terça-feira, 17 de agosto de 2021

O discurso do Ministro Milton Ribeiro

 

Transparência e coerência em relação ao projeto político que representa. 

Por Jefferson Nascimento*

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Texto publicado originalmente no site "A Terra é Redonda". Republicado aqui com inserções de duas novas fontesii e xiv.

 

Em entrevista para a TV Brasil, o Ministro da Educação, Milton Ribeiro, disse que a "Universidade deveria, na verdade, ser para poucos"[i]. Além disso, argumentou que as “vedetes”, ou seja, as estrelas devem ser os Institutos Federais para formarem técnicos. A fala é amplamente coerente com o projeto que ele defende. Se a fala gera incômodo, não é ela que está fora do lugar. O combate deveria ser ao projeto político em curso. A imprensa, que se faz de espantada com a entrevista de Milton Ribeiro, defende integralmente o conteúdo.

Do mesmo modo para com Bolsonaro, a grande imprensa diz se espantar com a forma, mas é fiadora do conteúdo econômico. Inclusive, em reportagem de 08 de agosto no The Intercept Brasil, João Filho apresenta uma série de estudos que evidenciam a ausência de pluralidade nos grandes veículos de comunicação, vetando opiniões contrárias às reformas previdenciária, administrativa, trabalhista e tributária, desde o governo Temer até o atual.[ii]

Milton Ribeiro está no lugar correto e incomoda porque sua fala é mais ilustrativa do projeto em curso do que as classes dominantes desejam. Vamos por partes.

 

I - O CONTEXTO

1) Qual o papel de um Ministro?

São agentes políticos diretamente subordinados ao Presidente com o papel de auxiliá-lo diretamente. O Presidente chefia o Executivo cuja administração direta é composta por ministérios e secretarias de Estado que devem desenvolver ações de orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades vinculados à respectiva pasta. Conforme o Artigo n.º 87 da Constituição Federal, devem "praticar os atos pertinentes às atribuições que lhe forem outorgadas ou delegadas pelo Presidente da República." Em outras palavras, compete aos ministros dar um rumo estratégico coerente com o projeto político do Presidente.

2) E qual é esse projeto político? Quais seriam as atribuições outorgadas ou delegadas?

O projeto se enquadra no ideário neoliberal e se desdobra nos seguintes compromissos educacionais. No slide 41 do Plano de Governo[iii] (sim, o Plano de Governo foi feito em slide), a equipe de Bolsonaro resume suas prioridades na Educação:

a)      os recursos gastos (palavras contidas no plano) eram considerados altos e a melhoria de desempenho deveria ocorrer sem gasto adicional (citando literalmente: "É possível fazer muito mais com os atuais recursos! É o nosso compromisso", frase escrita em caixa alta);

b)     Combate à "doutrinação e sexualização precoce" (sim, está no plano);

c)      "[...] a prioridade inicial deve ser a educação básica e o ensino médio/técnico".

Estava no plano, portanto, que não haveria ampliação de recursos. Embora não estivesse escrito que haveria redução, seria possível inferir à luz do teto de gastos que teríamos, no melhor dos cenários, dificuldade de custeio dada a possível ampliação de alunos matriculados e o processo inflacionário.

Em termos de gasto com o Ensino Superior, considerado elevado pelo governo, também a informação é distorcida. O Brasil é um dos países com menos pessoas com Ensino Superior completo e com a menor taxa de doutores por habitantes. Em 2019, apenas 21% das pessoas entre 25 e 34 anos possuía Ensino Superior e 0,2% das pessoas entre 25 e 64 possuía doutorado. A média da OCDE - organização que Bolsonaro negociou com Trump a indicação do Brasil - é de 44% de pessoas com Ensino Superior na faixa 25 a 34 anos e, entre os 35 países analisados, o Brasil ficou entre os três piores na proporção de doutores.[iv] Em relação aos valores, o percentual do PIB investido na educação (como um todo) só é maior do que em alguns países desenvolvidos devido à proporção de jovens ser muito maior no Brasil. No entanto, o gasto por aluno no Brasil é menor do que a média da OCDE em todas as faixas[v]:

·        Ensino Fundamental (anos iniciais): US$ 3,8 mil no Brasil contra US$ 8,6 mil na média da OCDE;

·        Ensino Fundamental (anos finais): US$ 4,1 mil no Brasil contra US$ 10,2 mil na média da OCDE;

·        Ensino Médio e Técnico: US$ 4,1 mil no Brasil contra US$ 10 mil na média da OCDE;

