Mulheres, teoria social e uma coletânea indispensável*
* Publicado originalmente no Blog
da Biblioteca Virtual do Pensamento Social.
Mariana Chaguri
O
recém-lançado Clássicas do Pensamento Social: mulheres e
feminismos no século XIX com organização e comentários de Verônica Toste Daflon
e Bila Sorj é uma obra que nos ajuda a perceber como a história das ideias e da
produção do conhecimento é também uma história da produção da diferença baseada
em gênero.
A
coletânea reúne trechos de obras de Alexandra Kollontai (Rússia, 1872-1952);
Alfonsina Storni (Argentina, 1892-1938); Anna Julia Cooper (EUA, 1858-1964);
Charlotte Perkins Gilman (EUA, 1860-1935); Ercília Nogueira Cobra (Brasil,
1891-?); Harriet Martineau (Inglaterra, 1802-1872); Pandita Ramabai Sarasvati
(Índia, 1858-1922) e Olive Schreiner (África do Sul, 1855-1920). Autoras
nascidas no século XIX, em diferentes geografias, e que, a despeito da boa
circulação que encontram em seus respectivos tempos históricos, foram se
tornando presenças fugidias nos manuais de teoria social.
Como
apontam as organizadoras, trata-se de um apagamento que se intensificou
conforme o processo de institucionalização das Ciências Sociais foi se
aprofundando em diferentes partes do mundo. Como consequência, essas e tantas
outras mulheres intelectuais passaram, na melhor das hipóteses, a terem suas
existências registradas em compêndios ou manuais de teoria social. Um registro
que não significa, no entanto, o debate sobre suas contribuições à teoria
social, promovendo a marginalização ou mesmo a exclusão de suas ideias dos
balanços e avaliações críticas acerca do estatuto teórico e das inovações
científicas da disciplina.
Ao
apresentar trechos seleccionados de obras, artigos ou textos avulsos – a maioria
deles inéditos em português -, Verônica Daflon e Bila Sorj oferecem subsídios
teóricos e ferramentas analíticas que nos permitem rever, alargar e repensar o
que e quem constitui o cânone clássico da teoria social. Desse modo, a
coletânea oferece uma contribuição fundamental à tarefa de recuperação dos
“elos e [das] genealogias de pensamento de mulheres e de feminismos nas mais
diversas áreas das artes e do conhecimento” (Daflon e Sorj, 2021: 10).
O
esforço empírico e analítico de refazer tais elos é tarefa chave para a
desorganização da dinâmica das relações de poder que hierarquizam, legitimam ou
deslegitimam inovações teóricas e metodológicas, modos de construir problemas
ou perguntas de pesquisa no interior da teoria social, sobretudo aquela classificada
como clássica. Longe de querer dirimir nesta resenha a polêmica sobre o que faz
de uma obra ou um/a autor/a um/a clássico/a, aponto que Clássicas do
Pensamento Social nos ajuda a perceber como tal seleção integra
instituições, escritores/as, críticos/as e leitores/as num mesmo circuito de
trocas intelectuais e culturais, ou seja, ainda que ocupem posições
diferenciais neste circuito, todos/as ajudam a selecionar, colocar em
circulação e legitimar autores/as e obras.
Clássicas
do Pensamento Social nos
permite revisitar a história da teoria social e enquadrá-la como produto de uma
prática coletiva, isto é, moldada pelas relações sociais que a fizeram possível
e, não menos importante neste caso, marcada por uma pedagogia dos textos
clássicos (Connell, 1997). É por meio desta provocação aos conteúdos
substantivos dos clássicos e do cânone que a coletânea nos convida a reexaminar
os problemas, questões, pressupostos e práticas compartilhadas que ajudaram a
construir determinada teoria social como clássica.
Para
tanto, as organizadoras selecionaram autoras de geografias diversas – como
África do Sul, Argentina, Brasil, Estados Unidos, Índia, Inglaterra e Rússia –
que viveram, produziram e disputaram as ideias científicas e os modos de ver e
falar sobre o social e a sociedade em meio às variadas revoluções e
transformações na sociedade, na economia e na cultura que marcaram a segunda
metade do século XIX e o começo do século XX.
Se
em boa parte da história das ideias os anônimos sempre foram mulheres como
apontou Virginia Woolf ([1929] 2014), Raewyn Connell não deixa de observar que
a maioria dos autores clássicos da teoria social: “viveu vidas burguesas
modestas, com suporte do trabalho doméstico de mulheres [mães, esposas, filhas]
em lares patriarcais” (Connell, 1997:1527). Entre o anonimato das ideias e o
trabalho de cuidado e suporte à produção intelectual de pais, irmãos, maridos,
amantes ou amigos, diferentes mulheres sistematizaram ideias, teorias e
conceitos para investigação e análise do mundo social, bem como se lançaram nos
debates políticos e embates públicos de seus tempos históricos.
No
caso das autoras selecionadas para integrar a coletânea Clássicas do
Pensamento Social, estamos diante de mulheres que em diferentes
espaços sociais e geográficos compartilharam trajetórias pessoais semelhantes:
“jovens viúvas, ‘solteironas’, ‘desquitadas’, mulheres sem filhos, mães
solteiras, órfãs de pai desde cedo” (Daflon e Sorj, 2021: 14). As oito autoras
também compartilham outro traço biográfico comum: foram viajantes ou migrantes,
“deslocando-se entre culturas e pessoas, entre o público e o privado,
desenvolvendo olhares comparativos e singulares” (Daflon e Sorj, 2021: 15).
