sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Querelas e acertos sobre o pensamento político brasileiro (parte 2)

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Considerando que o objeto da ciência social "fala" e assim o faz de maneira contingente, a incorporação de elementos do pensamento político-social formulado originariamente na Europa ocidental e na América do Norte no trabalho de pesquisadores do Sul não é em si problema se o estatuto de cientificidade da pesquisa social não depender, exclusivamente, de “citar a literatura da Metrópole e tornar-se parte do discurso lá produzido”, como lembra-nos Raewyn Connell[1]. 

Para a socióloga australiana, um turning point no velho questionamento ao imperialismo cultural nas ciências humanas é assinalável atualmente por meio de quatro proposições: a) afirmar as diferenças entre os estilos de trabalho intelectual em correspondência com a história das sociologias nacionais; b) buscar “sistemas indígenas de pensamento” [2] cuja origem externa ao sistema de pensamento eurocêntrico faculte uma base para a produção autônoma de conhecimento; c) desconstruir o pensamento europeu mediante a crítica pós-colonial; d) vislumbrar um “universalismo alternativo” [3] fora das tradições europeia e norte-americana. Sintonizado particularmente com a primeira proposição de R. Connell, Gildo Marçal Brandão também sinaliza em muitos estudos do pensamento político brasileiro uma inclinação à pobreza analítica dimensionada por Fábio Wanderley Reis como um entrave à formulação de um pensamento teórico em bases universais sem, digamos, perder de vista um sotaque e ideias próprios. 

O diagnóstico de G. M. Brandão, tal como o de F. W. Reis (parte 1), não dá margem alguma à auto-condescendência. Na maioria dos estudos pensamento político brasileiro, pontua Brandão, ainda impera a tentação de resolver o “problema da qualidade e da capacidade cognitiva e propositiva de uma teoria pela enésima remissão ao grau de institucionalidade da disciplina ou província acadêmica na qual ela surge”; de reiterar as “tradicionais ‘explicações’ de uma obra pela origem social do autor”; e de operar as “reduções de conteúdo e da forma de produção intelectual às estratégias institucionais ou de ascensão profissional ou social das coteries” [4]. Desse ângulo, seria razoável que a abordagem de G. M. Brandão confluísse com o programa mertoniano de pesquisa, ao admitir que a pesquisa teórica se torna inócua quando serve de incremento a uma história científica - cujo escopo se confunde com o prestígio auferido por um autor nos “colégios invisíveis” da academia em detrimento das ideias teóricas contidas na sua obra. 

Como lembra Jeffrey Alexander[5], no programa mertoniano não estaria vetado a historiadores da ciência e cientistas sociais compartilhar um referencial epistemológico através da leitura das grandes oeuvres, ainda que coubesse aos últimos convertê-la em novos pontos de partida na busca do conhecimento, pois, ao contrário de outras disciplinas cuja construção do objeto é heterônoma, as ciências sociais se revelariam pródigas ao forjar seus próprios instrumentos para se manterem cumulativas. No entanto, o consenso termina quando se põe em questão o que significa propriamente “cumulatividade”. 

É fortuito lembrar que o estudo do pensamento político é antípoda do relato da história da ciência que consagra a autoimagem das ciências naturais. Ora, as teorias e polêmicas das ciências sociais consubstanciam atos performativos que, no plano linguístico, assumem caráter multitudinário ao serem partilhados por indivíduos que, em determinada formação histórico-social, cada vez mais atribuem sentido à sua coexistência mediante os produtos acabados daquelas ciências, transformando-os, no decurso do tempo, em pré-noções acerca de uma identidade coletiva associada àquela formação. Eis o terreno acidentado no qual caminha o pesquisador instigado pela teoria social.

A “dupla hermenêutica” da pesquisa social encontra seu meio de realização numa acumulação teórica que, no caso brasileiro, é permeada por “formas de pensar extraordinariamente persistentes no tempo, modos intelectuais de se relacionar com a realidade que subsumem até mesmo os mais lídimos produtos da ciência institucionalizada”[6]. Portanto, analisar “formas de pensar” não condena o cientista social ao inventário das tradições de pensamento mortas. Ora, recorrer àquelas “formas de pensar” modula a nossa imaginação sociológica na justa medida em que usufruí-la com neutralidade axiológica implica reconhecer no ensaio sobre a formação nacional um elemento ativo na vinculação social da obra pesquisada às ideias de valor com as quais, inexoravelmente, erige-se um dissenso entre perspectivas do conhecimento:


Nessa condição, não há como não confrontar leituras distintas do pensamento político-social brasileiro, especialmente os principais modelos de interpretação formulados nas últimas décadas, ao mesmo tempo verificando em que medida há continuidade ou ruptura entre as formulações clássicas dos convencionalmente chamados “intérpretes do Brasil” e o trabalho intelectual que vem sendo produzido na universidade segundo os métodos de investigação especializada (BRANDÃO, 2010, p.32).