·        Ensino Superior: US$ 14,2 mil no Brasil contra US$ 16,1 na média da OCDE;

Ou seja, não é que o Brasil gasta muito com o Ensino Superior. O país investe menos, mas ainda está abaixo da média dos países da OCDE, para a qual o Brasil pleiteia ingresso. O fato é que o investimento na Educação Básica é ridiculamente baixo. A retirada do Superior para realocar na Educação Básica não é uma solução para o país. Mas, é uma solução para o conteúdo do projeto de país que Milton Ribeiro foi nomeado para implementar e que Bolsonaro, a despeito de algumas oposições de forma, foi eleito com apoio de parte da elite para nomear ministros alinhados. A conivência da grande imprensa se dá de modo simples: falas como a de Milton Ribeiro são criticadas, mas as medidas econômicas que são o carro-chefe do projeto são defendidas, com direito ao malabarismo retórico de tratar a chamada "equipe econômica de Guedes" como algo à parte do bolsonarismo e dos militares. Como se o núcleo ideológico fosse o defensor das pautas de costume e o núcleo econômico não possuísse qualquer ideologia e agisse de modo técnico com uma impossível neutralidade.

Tampouco é surpreendente o tratamento dado ao sistema de fomento à pesquisa, incluindo CAPES e CNPQ. No mesmo planoii, no slide 48, encontramos textualmente: "O modelo atual de pesquisa e desenvolvimento no Brasil está totalmente esgotado". Frase que é complementada com a retórica de que a pesquisa não deveria depender exclusivamente de recursos públicos. A retórica generalista de que o modelo está esgotado, não encontra amparo na realidade. O modelo depende principal, mas não exclusivamente de recursos público e isso não está esgotado, uma vez que os principais países em pesquisas científicas dependem principalmente, tal qual o Brasil, de recursos públicos[vi]. Exemplos:

·        Estados Unidos: 60% dos recursos que financiam pesquisa são públicos e 73% dos estudantes do Ensino Superior estão em universidades públicas;

·        Europa: 77% dos recursos públicos que financiam pesquisa são públicos.

Logo, a saída razoável seria atrair mais recursos privados, que tendem a se concentrar em algumas poucas áreas e prioritariamente em ciência aplicada e não reduzir os recursos públicos, como vem ocorrendo. Para se ter uma ideia, o Brasil apresentou queda entre 2014 e 2018, passando de 1,27 para 1,26% do PIB investidos em ciência, enquanto a média mundial é de 1,79%. O impacto é ainda mais brutal se lembrarmos do encolhimento no PIB entre 2015 e 2016. Além disso, nesse período o investimento em pesquisas cresceu 19,2%, mais do que os 14,8% de crescimento do PIB no mundo. No mesmo 2018, o país tinha 888 pesquisadores por milhão de habitantes contra 1.368 por milhão na média mundial. A Argentina tinha naquele ano 1.162 pesquisadores por milhão de habitantes. Em suma, pelos principais indicadores, o país não estava "gastando muito" com ciência e nem tinha "excesso de pesquisadores"[vii].

 

II - ONDE ESTÁ A COERÊNCIA:

Diante de dados que negam a o discurso do governo, como é possível afirmar a coerência de Milton Ribeiro?

Em texto publicado no site A Terra é Redonda e no Blog Autopoiese Virtu[viii], escrito em parceria com Leonardo Sacramento, apontamos as afinidades entre o neoliberalismo e a sua negação à História e ao conhecimento científico contextualizado. E esse governo é eleito e governa com ampla fidelidade a esses princípios, seja nas propostas de privatizações em consórcio com o Centrão, que avançam para além do que os próprios neoliberais de outros países fizeram (como o caso da Eletrobrás[ix] e dos Correios[x]), seja nas privatizações infralegais (venda de campos de petróleos, de subsidiária de estatais e outros), seja nas chamadas reformas estruturais (como a Reforma da Previdência; a manutenção do texto de Gastos; a proposta de Reforma Administrativa; e o aprofundamento da precarização do trabalho por meio da MP 1045, que intensifica a retirada de direitos levada a cabo pela Reforma Trabalhista). Quer dizer, a execução desse encolhimento do Estado segue o que estava previsto no plano de governo entre os slides 51 e 67ii. Também aí há uma coerência.

