Composição do orçamento federal e outras
histórias que as tias do WhatsApp não te contam sobre a Previdência...
Por Paulo Sérgio Ribeiro
Se há um assunto indigesto para estudantes
de Administração, de Direito e de Economia, verdadeiro terror dos concursandos
de todo o Brasil, este atende pelo nome de Administração Financeira e
Orçamentária, vulgo “AFO”. A esta altura, imaginamos que os(as) leitores(as) já
tenham fugido. Relevemos. Aquilo que nos pede motivação nem sempre é o que nos
faz ver o mundo mais colorido...
Sendo assim, tentemos uma abordagem que
não nos faça envelhecer dez anos sob o jargão do “burocratês” ou do “economês”.
Poderíamos nos contentar com a ilustração
acima, que trata da execução orçamentária do Governo Federal no ano de 2018.
Mas como o diabo mora nos detalhes, visitemos inicialmente aquele texto que já
teve os seus dias de glória e que anda hoje entregue à poeira do tempo: a
Constituição Federal de 1988. Qual pista nossa “Lei Maior” oferece sobre
administração financeira e orçamentária?
De substancial, que temos não um, mas três
orçamentos anuais: orçamento fiscal, orçamento da seguridade social e orçamento
de investimento das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a
maioria do capital social com direito a voto. Tais orçamentos integram o dito
“orçamento federal”, uma expressão usual para a Lei Orçamentária Anual (LOA).
Em tese, a Previdência Social, uma peça do
orçamento da seguridade social, articula-se com os demais orçamentos na LOA sem
prejuízo dos fundamentos constitucionais que lhe são próprios, especialmente o
princípio da solidariedade entre gerações que já tivemos oportunidade de
debater em texto anterior (aqui). Essa autonomia do nosso sistema de proteção social é
assegurada por suas múltiplas fontes de custeio, notadamente nos regimes
públicos da Previdência Social.
Porém, na prática a teoria é bem outra,
considerando toda a sorte de mistificação neste Cavalo de Tróia que a gestão
Bolsonaro/Guedes quer fazer passar com a Reforma da Previdência. “Que prática é
esta?”, indagariam os(as) nossos(as) valentes três leitores(as) que chegaram
até aqui. Nada mais do que confundir orçamento fiscal com orçamento da
seguridade social, sobrepondo o primeiro ao segundo.
Ora, não é esta a tônica de quem defende a
reforma previdenciária desde o ilegítimo governo de Michel Temer? Avacalhar o
debate previdenciário animando a torcida com o bumbo
midiático em torno do “rombo na Previdência”.
Onde mora o busílis? Na concepção do que
venha a ser déficit previdenciário. Replicar qual se fosse uma criança na 9ª
série ou o presidente no Twitter que déficit é a situação na qual
despesas superam receitas ("tá ok?") diz tudo e não resolve nada.
“Credo em cruz! Tripudiaram da lógica!”,
suspeita o(a) leitor(a) sobrevivente.
Ora, bastaria olharmos a “pizza” lá em
cima para confirmar a lógica das coisas no alerta certeiro do economista Eduardo Fagnani[1]: enquanto algumas poucas milhares de
famílias beneficiam-se da grossa fatia do produto interno bruto (PIB) absorvida
pelo pagamento de juros e serviços da dívida - despesas financeiras (ou “gastos
secundários” para os fluentes em economês...) que ultrapassam 40% do orçamento
federal e são mantidas intocáveis pela Emenda Constitucional nº 95, que
congelou os gastos sociais por 20 anos[2] -, trabalhadores(as) e empregadores(as)
contribuem o equivalente a 7,5% do PIB com despesas previdenciárias - quase 25%
do orçamento - cujos beneficiários(as) diretos(as) e indiretos(as) somam 80
milhões de brasileiros(as).
Diante deste colossal conflito distributivo, criam-se questões artificiais. Sem delongas, falemos o óbvio: são artificiais porque tal “rombo” inexiste. O governo de Jair Bolsonaro, em linha com o governo golpista que o antecedeu e sob beneplácito dos jornalões, faz tábula rasa do que aquele texto que anda fora de moda – a Constituição de 88 – diz a respeito do custeio da Previdência Social.
