Publicado originalmente em Prensa de Babel (aqui).
Padrões de beleza, violência simbólica, cabelos e representatividade
Por Renata de Souza Francisco*
Como a maioria das meninas negras que nasceram na década de 80,
fui apresentada desde muito nova aos vários métodos de tortura capilar. Tortura
sim! Porque hoje entendo tudo que estava por trás daqueles alisantes infernais
que queimavam meu coro cabeludo, ardiam meus olhos e era motivo de choro e
sofrimento em minha casa a cada 2 ou 3 meses. A hora de cuidar do cabelo era o momento
mais traumático do meu dia.
Cresci odiando pentear os cabelos. Achava que um dia meus olhos se
assemelhariam a de uma oriental. A força e os rabos de cavalo feitos em meus
cabelos eram extremamente apertados. Tudo em nome de não deixar nenhum fio se
rebelar e mostrar que de fato eu não tinha cabelos lisos. Meu cabelo era quase
assunto do Código Penal, como costumavam dizer popularmente. Era o cabelo
bandido: ou estava preso ou armado. Logo, era perigoso em qualquer das suas
formas de apresentação.
À medida que fui crescendo, incorporei o argumento irrefletido, do
senso comum, de que o cabelo alisado se justificava por ser mais fácil de
cuidar e uma alternativa “legal” ao cabelo bandido, afinal meu cabelo era
classificado como o cabelo ruim, o cabelo de pico, o cabelo duro e outras
coisas do gênero.
Há mais ou menos dois anos atrás, resolvi não mais alisar meus
cabelos. E, junto com essa decisão, veio uma enxurrada de questionamentos e uma
leve crise existencial. Além de questões existenciais, tive uma profunda crise
de representatividade. Onde estão as mulheres negras de cabelo natural
bem-sucedidas? Quais atrizes negras fazem papel de destaque? Quantas
jornalistas negras vejo na TV?
Comecei a perceber que não faltavam apenas mulheres negras com seus black power na
mídia, faltavam pessoas negras como um todo, com cabelo liso ou natural. Não
via pessoas negras em posição de destaque, em profissões bem remuneradas.
Faltava representatividade. Infelizmente, ainda sou a única negra a frequentar
alguns espaços de poder em uma condição “privilegiada”, o que me levou a mais
questionamentos.
Aos olhos de quem não é negra ou é negra e nunca questionou seu
cabelo alisado, minhas inquietações poderão parecer algo menor. Só que, atrás
de um cabelo alisado, existe um campo de disputas por narrativas e poderes.
Narrativas ideológicas em que o padrão eurocêntrico se estabelece às custas da
autoestima e do sacrifício das muitas mulheres negras, que eram e ainda são
“submetidas”, como disse no início, a um verdadeiro ritual de tortura.
Que fique nítido: não quero dizer que todo mundo tenha de fazer
uma transição capilar ou queimar as chapinhas e os alisantes em praça pública.
Se quiser continuar alisando o cabelo, ok! Não penso que o cabelo alisado, por
várias questões que apontarei abaixo, deslegitime o discurso engajado e
consciente. Tenho consciência de que a posição de alisar ou deixar de alisar é
imposição. Não podemos sair de uma e cair em outra.
Alguns me dirão: “Que exagero! O alisante não pula na cabeça de
ninguém”. Sim! Concordo. A colonização do pensamento e as necessidades
espelhadas no paradigma eurocêntrico criaram amarras, ou melhor, alisantes para
uniformizar os cabelos e os pensamentos. Nós, mulheres negras, para sermos
aceitas no mercado de trabalho, na escola e no mercado matrimonial, fomos
obrigadas, durante muitos anos, a alisarmos nossos cabelos. Ou seja, sofremos
uma violência silenciosa, do tipo que a sociedade naturaliza e ninguém
questiona.
