Escuta como ato político
Dedico
este texto a Kenya Gomes, Bruna Machel e Juliana Tavares.
Por
Paulo Sérgio Ribeiro
No
calendário de lutas estabelecido em março, um mês muito significativo paras
mulheres que, em alto e bom som, afirmam a dignidade da pessoa humana em todas
as latitudes do globo, participarei como mediador da aula pública "A luta
pela vida das mulheres no Brasil pós-eleições", que ocorrerá nesta
quarta-feira, no Bandejão da UENF, às 12h (aqui).
Confesso
que o convite muito me honrou devido ao crédito que fora depositado em um homem
cujas catalogações (branco, hétero, cis...), quase sempre, confirmam marcadores
de opressão nas relações de gênero.
Poder
mediar tais falas e aprender com cada uma delas será um privilégio e, talvez,
seja uma das raras oportunidades em que reconhecer-se privilegiado não me
coloque em confronto comigo mesmo.
Convenhamos:
será mesmo tão pacífico assim? Se o confronto com o "velho homem" que
habita em nós é inevitável, como se sair vencedor sem o sacrifício de outro
alguém na jornada para chegar a esta desejável conquista íntima?
A meu
ver, uma maneira bastante generosa seria visitar a obra seminal da filósofa
Djamila Ribeiro - "O que é lugar de fala?"[1] -, uma
provocação que, até hoje, rende-lhe berros histéricos da extrema-direita e, não
menos, um dar de ombros de certa esquerda pouco familiarizada com a agenda
pública do(s) feminismo(s).
Não
devo iludir o(a) leitor(a): há não muito tempo, participava sem maiores
questionamentos do segundo grupo. Mas, felizmente, a convivência política com
mulheres as mais variadas tem imposto um cerco aos últimos focos de resistência
do "velho homem" que, teimosamente, vez ou outra ainda sou.
Com
Djamila Ribeiro, entendi que os condicionamentos de uma cultura patriarcal e
heteronormativa - embora confirmem à perfeição os atributos do "fato
social" concebido pelo velho mestre Émile Durkheim - não me autorizam a
abrir mão da responsabilidade ética face àquele "Outro" que se
manifesta em tantos rostos, vozes e visões a partir da condição feminina.
A
filósofa e ativista negra delimita tal responsabilidade ética ao desfazer
eventuais confusões nas quais muitos recaem quando sobrepõem a noção de
"representatividade" àquela dimensão da luta política. Ambas andam
lado a lado, por óbvio, mas devem ser distinguidas analiticamente para não sucumbirmos
a categorias de acusação que satisfazem azedumes pessoais em prejuízo da
intersubjetividade daqueles(as) que podem estar do mesmo lado da trincheira,
por assim dizer.
Seguindo
os passos de Djamila: é razoável uma mulher negra não se sentir representada
por um homem branco, mas não por isso este deve deixar de tematizar a realidade
dela a partir do seu senso de realidade. Ora, a não responsabilização
daqueles que falam a partir do lugar do privilégio traduzir-se-ia no véu da
ignorância com o qual se encobre a pretensão de salvo-conduto para vantagens
sociais e econômicas que aquele lugar nos oferece.
As
lutas por reconhecimento (ou por "representação") nada mais seriam,
portanto, que trazer à luz a arbitrariedade dos espaços de privilégio por parte
daqueles indivíduos e grupos segregados em lugares da invisibilidade social
ou, noutros termos, em um não-lugar. Porém, lembra Djamila, refletir sobre o
lugar de fala não é aceitar acriticamente que "somente os subalternos falem
de suas localizações", pois, do contrário, aqueles que estão inseridos na
"norma hegemônica" continuarão enxergando a si mesmos de um ponto de
vista olímpico[2].
Uma
perspectiva relacional, é "só" o que se propõe:
[...]
entendemos que todas as pessoas possuem lugares de fala, pois estamos falando
de localização social. E, a partir disso, é possível debater e refletir
criticamente sobre os mais variados temas presentes na sociedade. O fundamental
é que indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado em termos de locus
social consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir desse lugar e como
esse lugar impacta diretamente na constituição dos lugares de grupos
subalternizados[3].
São
muitos os ângulos pelos quais Djamila elabora sua perspectiva de análise: a
história do feminismo e suas disputas internas; o alcance do feminismo negro no
debate público; o diálogo entre feminismo negro e o pensamento decolonial; os
dados recentes que confirmam a vulnerabilidade social das mulheres em correlação
com as desigualdades abissais do nosso país entre outros. Seu livro,
praticamente um manual de combate – melhor dizendo, do bom combate -, chama-me
atenção para um aspecto: como não admitir que estamos a léguas de distância
daquela perspectiva relacional no próprio modus operandi do
campo científico?
O texto
da socióloga Luciane Soares da Silva publicado recentemente no blog (aqui), que desnuda os mecanismos da superseleção escolar à qual ela e tantos(as) outros(as)
estudantes negros(as) foram submetidos(as) para esbarrar (como egressos dos
cursos de pós-graduação) na falácia meritocrática dos concursos públicos para
carreira docente de nível superior, vai ao encontro da interpretação que
Djamila Ribeiro dedica ao universalismo na produção de conhecimento.
Se
dimensionarmos a hierarquia social dos objetos - o que faz algo ser ou não de
interesse para a pesquisa -, observamos que o privilégio social de intelectuais
brancos europeizados é, de fato, um privilégio epistêmico. O postulado de
objetividade que diferentes ciências humanas tendem a seguir de perto, na
prática, cristaliza-se em um regime de autoridade discursiva em torno de um
suposto sujeito "universal" do conhecimento que, todavia, na sua autointitulada função de "Farol de Alexandria" deixa a desejar para tantos outros sujeitos os quais, efetivamente, teriam muito mais a dizer para a elucidação científica dos fatos.
Ora, o
que eu teria a dizer às mulheres que conduzirão a aula pública desta
quarta-feira? Algo menos do que elas já possam falar por si mesmas. Nosce te
ipsum[4]:
o meu lugar de fala nada mais é do que um reflexo da minha capacidade de
escuta. Aprimorá-la, assim espero, fará com que vislumbre outros marcos
civilizatórios nas vozes dissonantes dessas mulheres e, quem sabe um dia, dará
passagem a um "novo" homem.
[1] RIBEIRO, Djamila. O
que é: lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.
[2] Op.
cit., p. 86.
[3] Op. cit., p. 88.
[4] “Conhece-te
a ti mesmo”.
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