É simplesmente inconstitucional fazer crer
que o custeio da Previdência Social esteja desvinculado do orçamento da seguridade social, o qual é gerido conforme o modelo tripartite de financiamento:
Governo, empresas e trabalhadores. Essa tríplice forma de custeio viabiliza o
Regime Geral da Previdência Social (RGPS), responsável pelos benefícios e serviços previdenciários
da massa dos(as) trabalhadores(as) abrangidos pela Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT).
Afinal de contas, qual é a cretinice aqui? Nada mais que um
blefe contábil: omitir, nas narrativas sobre a Previdência Social, as obrigações constitucionais do Governo Federal com o custeio
da Seguridade
Social. A participação do Estado brasileiro no orçamento da seguridade social ocorre mediante recolhimento de tributos específicos (COFINS, CSLL entre outros) cuja
arrecadação tem sido desviada de sua finalidade original para cobrir despesas financeiras. Para Maria Lúcia Fatorelli, coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, o nó górdio da questão tributária no Brasil é camuflado com doses cavalares de desonestidade intelectual [3]:
O rombo das contas públicas não está nem
nunca esteve na Previdência Social. O rombo das contas públicas está é no
sistema da dívida pública.
Ora, malgrado se mantenham a Desvinculação
das Receitas da União (DRU) – retirada de recursos da Previdência Social para
outros fins – e as recorrentes isenções a determinados
setores econômicos no âmbito das contribuições previdenciárias –, pasme, em plena crise de arrecadação com a galopante informalização das relações de
trabalho que jaz no desemprego e subemprego massivos –, ainda assim a Seguridade Social apresenta-se superavitária.
A Associação Nacional dos Auditores
Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP) é cristalina na desconstrução que
faz do blá blá blá sobre o “rombo” na Previdência Social, ao expor o
saldo positivo no balanço entre receitas e despesas seguindo estritamente o que
diz a Constituição Federal acerca do orçamento da seguridade social[4]:
Desde a aprovação da Constituição até 2015
(inclusive) o superávit de recursos na Seguridade Social tem sido
impressionante, conforme dados oficiais anualmente segregados pela Anfip. A
sobra de recursos foi, por exemplo, de R$72,7 bilhões em 2005; R$ 53,9 bilhões
em 2010; R$ 76,1 bilhões em 2011; R$ 82,8 bilhões em 2012; R$ 76,4 bilhões em
2013; R$ 55,7 bilhões em 2014; e R$11,7 bilhões em 2015.
A inversão ideológica no debate previdenciário,
reiteramos, é tomar a Seguridade Social por mero apêndice do orçamento
fiscal.
Sob o mantra do "controle dos gastos", cresce a falácia de que o orçamento da seguridade social tenha de estar a reboque de uma política econômica comprometida com o interesse privado dos(as) que vivem de rendas com a rolagem da dívida pública. Trocando em miúdos: bancos e demais agentes do mercado financeiro. Política essa que, reeditando o ideário neoliberal, mostrou-se, em diferentes cenários nacionais, incapaz de balizar qualquer resposta coerente à crise da arrecadação e ao desemprego estrutural.
Sob o mantra do "controle dos gastos", cresce a falácia de que o orçamento da seguridade social tenha de estar a reboque de uma política econômica comprometida com o interesse privado dos(as) que vivem de rendas com a rolagem da dívida pública. Trocando em miúdos: bancos e demais agentes do mercado financeiro. Política essa que, reeditando o ideário neoliberal, mostrou-se, em diferentes cenários nacionais, incapaz de balizar qualquer resposta coerente à crise da arrecadação e ao desemprego estrutural.
Ao(à) leitor(a) que chegou até aqui
(ufa!), pedimos um último esforço: olhe novamente para a "pizza" lá em cima.
E aí, você que não é o Paulo Guedes, o Luciano Huck nem a "tia do WhatsApp" (que queria porque queria chamar o Huck de genro...)? Saciado(a) com a fatia que te sobrou?
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