Por Paulo Sérgio
Ribeiro
Considerando que o objeto da ciência social
"fala" e assim o faz de maneira contingente, a incorporação de
elementos do pensamento político-social formulado originariamente na Europa
ocidental e na América do Norte no trabalho de pesquisadores do Sul não é em si
problema se o estatuto de cientificidade da pesquisa social não depender,
exclusivamente, de “citar a literatura da Metrópole e tornar-se parte do
discurso lá produzido”, como lembra-nos Raewyn Connell[1].
Para a socióloga australiana, um turning point no
velho questionamento ao imperialismo cultural nas ciências humanas é
assinalável atualmente por meio de quatro proposições: a) afirmar as diferenças
entre os estilos de trabalho intelectual em correspondência com a história das
sociologias nacionais; b) buscar “sistemas indígenas de pensamento” [2] cuja
origem externa ao sistema de pensamento eurocêntrico faculte uma base para a
produção autônoma de conhecimento; c) desconstruir o pensamento europeu
mediante a crítica pós-colonial; d) vislumbrar um “universalismo alternativo” [3] fora
das tradições europeia e norte-americana. Sintonizado particularmente com
a primeira proposição de R. Connell, Gildo Marçal Brandão também sinaliza em
muitos estudos do pensamento político brasileiro uma inclinação à pobreza
analítica dimensionada por Fábio Wanderley Reis como um entrave à formulação de
um pensamento teórico em bases universais sem, digamos, perder de vista um
sotaque e ideias próprios.
O diagnóstico de G. M. Brandão, tal como o de F.
W. Reis (parte 1), não dá margem alguma à auto-condescendência. Na maioria
dos estudos pensamento político brasileiro, pontua Brandão, ainda impera a
tentação de resolver o “problema da qualidade e da capacidade cognitiva e
propositiva de uma teoria pela enésima remissão ao grau de institucionalidade
da disciplina ou província acadêmica na qual ela surge”; de reiterar as
“tradicionais ‘explicações’ de uma obra pela origem social do autor”; e de
operar as “reduções de conteúdo e da forma de produção intelectual às
estratégias institucionais ou de ascensão profissional ou social das coteries” [4]. Desse
ângulo, seria razoável que a abordagem de G. M. Brandão confluísse com o
programa mertoniano de pesquisa, ao admitir que a pesquisa teórica se torna
inócua quando serve de incremento a uma história científica - cujo escopo se
confunde com o prestígio auferido por um autor nos “colégios invisíveis” da
academia em detrimento das ideias teóricas contidas na sua obra.
Como lembra Jeffrey Alexander[5], no
programa mertoniano não estaria vetado a historiadores da ciência e cientistas
sociais compartilhar um referencial epistemológico através da leitura das
grandes oeuvres, ainda que coubesse aos últimos convertê-la em
novos pontos de partida na busca do conhecimento, pois, ao contrário de outras
disciplinas cuja construção do objeto é heterônoma, as ciências sociais se
revelariam pródigas ao forjar seus próprios instrumentos para se manterem
cumulativas. No entanto, o consenso termina quando se põe em questão o que
significa propriamente “cumulatividade”.
É fortuito lembrar que o estudo do pensamento político
é antípoda do relato da história da ciência que consagra a autoimagem das
ciências naturais. Ora, as teorias e polêmicas das ciências sociais
consubstanciam atos performativos que, no plano linguístico, assumem caráter
multitudinário ao serem partilhados por indivíduos que, em determinada formação
histórico-social, cada vez mais atribuem sentido à sua coexistência mediante os
produtos acabados daquelas ciências, transformando-os, no decurso do tempo, em
pré-noções acerca de uma identidade coletiva associada àquela formação. Eis o
terreno acidentado no qual caminha o pesquisador instigado pela teoria social.
A “dupla hermenêutica” da pesquisa social encontra seu
meio de realização numa acumulação teórica que, no caso brasileiro, é permeada
por “formas de pensar extraordinariamente persistentes no tempo, modos
intelectuais de se relacionar com a realidade que subsumem até mesmo os mais
lídimos produtos da ciência institucionalizada”[6].
Portanto, analisar “formas de pensar” não condena o cientista social ao
inventário das tradições de pensamento mortas. Ora, recorrer àquelas “formas de
pensar” modula a nossa imaginação sociológica na justa medida em que usufruí-la
com neutralidade axiológica implica reconhecer no ensaio sobre a formação
nacional um elemento ativo na vinculação social da obra pesquisada às ideias de
valor com as quais, inexoravelmente, erige-se um dissenso entre perspectivas do
conhecimento:
Nessa condição, não há como não confrontar leituras distintas do
pensamento político-social brasileiro, especialmente os principais modelos de
interpretação formulados nas últimas décadas, ao mesmo tempo verificando em que
medida há continuidade ou ruptura entre as formulações clássicas dos
convencionalmente chamados “intérpretes do Brasil” e o trabalho intelectual que
vem sendo produzido na universidade segundo os métodos de investigação
especializada (BRANDÃO, 2010, p.32).
