sexta-feira, 22 de março de 2019

Em defesa da liberdade docente - o caso do Liceu de Humanidades de Campos


Em defesa da liberdade docente - o caso do Liceu de Humanidades de Campos*

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Não é a primeira vez que tratamos de violações à autonomia didática e científica das instituições de ensino desde que a redemocratização entrou em agonia há quase três anos. Relembremos nossos posicionamentos sobre as tentativas de censura à disciplina optativa "Tópicos Especiais em Ciência Política 4: o golpe de 2016 e a democracia", oferecida pelo professor Luís Felipe Miguel na Universidade de Brasília (Unb) (aqui), bem como à Cássia Maria Couto, professora da rede pública de ensino do estado do Rio de Janeiro, que sofreu ataques covardes em sua página no Facebook devido a uma simples ironia sobre a dita "doutrinação" nos espaços escolares (aqui). 

Agora, quem sofre semelhante constrangimento é Marcos Antônio Tavares da Silva, professor de Português do Liceu de Humanidades de Campos dos Goytacazes/RJ[1]. O motivo? Uma redação solicitada aos seus alunos tendo por mote a charge "O patriota" (ver acima). É bom que se diga: uma atividade rotineira para professores(as) de Português e demais disciplinas que compõem o arco das "Humanidades" - isto é, a própria missão institucional do Liceu! - e cujo conteúdo chega a ser trivial para estudantes concluintes do Ensino Médio. Aliás, a charge veio ao mundo em 2017, sendo assinada por Vitor Teixeira no sítio "Humor Político"[2].

O constrangimento pelo qual passa o professor Marcos já foi reportado à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ):



Afinal de contas, por que tanto alarde em torno de uma simples tarefa escolar?

Olhar com sobriedade o "caso Liceu", que toma de assalto a opinião pública, leva-nos a pensar uma questão-chave para a autonomia didática do(a) professor(a): a relação entre razão e autoridade. Para tanto, nada melhor do que reler "Resposta à pergunta: 'Que é Iluminismo'"?[3], de Immanuel Kant, para distinguirmos quando termina a autoridade e onde começa a razão entre a escola e o seu entorno.

Se levarmos a sério a concepção de autonomia legada por Kant, localizaremos na educação escolar uma tensão permanente entre razão e autoridade. Não haveria mesmo como nos aliviarmos dela, uma vez que a escola somente confirma sua potencialidade emancipadora na transmissão de um patrimônio universal - o conhecimento que o gênero humano produziu até aqui - se "trair" a si mesma. 

Confuso até aqui? Explicamos: o Iluminismo possibilitou aos homens (e, por contrabando, às mulheres...) reconhecer, quiçá pela primeira vez, que vivemos em estado de "menoridade" e, logo, seria contraditório estarmos sob a tutela de alguém para superá-lo. Ora, se nos é facultado o entendimento e, mesmo assim, continuamos inaptos diante das indagações que a vida social nos solicita, é porque pouco nos servimos de nós mesmos. 

Atreva-se a conhecer! - Sapere aude! -, eis uma provocação do Iluminismo que sempre encontrará resistências, na medida em que figure para o homem e mulher medíocres uma perda do conforto que a ignorância lhes assegura. "É tão cômodo ser menor", admite Kant, ou lembrando uma frase icônica do filme "Matrix", a ignorância é uma bênção... 

A passagem à maioridade, contudo, não é uma impossibilidade. 

A todo tempo, lidamos com restrições ao pensamento: temos de pagar tributos, crer em símbolos nacionais e/ou religiosos, adequar-se às convenções sociais sem precisarmos de outra disposição senão ajustar-se irrefletidamente à ordem estabelecida. 

Até certo ponto, é lícito que assim seja se considerarmos a noção kantiana de uso privado da razão: um(a) professor(a) do Liceu de Humanidades, por exemplo, não poderia desvincular o uso que faz de sua razão das atribuições do cargo público a ele(a) confiado(a). Há um regime disciplinar, orientações curriculares a seguir, decoro a zelar etc. Porém, de um(a) professor(a) não é exigível educar os(as) seus(as) alunos(as) para continuarem sendo... seus(as) alunos(as).

Qual se fosse um parteiro de ideias ao modo socrático, professores(as) se constituem como intermediários culturais entre aquilo que ensinam e o uso público da razão enquanto destino para o qual seus(as) alunos(as) são estimulados a caminhar com as próprias pernas: a liberdade de trabalhar em salas de aula todos os elementos disponíveis para o entendimento é uma condição necessária para que homens e mulheres adultos(as) tenham sido educados para exercer a liberdade civil. 

Por liberdade civil, leia-se: uma pessoa falar em seu próprio nome para um público sem obedecer a outro critério senão expor com clareza seus próprios juízos e ideias para o exame de todos(as). Ser livre é uma realização pessoal que, todavia, apenas a socialização referenciada na liberdade de pensamento pode garantir. Aqui, os espaços escolares ainda configuram o lugar de excelência dessa forma de socialização, malgrado serem também espaços de controle e de nivelamento.

Voltando ao "caso Liceu", que crime ou pecado cometera o professor Marcos? Dizer, por intermédio de uma charge, aos(às) seus(as) alunos(as): "Sapere aude!". Atreva-se a conhecer: a posição de subalternidade do Brasil frente aos Estados Unidos com a política externa ultrajada pelo governo de Jair Bolsonaro. 

Secundaristas, atrevam-se a conhecer: a base militar de Alcântara, localizada no Maranhão, foi objeto de acordo assinado por Bolsonaro com o governo de Donald Trump para lançamentos de satélites, dependendo ainda da aprovação do Congresso Nacional. Pasme, o Ministério da Defesa estima que o país fature pífios 37 milhões de reais para ceder um dos raros recursos militares estratégicos que temos à maior potência militar do planeta[4].

Secundaristas, atrevam-se a conhecer: o Brasil entregue à falange bolsonarista no poder abrirá mão de suas vantagens como membro da Organização Mundial do Comércio (OMC) para ingressar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), subordinando-se às diretrizes do governo estadunidense para o comércio exterior. Quais vantagens seriam essas? Na condição de país em desenvolvimento – status conferido ao Brasil na OMC –, negociar com países economicamente desenvolvidos sem se obrigar à reciprocidade de liberalização do seu mercado interno[5], uma medida protetiva cuja justificativa é autoevidente para um país em franco processo de desindustrialização como o Brasil.

Sem contar, claro, a cereja do bolo: Bolsonaro, um capitão da reserva do Exército brasileiro e então pré-candidato à Presidência da República em 2017, bater continência para a bandeira estadunidense em comício num restaurante em Deerfield Beach, estado da Flórida, região sul dos EUA[6]. Para os(as) incrédulos(as), recomendo uma visita rápida ao YouTube[7].

Chega! Haveria outras tantas demonstrações do patriotismo de araque de Bolsonaro et caterva, mas o texto ficou demasiado longo e não quero desanimá-los(as) expondo ad nauseam a velha síndrome de vira-lata a qual Nelson Rodrigues apontou como a vicissitude mais arraigada entre nós brasileiros(as).

Ao professor Marcos, prestamos nosso apoio e solidariedade por ousar ser iluminista em tempos sombrios. Acompanharemos o desenrolar do “caso Liceu” e desejamos que sua rotina profissional seja prontamente restabelecida em nome do interesse público inerente à arte de educar.

* Última atualização em 23/03/2019, às 11h06.

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