segunda-feira, 18 de março de 2019

Escuta como ato político


Escuta como ato político

Dedico este texto a Kenya Gomes, Bruna Machel e Juliana Tavares.

Por Paulo Sérgio Ribeiro

No calendário de lutas estabelecido em março, um mês muito significativo paras mulheres que, em alto e bom som, afirmam a dignidade da pessoa humana em todas as latitudes do globo, participarei como mediador da aula pública "A luta pela vida das mulheres no Brasil pós-eleições", que ocorrerá nesta quarta-feira, no Bandejão da UENF, às 12h (aqui). 

Confesso que o convite muito me honrou devido ao crédito que fora depositado em um homem cujas catalogações (branco, hétero, cis...), quase sempre, confirmam marcadores de opressão nas relações de gênero. 

Poder mediar tais falas e aprender com cada uma delas será um privilégio e, talvez, seja uma das raras oportunidades em que reconhecer-se privilegiado não me coloque em confronto comigo mesmo. 

Convenhamos: será mesmo tão pacífico assim? Se o confronto com o "velho homem" que habita em nós é inevitável, como se sair vencedor sem o sacrifício de outro alguém na jornada para chegar a esta desejável conquista íntima? 

A meu ver, uma maneira bastante generosa seria visitar a obra seminal da filósofa Djamila Ribeiro - "O que é lugar de fala?"[1] -, uma provocação que, até hoje, rende-lhe berros histéricos da extrema-direita e, não menos, um dar de ombros de certa esquerda pouco familiarizada com a agenda pública do(s) feminismo(s). 

Não devo iludir o(a) leitor(a): há não muito tempo, participava sem maiores questionamentos do segundo grupo. Mas, felizmente, a convivência política com mulheres as mais variadas tem imposto um cerco aos últimos focos de resistência do "velho homem" que, teimosamente, vez ou outra ainda sou. 

Com Djamila Ribeiro, entendi que os condicionamentos de uma cultura patriarcal e heteronormativa - embora confirmem à perfeição os atributos do "fato social" concebido pelo velho mestre Émile Durkheim - não me autorizam a abrir mão da responsabilidade ética face àquele "Outro" que se manifesta em tantos rostos, vozes e visões a partir da condição feminina. 

A filósofa e ativista negra delimita tal responsabilidade ética ao desfazer eventuais confusões nas quais muitos recaem quando sobrepõem a noção de "representatividade" àquela dimensão da luta política. Ambas andam lado a lado, por óbvio, mas devem ser distinguidas analiticamente para não sucumbirmos a categorias de acusação que satisfazem azedumes pessoais em prejuízo da intersubjetividade daqueles(as) que podem estar do mesmo lado da trincheira, por assim dizer.

Seguindo os passos de Djamila: é razoável uma mulher negra não se sentir representada por um homem branco, mas não por isso este deve deixar de tematizar a realidade dela a partir do seu senso de realidade. Ora, a não responsabilização daqueles que falam a partir do lugar do privilégio traduzir-se-ia no véu da ignorância com o qual se encobre a pretensão de salvo-conduto para vantagens sociais e econômicas que aquele lugar nos oferece.

As lutas por reconhecimento (ou por "representação") nada mais seriam, portanto, que trazer à luz a arbitrariedade dos espaços de privilégio por parte daqueles indivíduos e grupos segregados em lugares da invisibilidade social ou, noutros termos, em um não-lugar. Porém, lembra Djamila, refletir sobre o lugar de fala não é aceitar acriticamente que "somente os subalternos falem de suas localizações", pois, do contrário, aqueles que estão inseridos na "norma hegemônica" continuarão enxergando a si mesmos de um ponto de vista olímpico[2].

Uma perspectiva relacional, é "só" o que se propõe:

[...] entendemos que todas as pessoas possuem lugares de fala, pois estamos falando de localização social. E, a partir disso, é possível debater e refletir criticamente sobre os mais variados temas presentes na sociedade. O fundamental é que indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado em termos de locus social consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir desse lugar e como esse lugar impacta diretamente na constituição dos lugares de grupos subalternizados[3].

São muitos os ângulos pelos quais Djamila elabora sua perspectiva de análise: a história do feminismo e suas disputas internas; o alcance do feminismo negro no debate público; o diálogo entre feminismo negro e o pensamento decolonial; os dados recentes que confirmam a vulnerabilidade social das mulheres em correlação com as desigualdades abissais do nosso país entre outros. Seu livro, praticamente um manual de combate – melhor dizendo, do bom combate -, chama-me atenção para um aspecto: como não admitir que estamos a léguas de distância daquela perspectiva relacional no próprio modus operandi do campo científico? 

O texto da socióloga Luciane Soares da Silva publicado recentemente no blog (aqui), que desnuda os mecanismos da superseleção escolar à qual ela e tantos(as) outros(as) estudantes negros(as) foram submetidos(as) para esbarrar (como egressos dos cursos de pós-graduação) na falácia meritocrática dos concursos públicos para carreira docente de nível superior, vai ao encontro da interpretação que Djamila Ribeiro dedica ao universalismo na produção de conhecimento. 

Se dimensionarmos a hierarquia social dos objetos - o que faz algo ser ou não de interesse para a pesquisa -, observamos que o privilégio social de intelectuais brancos europeizados é, de fato, um privilégio epistêmico. O postulado de objetividade que diferentes ciências humanas tendem a seguir de perto, na prática, cristaliza-se em um regime de autoridade discursiva em torno de um suposto sujeito "universal" do conhecimento que, todavia, na sua autointitulada função de "Farol de Alexandria" deixa a desejar para tantos outros sujeitos os quais, efetivamente, teriam muito mais a dizer para a elucidação científica dos fatos. 

Ora, o que eu teria a dizer às mulheres que conduzirão a aula pública desta quarta-feira? Algo menos do que elas já possam falar por si mesmas. Nosce te ipsum[4]: o meu lugar de fala nada mais é do que um reflexo da minha capacidade de escuta. Aprimorá-la, assim espero, fará com que vislumbre outros marcos civilizatórios nas vozes dissonantes dessas mulheres e, quem sabe um dia, dará passagem a um "novo" homem. 


[1] RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.
[2] Op. cit., p. 86.
[3] Op. cit., p. 88.
[4] “Conhece-te a ti mesmo”.

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