Um tipo de violência branda, uma violência que usa artifícios
sutis para que as regras impostas pelos que dominam sejam até desejadas. O
sociólogo francês Pierre Bourdieu cunhou o conceito de “violência simbólica”,
que tomo a liberdade de usá-lo aqui, para pensar a colonização e a normatização
de nossos corpos. Afinal, o corpo da mulher sempre foi um campo de disputas,
não ficaria o cabelo da mulher negra fora dessa seara.
A violência simbólica “consiste em uma forma de aceitação de
crenças, regras partilhadas como se as mesmas fossem normais e naturais”. A
ideia do amor materno, a crença de que é papel da mulher cuidar da casa e dos
filhos sozinha, de que homens não sentem medo e não podem chorar, dentre
outras. Com o alisamento do cabelo é assim, já está estabelecido há muito tempo
que alisar o cabelo era uma etapa considerada “normal” na vida de uma menina
negra.
O que gerou anos de inflexão da mulher negra sobre seus cabelos. E
não as culpo ou, melhor, não me culpo. Pensar no cabelo é pensar em autoestima,
é pensar nossa relação com o mundo. Pensar o cabelo das mulheres negras alisado
é pensar em não sofrer bullying na
escola, é não ter sua capacidade posta em dúvida porque usa seu cabelo natural.
Alisar seu cabelo é ter certeza de que terá um par para dançar na festa junina,
é a possibilidade de figurar na lista das garotas bonitas da sala quando se
está na quinta série. Coisas que para uma mulher branca adulta pode parecer não
ter muita importância, mas que para uma criança terá impactos reais para o resto
de sua vida adulta.
À medida que comecei a ler mais e entender mais sobre minha
condição de mulher e negra na sociedade brasileira, a vontade de não alisar
mais meu cabelo só foi aumentando. Mas, como já disse, essa vontade vem cheia
de dúvidas e de medos. A transição de uma vida inteira de cabelo alisado para
um cabelo natural envolve uma série de etapas esteticamente não muito
agradáveis. Adiei e sabotei o processo várias vezes. Quando via uma parte do
meu cabelo natural contrastando com o restante alisado, sentia grande incômodo
e infelicidade com minha autoimagem.
Conversando com um amigo sobre as dúvidas e medos que estava
enfrentando em meu processo de transição capilar, ele me apresentou uma autora estadunidense
negra chamada Bell Hooks, que escreveu um texto que me fortaleceu de uma forma
que não tive mais dúvidas sobre minha decisão. O texto chama-se: “Alisando
nosso cabelo”. Nesse texto, a autora faz uma reflexão sobre a impressão dela
acerca do processo de alisar os cabelos com o extinto pente quente. Em um
primeiro momento, esse cabelo alisado estava vinculado aos anseios de se tornar
mulher, de proporcionar bem-estar e da criação de vínculos entre mulheres.
Hooks nos conta que, como viviam em um mundo segregado
racialmente, não era evidente a ideia de que as mulheres negras estavam lutando
para colocar em prática um padrão de beleza branco, ou seja, o fato de mulheres
brancas serem consideradas um grupo feminino mais atrativo e as mulheres negras
de cabelo liso serem mais aceitas do que as de cabelo crespos e encaracolados
acabou estabelecendo um padrão de beleza.
Ela segue dizendo que no “patriarcalismo capitalista, essa postura
representa uma imitação da aparência do grupo branco dominante e, com
frequência, indica um racismo interiorizado, um ódio a si mesmo que pode ser
somado a uma baixa autoestima”. Mais uma vez, não me sinto culpada por algum
momento de minha vida ter tentado, assim como muitos e muitas ainda tentam,
expurgar tudo que me identificasse como negra, porque ser negro(a) no Brasil
não é legal, quase no sentido literal da palavra.
Infelizmente, o racismo que estrutura nossa sociedade nos faz ter
ódio de nossa cor da pele, de nossos cabelos. Identificar-se como negro(a) no
Brasil está além da autodeclaração. É uma questão política. E para alguns é uma
questão de vida ou morte, porque nós negros(as) figuramos no topo das piores
estatísticas neste país.
* Socióloga; Doutoranda em Sociologia Política (UENF); Professora da rede pública
de ensino do Estado do Rio de Janeiro.
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