           
A aplicação desses métodos tem levado a bom termo as mediações entre “continuidade” e “ruptura” nas ciências sociais brasileiras? G. M. Brandão acolhe o tratamento dado à questão por Gabriel Cohn, o qual salienta a polêmica entre Guerreiros Ramos e Florestan Fernandes no início dos anos 1960 como a inflexão mais desafiadora que tivemos até hoje no debate sobre a episteme das ciências sociais[7]. Passado meio século desse debate, a teoria social ainda é empreendimento de poucos ou, como ironiza Cohn, um problema “a ser deixado para outros em melhores condições” [8].

Os parâmetros avaliativos pelos quais G. M. Brandão esmiúça essa questão inconclusa – a elaboração de teoria social no trabalho científico aqui produzido – suscitam o balanço das perdas e ganhos da institucionalização de nossa pós-graduação em ciências sociais, um processo que atingiu seu ponto de maturação sob o crivo da agenda “americana” de pesquisa entre os anos 1990 e 2000. Por um lado, G. M. Brandão e F. W. Reis concordam que a delegação do problema a “outros” simplesmente ratifica desvantagens cumulativas das ciências sociais brasileiras em sua circulação internacional; por outro, se Reis indaga por que os “ganhos” da institucionalização são ainda exíguos, Brandão assevera que suas “perdas” tendem a se acentuar com a adesão acrítica àquela agenda de pesquisa, na medida em que ela nada mais faz do que obscurecer a cumulatividade do pensamento político brasileiro.

Seria dispendioso prolongar esse contraponto. Conservemos dele que G. M. Brandão não é indiferente ao aperfeiçoamento de procedimentos metodológicos logrado na pós-graduação em ciências sociais no Brasil. Bastaria dizer que tal aperfeiçoamento qualificou a crítica às diversas formas de determinismo que há pouco tempo faziam pressupor as variáveis políticas como “subprodutos de tendências macrossociais e macroeconômicas” [9]. Todavia, o formalismo instrumental nas ciências sociais pode assumir um viés minimalista ao situar a “vocação nos limites da profissão” [10]. Tais limites corporificam os ardis da especialização, notadamente quando omitem que a aplicação do método em cada disciplina é uma condição necessária, mas não suficiente para a elaboração teórica do objeto dessas ciências:


[...] se não é possível eliminar a especialização por ato de vontade, não é também válido supor que qualquer disciplina, ou qualquer campo interno a uma disciplina, que tenha obtido cidadania acadêmica corresponda necessariamente a mudanças e a individualizações no ser social (BRANDÃO, 2010, p.193-194).
           

Redefinindo o pensamento político como uma área de fronteira do conhecimento, G. M. Brandão lança mão de um prognóstico: por um lado, é possível responder com originalidade à “crise das grandes teorias” [11] a partir da situação brasileira ou, precisamente, do exame das formas de pensar rotinizadas nos e pelos ensaios de interpretação da formação social brasileira com as quais, queiramos ou não, colocamos à prova o campo discursivo das ciências sociais que exercemos na divisão internacional do trabalho intelectual. 


Por outro, seria contraproducente apartar o esforço endógeno em teoria social da pesquisa sobre as obras deixadas pelos nossos ensaístas, pois as cautelas diante do anacronismo histórico podem, paradoxalmente, estabelecer um corte arbitrário entre seus momentos de formulação e recepção. Com efeito, os ensaios sobre a formação social brasileira têm uma amplitude heurística irredutível ao seu contexto de origem e, logo, apropriar-se deles não precisa nos ocupar em coligir ornamentos do passado, senão em viabilizar a cooperação entre teoria social e pesquisa sobre os textos históricos para investirmos cientificamente em temas e problemas da ordem do dia.




[1] Cf. Raewyn Connell, A iminente revolução na teoria social, Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 27, n.º 80, out. 2012, p.11.
[2] Ibid. ibidem.
[3] Idem.
[4] Cf. Gildo Marçal Brandão, Linhagens do pensamento político brasileiro, São Paulo, Hucitec, 2010, p.22.
[5] Cf. Jeffrey Alexander, A importância dos clássicos in: Anthony Giddens & Jonathan Turner (orgs.), Teoria Social Hoje, São Paulo, Editora Unesp, 1999, p.23-89.
[6] Brandão, op. cit., p.29.
[7] Ibid., p.184.
[8] Apud. Brandão, op. cit., p.184.
[9] Brandão, op. cit, p.191.
[10] Ibid., p.185.
[11] Ibid., p.197.

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