A aplicação desses métodos tem levado a bom termo as
mediações entre “continuidade” e “ruptura” nas ciências sociais brasileiras? G.
M. Brandão acolhe o tratamento dado à questão por Gabriel Cohn, o qual salienta
a polêmica entre Guerreiros Ramos e Florestan Fernandes no início dos anos 1960
como a inflexão mais desafiadora que tivemos até hoje no debate sobre a episteme das
ciências sociais[7].
Passado meio século desse debate, a teoria social ainda é empreendimento de
poucos ou, como ironiza Cohn, um problema “a ser deixado para outros em
melhores condições” [8].
Os parâmetros avaliativos pelos quais G. M. Brandão
esmiúça essa questão inconclusa – a elaboração de teoria social no trabalho
científico aqui produzido – suscitam o balanço das perdas e ganhos da
institucionalização de nossa pós-graduação em ciências sociais, um processo que
atingiu seu ponto de maturação sob o crivo da agenda “americana” de pesquisa
entre os anos 1990 e 2000. Por um lado, G. M. Brandão e F. W. Reis concordam
que a delegação do problema a “outros” simplesmente ratifica desvantagens
cumulativas das ciências sociais brasileiras em sua circulação internacional;
por outro, se Reis indaga por que os “ganhos” da institucionalização são ainda
exíguos, Brandão assevera que suas “perdas” tendem a se acentuar com a adesão
acrítica àquela agenda de pesquisa, na medida em que ela nada mais faz do que
obscurecer a cumulatividade do pensamento político brasileiro.
Seria dispendioso prolongar esse contraponto.
Conservemos dele que G. M. Brandão não é indiferente ao aperfeiçoamento de
procedimentos metodológicos logrado na pós-graduação em ciências sociais no
Brasil. Bastaria dizer que tal aperfeiçoamento qualificou a crítica às diversas
formas de determinismo que há pouco tempo faziam pressupor as variáveis
políticas como “subprodutos de tendências macrossociais e macroeconômicas” [9].
Todavia, o formalismo instrumental nas ciências sociais pode assumir um viés
minimalista ao situar a “vocação nos limites da profissão” [10].
Tais limites corporificam os ardis da especialização, notadamente quando omitem
que a aplicação do método em cada disciplina é uma condição necessária, mas não
suficiente para a elaboração teórica do objeto dessas ciências:
[...] se não é possível eliminar a especialização por ato de
vontade, não é também válido supor que qualquer disciplina, ou qualquer campo
interno a uma disciplina, que tenha obtido cidadania acadêmica corresponda
necessariamente a mudanças e a individualizações no ser social (BRANDÃO, 2010, p.193-194).
Redefinindo o pensamento político como uma área de
fronteira do conhecimento, G. M. Brandão lança mão de um prognóstico: por um
lado, é possível responder com originalidade à “crise das grandes teorias” [11] a
partir da situação brasileira ou, precisamente, do exame das formas de pensar
rotinizadas nos e pelos ensaios de interpretação da formação social brasileira
com as quais, queiramos ou não, colocamos à prova o campo discursivo das
ciências sociais que exercemos na divisão internacional do trabalho
intelectual.
Por outro, seria contraproducente apartar o esforço
endógeno em teoria social da pesquisa sobre as obras deixadas pelos nossos
ensaístas, pois as cautelas diante do anacronismo histórico podem,
paradoxalmente, estabelecer um corte arbitrário entre seus momentos de formulação
e recepção. Com efeito, os ensaios sobre a formação social brasileira têm
uma amplitude heurística irredutível ao seu contexto de origem e, logo,
apropriar-se deles não precisa nos ocupar em coligir ornamentos do passado,
senão em viabilizar a cooperação entre teoria social e pesquisa sobre os textos
históricos para investirmos cientificamente em temas e problemas da ordem do
dia.
[1]
Cf. Raewyn Connell, A iminente revolução na teoria social, Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 27, n.º 80, out. 2012,
p.11.
[4] Cf. Gildo Marçal Brandão, Linhagens do pensamento político brasileiro, São Paulo, Hucitec, 2010, p.22.
[5]
Cf. Jeffrey Alexander, A importância dos clássicos in: Anthony Giddens &
Jonathan Turner (orgs.), Teoria Social
Hoje, São Paulo, Editora Unesp, 1999, p.23-89.
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