sentimentos em si e por nenhuma outra razão. Que valha a adaptação que fiz de Étienne de La Boétie: “Porque era eu, porque eras tu” e nada mais.


* Texto publicado no jornal Folha da Manhã em 22 de outubro de 2016

**Professor de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

4 comentários:

  1. Grande professor. Mas a pergunta é: o que faz um sociólogo se aventurar pela esfera do amor, algo tão mais complexo que a política e a economia? Resposta (sugerida) em outra pergunta: será o amor? Grande abraço.

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    1. Grande Joel!

      Meu caro, são duas questões... Vou tentar responder...

      Primeiramente, como já disse Chico Buarque adaptando Cole Porter: "os cidadãos do Japão fazem. Lá na China um bilhão fazem...". Neste sentido, sabemos bem que sociólogos são de carne e osso e não estão imunes a qualquer sentimento humano, ainda mais o amor. Mesmo o conceito de intelligentzia de Mannheim não nos livraria desta condição. Mas, não sei se é preciso estar sob os efeitos desta liga poderosa que chamamos amor romântico para pensar a respeito.
      Como apresentei no texto, as relações amorosas são relações sociais como todas as outras, resguardando as especificidades.. Também são essencialmente modernas. O amor romântico tal como conhecemos é uma invenção recente, algo desconcertante para quem naturaliza este tipo de sentimento. Falamos de uma narrativa onde o amor eros se torna protagonista, não desconsiderando a importância do amor ágape ou philia.
      Falando sobre a produção da área, sempre me ocorre "A filosofia do amor" de Simmel. Também há "As transformações da intimidade" de Giddens e "O amor como sistema" de Luhmann. De forma indireta penso que "A dominação masculina" de Bourdieu ajuda a pensar o tema.

      Por fim, claro, estando sob os efeitos do amor, seja curando-se de uma ressaca, vivendo o luto existencial da perda, ou pura e simplesmente apaixonado, torna a reflexão mais saborosa ou simplesmente terapêutica. :)

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  2. Sugiro a leitura (com a suspeição de amor fraternal) da tese de mestrado de meu irmão sobre mercado matrimonial e suas implicações raciais e de classe.

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  3. Realmente não sabia do tema do Rômulo.. Inclusive digo sem medo de errar que foi dos melhores alunos que tive em sala de aula na graduação..

    Sobre se vc estaria "pesando a mão" pelo sentimento fraternal, suspeito que não Douglas. Eis aqui uma justificativa: http://www.uenf.br/dic/ascom/2015/02/24/informativo-da-uenf-24-02-15/

    Em tempo, segue o link pra dissertação do Rômulo que deixo aqui para os(as) interessados(as):

    http://uenf.br/pos-graduacao/sociologia-politica/files/2013/03/Disserta%C3%A7%C3%A3o-de-Mestrado-vers%C3%A3o-final-Romulo-Barreto-Da-Mata.pdf

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