Em defesa da liberdade docente - o caso do Liceu de Humanidades de
Campos*
Por Paulo Sérgio Ribeiro
Não é a primeira vez que tratamos de violações à
autonomia didática e científica das instituições de ensino desde que a
redemocratização entrou em agonia há quase três anos. Relembremos nossos posicionamentos sobre as tentativas de censura à disciplina
optativa "Tópicos Especiais em Ciência Política 4: o golpe de 2016 e a
democracia", oferecida pelo professor Luís Felipe
Miguel na Universidade de Brasília (Unb) (aqui),
bem como à Cássia Maria Couto, professora da rede pública de ensino do estado
do Rio de Janeiro, que sofreu ataques covardes em sua página no Facebook devido
a uma simples ironia sobre a dita "doutrinação" nos espaços escolares
(aqui).
Agora, quem sofre semelhante constrangimento é Marcos Antônio Tavares da Silva, professor de Português do Liceu de Humanidades de Campos dos Goytacazes/RJ[1]. O motivo? Uma
redação solicitada aos seus alunos tendo por mote a charge "O
patriota" (ver acima). É bom que se diga: uma atividade rotineira para
professores(as) de Português e demais disciplinas que compõem o arco das
"Humanidades" - isto é, a própria missão institucional do Liceu! - e
cujo conteúdo chega a ser trivial para estudantes concluintes do Ensino Médio.
Aliás, a charge veio ao mundo em 2017, sendo assinada por Vitor Teixeira no
sítio "Humor Político"[2].
O constrangimento pelo qual passa o professor Marcos já foi reportado à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ):
Afinal de contas, por que tanto alarde em torno de uma simples tarefa escolar?
Afinal de contas, por que tanto alarde em torno de uma simples tarefa escolar?
Olhar com sobriedade o "caso Liceu", que toma de assalto a opinião
pública, leva-nos a pensar uma questão-chave para a autonomia
didática do(a) professor(a): a relação entre razão e autoridade. Para tanto,
nada melhor do que reler "Resposta à pergunta: 'Que é Iluminismo'"?[3], de Immanuel
Kant, para distinguirmos quando termina a autoridade e onde começa a razão
entre a escola e o seu entorno.
Se levarmos a sério a concepção de autonomia legada
por Kant, localizaremos na educação escolar uma tensão permanente entre razão e
autoridade. Não haveria mesmo como nos aliviarmos dela, uma vez que a escola
somente confirma sua potencialidade emancipadora na transmissão de um
patrimônio universal - o conhecimento que o gênero humano produziu até aqui -
se "trair" a si mesma.
Confuso até aqui? Explicamos: o Iluminismo
possibilitou aos homens (e, por contrabando, às mulheres...) reconhecer, quiçá
pela primeira vez, que vivemos em estado de "menoridade" e, logo, seria contraditório estarmos sob a tutela de alguém para superá-lo. Ora,
se nos é facultado o entendimento e, mesmo assim, continuamos inaptos diante
das indagações que a vida social nos solicita, é porque pouco nos servimos de
nós mesmos.
Atreva-se a conhecer! - Sapere aude! -, eis
uma provocação do Iluminismo que sempre encontrará resistências, na medida em
que figure para o homem e mulher medíocres uma perda do conforto que a
ignorância lhes assegura. "É tão cômodo ser menor", admite Kant, ou
lembrando uma frase icônica do filme "Matrix", a ignorância é uma
bênção...
A passagem à maioridade, contudo, não é uma
impossibilidade.
A todo tempo, lidamos com restrições ao pensamento:
temos de pagar tributos, crer em símbolos nacionais e/ou religiosos, adequar-se
às convenções sociais sem precisarmos de outra disposição senão ajustar-se
irrefletidamente à ordem estabelecida.
Até certo ponto, é lícito que assim seja se
considerarmos a noção kantiana de uso privado da razão: um(a) professor(a) do
Liceu de Humanidades, por exemplo, não poderia desvincular o uso que faz de sua
razão das atribuições do cargo público a ele(a) confiado(a). Há um regime
disciplinar, orientações curriculares a seguir, decoro a zelar etc. Porém, de
um(a) professor(a) não é exigível educar os(as) seus(as) alunos(as) para
continuarem sendo... seus(as) alunos(as).
Qual se fosse um parteiro de ideias ao modo
socrático, professores(as) se constituem como intermediários culturais entre
aquilo que ensinam e o uso público da razão enquanto destino para o qual seus(as)
alunos(as) são estimulados a caminhar com as próprias pernas: a liberdade
de trabalhar em salas de aula todos os elementos disponíveis para o
entendimento é uma condição necessária para que homens e mulheres adultos(as)
tenham sido educados para exercer a liberdade civil.
Por liberdade civil, leia-se: uma pessoa falar em
seu próprio nome para um público sem obedecer a outro critério senão expor com
clareza seus próprios juízos e ideias para o exame de todos(as). Ser
livre é uma realização pessoal que, todavia, apenas a socialização referenciada
na liberdade de pensamento pode garantir. Aqui, os espaços escolares ainda
configuram o lugar de excelência dessa forma de socialização, malgrado serem
também espaços de controle e de nivelamento.
Voltando ao "caso Liceu", que crime ou
pecado cometera o professor Marcos? Dizer, por intermédio de uma charge,
aos(às) seus(as) alunos(as): "Sapere aude!". Atreva-se a
conhecer: a posição de subalternidade do Brasil frente aos Estados Unidos com a
política externa ultrajada pelo governo de Jair Bolsonaro.
Secundaristas, atrevam-se a conhecer: a base
militar de Alcântara, localizada no Maranhão, foi objeto de acordo assinado por
Bolsonaro com o governo de Donald Trump para lançamentos de satélites,
dependendo ainda da aprovação do Congresso Nacional. Pasme, o Ministério da
Defesa estima que o país fature pífios 37 milhões de reais para ceder um dos
raros recursos militares estratégicos que temos à maior potência militar do
planeta[4].
Secundaristas, atrevam-se a conhecer: o Brasil
entregue à falange bolsonarista no poder abrirá mão de suas vantagens como
membro da Organização Mundial do Comércio (OMC) para ingressar na Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), subordinando-se às
diretrizes do governo estadunidense para o comércio exterior. Quais vantagens
seriam essas? Na condição de país em desenvolvimento – status conferido ao
Brasil na OMC –, negociar com países economicamente desenvolvidos sem se
obrigar à reciprocidade de liberalização do seu mercado interno[5], uma medida
protetiva cuja justificativa é autoevidente para um país em franco processo de
desindustrialização como o Brasil.
Sem contar, claro, a cereja do bolo: Bolsonaro, um
capitão da reserva do Exército brasileiro e então pré-candidato à Presidência
da República em 2017, bater continência para a bandeira estadunidense em comício
num restaurante em Deerfield Beach, estado da Flórida, região sul dos EUA[6]. Para os(as)
incrédulos(as), recomendo uma visita rápida ao YouTube[7].
Chega! Haveria outras tantas demonstrações do
patriotismo de araque de Bolsonaro et caterva, mas o texto ficou
demasiado longo e não quero desanimá-los(as) expondo ad nauseam a velha
síndrome de vira-lata a qual Nelson Rodrigues apontou como a vicissitude mais
arraigada entre nós brasileiros(as).
Ao professor Marcos,
prestamos nosso apoio e solidariedade por ousar ser iluminista em tempos
sombrios. Acompanharemos o desenrolar do “caso Liceu” e desejamos que sua
rotina profissional seja prontamente restabelecida em nome do interesse público
inerente à arte de educar.
* Última atualização em 23/03/2019, às 11h06.
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