E
você aí, ainda em cima do muro?
Paulo Sérgio Ribeiro
A
notícia perdeu seu frescor. Há muito, “desceu” as páginas dos jornais[1].
Mas não há por que ignorarmos seu pano de fundo. Ora, uma retrospectiva dos
acontecimentos relativos ao pânico moral, à censura ao ensino e às artes e à
ação (voluntarista ou organizada) da extrema direita em Campos dos Goytacazes –
que, adiantando um segredo de polichinelo, fomenta o pânico para ditar a
censura – nos mostra que se trata de um mal-estar permanente entre nós à medida
que eclodem nessa cidade as tensões sociais de uma ordem burguesa cuja face
assumida é a do Brasil de Bolsonaro:
- Do
que vi e vivi no #elenão em Campos dos Goytacazes (30/09/2018);
- Solidariedade
à Cássia Maria Couto (02/11/2018);
- Bienal
do Livro em Campos: território livre (16/11/2018);
- Em
defesa da liberdade docente – o caso do Liceu de Humanidades de Campos (22/03/2019);
- É
possível conversar com um reacionário? (18/05/2020).
Acrescentamos
a esse cardápio indigesto um fato novo: a ameaça sofrida por Anderson Santos.
Anderson, também conhecido como Andinho Ide, designer gráfico e grafiteiro, foi
alvo de agressões verbais e chegou a ter contra si uma arma de fogo apontada
por um dos agressores durante a realização do seu trabalho artístico. Ei-lo:
Fonte: Folha 1.
As
agressões foram cometidas por quem se viu “atingido” em seu âmago pela crítica
ao Governo Bolsonaro. Encará-las como algo trivial anula qualquer chance de
transitarmos pelo pluralismo de valores inerente ao espaço urbano, pois assim
não dividiremos, mas, se muito, disputaremos o território
nacional com certos eleitores/seguidores de Jair Bolsonaro cada vez mais
incontinentes em seu impulso de reagir a quem se interponha à projeção que
fazem do líder autoritário que lhes prometeu a “liberação” de todas as amarras
do processo civilizatório ou, como diz a antropóloga Jacqueline Muniz, lhes deu
carta branca para um verdadeiro “escracho libertário”. A exposição do belo (e
provocativo) grafite de Andinho Ide teve vida curta, sendo apagada por este
grupelho facistóide:
Fonte: Folha 1.
Afinal,
qual é o lugar da crítica do poder em suas mais variadas expressões numa
ambiência social como a campista? O grafite de Andinho Ide é uma forma de arte
pública. Esta se caracteriza pela sua ampla audiência – dirige-se a todos –
contendo o potencial de provocar reflexões de alcance político na medida em que
não tenha, necessariamente, comprometimento com a imagem institucional do poder
local ou algum fim comercial.
O
trabalho artístico de Andinho Ide foi encomenda de alguém que quis fazer do
muro de sua propriedade uma “tela” para o mundo. O grafite, contudo, não se
restringiria à visão de quem o encomendou, pois, uma vez exposto ao público,
teríamos ali uma mediação possível entre quem (perdoem-me o clichê) se
posiciona neste ou naquele lado do “muro”. Isto, claro, se o mundo social
fosse construído pelo respeito atitudinal como disposição comum daqueles que se
voltam para a arte urbana enquanto elemento em disputa na luta ideológica pelo
governo local e, não menos, como um patrimônio cultural - quanto ao último,
bastaria lembrarmos aqui dos poemas do "Profeta Gentileza" impressos
nos viadutos da Avenida Brasil, na capital fluminense.
Porém,
ao contrário do mundo sonhado pelo imortal "Gentileza", o nosso cotidiano é bem mais incerto e inseguro do que podemos supor. No Brasil 521 d.C e ano 3
da Era Bolsonaro, o direito à liberdade de expressão de Andinho Ide e de quem o
contratou (assim como deste que vos escreve) é primazia de poucos enquanto o
aparato urbano - muros, pontes, marquises, postes etc. - for interditado num
debate público cuja vitalidade se meça pela confluência de diferentes
linguagens e suportes.
O
desembaraço com que se violou, à luz do dia, na terceira maior cidade
do estado do Rio de Janeiro, o direito à livre expressão de uma atividade
artística foi um arbítrio praticado por quem apagaria o grafite naquele muro
movido, quiçá, por um senso de autoconfiança digno do “fazer história com as
próprias mãos” - ou, melhor dizendo, do tentar apagá-la com a própria
estupidez - ao enxergar-se e, talvez, ser de fato militante de uma direita
neofascista incrustrada no aparelho de Estado e, mais do que isso, no coração e
na mente do brasileiro médio.
Tal
estado de coisas nos obriga a qualificar a alusão que fizemos anteriormente
ao processo civilizatório. Para Herbert Marcuse[2],
na interpretação que faz da obra de Sigmund Freud (1856-1939), tal
processo longe está de confundir-se com a visão idealizada de um progresso linear
que a imaginação política do século XIX nos legou quando o assunto é a “evolução
humana”. Coagidos que somos pela cultura, a construção do “eu” é um testemunho
atemporal da renúncia à plena gratificação dos impulsos mais básicos de nossa
estrutura instintiva, confirmando, por um lado, que a história humana é a
história da repressão e, por outro, que a “coação” é a própria pré-condição de “progresso”
no que neste haveria de mais elementar: a superação da existência de seres
humanos equivalente a de qualquer outro animal.
Este
“princípio de realidade” a exigir de nós sempre um preço demasiado alto que é a
nossa domesticação, ironicamente, não nos faz devedores, mas credores da
civilização que nos constituiu, uma vez que o “estado natural” não é dela suprimido.
Nas palavras de Marcuse, o que “a civilização domina e reprime – a reclamação
do princípio do prazer – continua existindo na própria civilização”[3]. Se
tal força primordial do princípio do prazer não cessa mesmo com todo o impacto
que a realidade externa exerce sobre nossa psique, sua latência não só se
mantém em cada um de nós como afeta a própria realidade que a superou.
O
ponto aqui é como avaliar, em cada cenário de época, o quão destrutiva pode ser a dialética da civilização.
No
caso brasileiro, o “retorno do reprimido” é observável pela frequência dos atos
de violência política contra dissidentes sexuais ou partidos e movimentos
sociais que, por definição, defendem um projeto de sociedade que não seja o de
mera conformação à ordem. Há fundado receio por parte da esquerda
institucionalizada sobre o que fazer no 7 de setembro, sobretudo quando o que está
em jogo é o vínculo com uma tradição de lutas por igualdade e
justiça em nosso país.
Não tenho resposta pronta sobre o que fazer. Se não é aconselhável acender uma vela para o golpe em 2022, também não acho exagero afirmar que os cães raivosos estão soltos nas ruas. O que sei ou acho que sei é que, em relação àqueles cães, é inútil fugir deles ficando em cima do muro.
[1]
Folha 1. Grafiteiro de Campos é ameaçado com arma
enquanto fazia trabalho crítico a Bolsonaro. Edição de 06/08/2021. Disponível aqui.
[2]
Cf. MARCUSE, Herbert. Eros e civilização.
Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1975 (6ª edição).
[3]
Ibidem, p.36.
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