Essa matriz neoliberal é o que tem consenso nas grandes empresas de comunicação de massa e na elite econômica. Essas empresas, conforme evidenciou João Filhoii, “construiu na opinião pública uma falsa sensação de haver consenso em torno das reformas”, seja com o terrorismo praticado pelo SBT associando a não aprovação da reforma da previdência com o risco de não recebimento de salário em campanhas publicitárias, seja pela omissão de informações (relatório final da CPI da Previdência questionando a versão do déficit previdenciário, as perdas de direitos da CLT, etc).

A estratégia dessas empresas de comunicação para enfrentar o desastroso governo Bolsonaro é, portanto, dissuadir o olhar da população. Usam a retórica autoritária, as trapalhadas na saúde e as propostas com foco eleitoreiro como se isso provassem que Bolsonaro "não é neoliberal ou não o é suficientemente" (seja lá o que isso signifique). A estratégia é surrada, mas sempre ressuscitada. Macri, após o fracasso, deixou de ser o liberal dos sonhos do MBL, como o era nas eleições e no início de mandato. Bolsonaro idem. No entanto, os arroubos autoritários de Bolsonaro nada têm a ver com ser ou não neoliberal. Não nos esqueçamos que um dos principais laboratórios do neoliberalismo foi a ditadura chilena liderada por Augusto Pinochet. Com direito a aceno público pessoal de Milton Friedman e à seguinte constatação de Rolf Luders, economista chileno orientado por Milton Friedman e ex-ministro de Pinochet: "[...] em última instância, o Chile passou pelo que os seus professores de Chicago já esperavam."[xi] Isto é, ser autoritário não é incompatível com o neoliberalismo. Ao contrário, como nos mostra Naomi Klein em A Doutrina do Choque, disponível em livro e documentário, a redução das funções sociais do Estado tende a vir acompanhada da ampliação das funções repressivas. No caso brasileiro, para além do Estado policial vigente há algum tempo, o governo Bolsonaro inova apenas na tática do confronto com outros poderes. O que, por um lado, mantém sua base acesa. Por outro, ameaça com intento de reduzir a disposição de ações de oposição bem como utiliza as reações teatrais na imprensa e nas “temidas” (perdoem a ironia) notas de repúdio das autoridades para desviar a atenção popular e ocupar autoridades políticas a fim de acelerar a implementação das medidas. Mais palavras coerentes de um Ministro: “A oportunidade que nós temos, que a imprensa está nos dando um pouco de alívio nos outros temas, é passar as reformas infralegais de desregulamentação [...] e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN, de ministério da Agricultura, de ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação”.[xii]

Tal como Weintraub, Salles caiu por pressão do Congresso e da imprensa. Não porque esses grupos fizessem uma oposição substancial para reverter as medidas que os ex-ministros implementaram e, sim, porque transparência demais acerca das medidas neoliberais sempre comporta um risco de alertar a população e fazê-la reagir.

Milton Ribeiro, com mais polidez, foi também transparente. Ora, não é totalmente mentira quando diz: "Tenho muito engenheiro ou advogado dirigindo Uber porque não consegue colocação devida. Se fosse um técnico de informática, conseguiria emprego, porque tem uma demanda muito grande". O que, talvez, pegue mal é admitir que não há um projeto para aumentar a complexidade econômica do país e, assim, absorver essa força-de-trabalho. A transparência de Ribeiro incomoda o consórcio que finge “não apoiar apoiando” o governo. Mas, isso também estava no plano de governo. O slide 49ii fala das vantagens comparativas. O que significa que o país deve enfatizar naquilo que é capaz de produzir a um custo de oportunidade menor que seus concorrentes. Em termos de Brasil, um site voltado para o agronegócio resume nossas vantagens comparativas: “o Brasil continua tendo vantagens estratégicas comparativas muito grandes em relação aos nossos concorrentes emergentes: “(a) não tem problemas étnicos ou religiosos sensíveis; (b) não tem problemas de fronteira;  (c) é uma democracia constitucional consolidada; (d) tem um setor agropecuário e do agronegócio considerado dos melhores do mundo - tem terra, sol e água em abundância para produzir alimentos, sem cataclismos naturais como terremotos, vulcões, etc.; (e) tem um mercado interno pronto para consumir assim que as pessoas tenham recursos; (f) fala um único idioma”[xiii].