Ou
seja, mulheres que longe das funções de cuidado e de suporte à reprodução de
vidas burguesas mais ou menos modestas em lares patriarcais, percorram
acidentados caminhos pessoais e coletivos para se realizarem na e por meio da
vida intelectual. Circunstâncias que, segundo as organizadoras, marcaram suas
ideias e modos de pensar e falar sobre a sociedade, sendo possível observar que
seus escritos também estão permeados por “subjetividades femininas formadas de
maneira crítica e não usual” (Daflon e Sorj, 2021: 15).
Clássicas
do Pensamento Social faz emergir, então, uma outra história das ideias,
colocando uma questão chave para o tempo presente: que teoria social clássica
podemos fazer emergir quando dialogamos – com as recusas e adesões típicas de
qualquer diálogo intelectual crítico – com as inovações teóricas e
metodológicas, os modos de construir problemas ou perguntas de pesquisa que
foram formuladas pelas autoras e obras selecionadas?
Analisando
em conjunto os trechos selecionados pelas organizadoras, notamos que se trata
de uma teoria social que toma como objeto de análise as dimensões privadas e
pública do social, evitando dualismo e procurando, a todo momento, colocá-las
em relação. Como efeito, temos uma ciência da sociedade que debate as relações
entre Estado, mercado e família a partir de pontos de vistas variados, chamando
a atenção para a domesticidade, para a reprodução da vida social e para as
variadas fontes de legitimação do poder e da dominação. Trata-se, também, de
uma teoria social que tem na posicionalidade dos atores sociais um elemento
chave de investigação, adotando perspectivas que tomam diferenças de gênero,
classe e raça como centrais para a compreensão do social. Como resultado, temos
a desestabilização de ideias unitárias de comunidade, autoridade, status etc.
Neste
ponto, importa observar que ao enquadrar o social a partir daquilo que hoje
chamaríamos de uma perspectiva de gênero, as autoras e obras selecionadas
indicam que a imaginação feminista atuou ativamente nas disputas de ideias, conceitos
e categorias que ajudaram a estruturar noções como a de nação, nacionalismo,
Estado Nacional, direitos e cidadania sobretudo a partir da segunda metade do
século XIX. Ao apontar para a historicidades das mediações políticas e
analíticas entre gênero, nação, Estado e cidadania, por exemplo, a coletânea
nos ajuda a explorar as conexões entre o feminismo do século XIX e aspectos de
variadas imaginações anticoloniais e anticapitalistas.
Vista
em conjunto, a coletânea Clássicas do Pensamento Social nos
apresenta autoras cujas biografias também podem ser lidas como trajetórias
coletivas de mulheres intelectuais na virada do século XIX para o XX, com seus
alcances e limites, bem como com os trânsitos – mais ou menos acidentados –
entre a casa e a rua, mas também entre classes, países, debates teóricos e
controvérsias públicas. Do mesmo modo, aponta para o amálgama entre imaginação
feminista, demanda por diretos, ação política e a produção de ideias. Ao
percorrer os trechos selecionados na coletânea, nota-se que este amálgama fez
emergir uma teoria social que torna as noções de igualdade e diferença
interdependentes, ainda que em tensão.
Se,
historicamente, as mulheres permaneceram fora do tempo ou do acontecimento
(Perrot, 2007: 9), num universo socialmente confinado e restritas a falar sobre
os “momentos que não se narram, momentos que não se notam” (Souza, 2009:100),
Verônica Daflon e Bila Sorj apontam que um tempo possui muitas histórias e que
são variados os modos de experimentá-lo, reconstruí-lo e analisá-lo. Ou seja,
contextos intelectuais são constituídos por controvérsias e disputas, sendo
fundamental construir uma história das ideias e uma história intelectual das
Ciências Sociais cujo repertório teórico e metodológico não tome mulheres
intelectuais como sujeitos além ou aquém do tempo, ponto chave para afastá-las
de noções como pioneirismo ou mesmo de uma política de representação que não
desestabiliza cânones ou modos de falar e ensinar teoria social.
Clássicas
do Pensamento Social contribui para colocar os ativismos, os escritos e
as ideias dessas autoras em contexto, permitindo compreender como elas atuaram
sobre os modos de investigar e refletir sobre a sociedade, bem como construíram
conceitos e categorias de análise. A coletânea, portanto, nos ajuda a
compreender, analisar e avaliar essas autoras como agentes que pertencem
intelectualmente a seus tempos pessoais e sociais, participando ativamente dos
espaços no qual as controvérsias públicas são travadas e os imperativos da
inovação científica demandados (Castro e Chaguri, 2020).
Referências
CASTRO,
Bárbara; CHAGURI, Mariana. (2020). Gênero, tempos de trabalho e pandemia: por
uma política científica feminista. Linha Mestra, n.41, p.23-31.
Disponível em: https://doi.org/10.34112/1980-9026a2020n41ap23-31
CONNELL,
Raewyn. (1997). “Why is classical theory classical?,” American Journal
of Sociology, 102, n. 6, p.1511-1557.
DAFLON,
Verônica Toste; SORJ, Bila. (2021). Clássicas do pensamento social.
Mulheres e feminismos no século XIX. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.
PERROT,
Michelle. (2007). Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto.
SOUZA,
Gilda de Mello. (2009). Exercícios de leitura. São Paulo: Duas
Cidades; Editora 34.
WOOLF, Virgina. (2014). Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas.
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