Ora, lembrem-se o setor do agronegócio um dos setores que, além de ocupar o topo da acumulação de capital ao lado dos rentistas, consegue melhor se fazer representar na política nacional. Por isso, a ausência de qualquer elemento que remeta a um potencial de industrialização, incremento tecnológico e de fortalecimento de setores complexos que demandam mais produção científica não pode ser lida apenas como uma mensagem setorial. Mas, a uma visão acerca do que é viável investir no país para esses setores. Por isso, a desregulamentação das leis trabalhistas que precariza cada vez mais nossa força de trabalho ocorreu na Reforma Trabalhista de 2017 e está sendo intensificada pela MP 1045 sem que isso represente um constrangimento às classes dirigentes. Que a Panasonic deixe de produzir televisores é uma decisão estratégica face a um mercado “pronto para consumir”, mas com recursos limitados, inclusive para a subsistência. Que a Ford feche suas fábricas e mantenha a venda de importados de luxo é completamente coerente com uma sociedade em que a desigualdade aumenta e a chamada classe média cada vez mais compromete seus recursos com gasto de primeira necessidade (comida, vestuários, contas de consumo em energia, combustível, etc). O cenário que se consolida é de aproximação a distopia neoliberal.

O rumo da nossa economia é de intensificação da desindustrialização, que já vem ocorrendo há uns 30 anos com ampliação do setor de terciário, seja o desigual setor serviços, que contempla desde profissionais liberais a atendente de telemarketing e serviços domésticos, seja o comércio. Um comércio cada vez mais restrito aos produtos de primeira necessidade e/ou de qualidade e valores baixos. A redução da complexidade econômica resulta em redução da demanda por formação superior. Desde os anos 1980, a produtividade brasileira se encontra estagnada. Quando, entre os anos 1950 a 1980, a produtividade cresceu, em média, 3,5% ano, um dos motivos centrais era a migração de trabalhadores de áreas tecnologicamente menos complexas para áreas mais complexas, como a indústria e alguns segmentos do setor de serviços. Dos anos 1980 para cá, esse processo perdeu força e, some-se a isso, houve uma baixa de adoção relativa de tecnologias. O que, junto a outros fatores, como distorção tributária, provocou uma estagnação no incremento de produtividade.[xiv] Sem incremento de produtividade e de complexidade econômica, a qualificação da mão-de-obra, por si só, não pode transformar a realidade econômica do país.

Em economias altamente desenvolvidas, trabalhadores com formação técnica são altamente demandados também, Ribeiro não mentiu nisso! O que ele omitiu é que esses trabalhadores elevam a necessidade de formação média da sociedade, uma vez que ocupações que demandam pouca ou nenhuma qualificação e, portanto, com baixa remuneração, deixam de atrair interessados e deixam de ser relevante na composição de uma força de trabalho nacional, em média, cada vez mais complexa tecnologicamente e, portanto, qualificada. O que Ribeiro omite é que, a despeito de uma quantidade diplomados abaixo da média da OCDE, será a formação superior a sofrer retração para ampliar a formação técnica com a manutenção de pessoas com pouca ou nenhuma qualificação que precise e, por isso, aceite a se submeter a trabalho precarizado. Não é o piso que se elevará, mas o teto que se rebaixará para que as pessoas realizem o mantra bolsonarista nas eleições: “As pessoas terão que escolher empregos ou direito”. Ribeiro, portanto, verbaliza o que já estava escrito e que era dito em forma de frases de efeito.

 

III – EM SUMA...

Coerência e transparência não querem dizer que Ribeiro age para o melhor do país. Ribeiro age em prol do melhor dos mundos para a realização de certos interesses de frações da classe dominante. Para o bem de uma minoria que acumula a grande parte do capital. Nessa linha, não há mesmo motivos para ampliar o acesso ao Ensino Superior. Que parte da classe média escolha um Curso Técnico e que a maciça maioria das pessoas mais pobres deixem de sonhar alto, que elas e seus filhos se mantenham a postos para trabalhos precários e que, no máximo, se muito estudar e contrariar as estatísticas, conquiste uma formação técnica de nível médio em vez do sonhado acesso à universidade. O funil será cada vez mais estreito!

De modo algum, o problema é a formação técnica de nível médio. O problema que está sendo evidenciado, precisamente a limitação do horizonte daqueles que não dispõem de capital suficiente, é reflexo do projeto de reprimarização da economia brasileira. E, portanto, não é um ponto fora da curva, é parte de uma estratégia que visa inserir o país no mundo globalizado a partir das vantagens comparativas, sem que seja parte do projeto nacional um salto de desenvolvimento que poderia possibilitar uma melhoria da qualidade de vida.

*Jefferson Nascimento é professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP). Autor do livro Ellen Wood – o resgate da classe e a luta pela democracia (Appris).



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