terça-feira, 7 de novembro de 2017

Ives Gandra: arauto da regressão histórica

Por Paulo Sérgio Ribeiro
                
Não, a história não anda para trás e toda e qualquer tentativa de desmenti-lo tropeça no ridículo. Dito isso, “regressão histórica” é mero recurso heurístico para abordar o trade-off reforma trabalhista/direitos individuais apregoado por Ives Gandra Martins Filho, presidente do Superior Tribunal do Trabalho (TST), órgão da Justiça Federal cuja missão institucional, em tese, seria a tutela do direito ao trabalho como princípio fundamental. "Nunca vou conseguir combater desemprego só aumentando direito" *, diz o ministro, justificando, na reforma trabalhista que entrará em vigor em 11 de novembro, a indenização por dano moral com valor proporcional ao salário do trabalhador. Na visão do jurista, reparar um dano à personalidade nas relações de trabalho prescinde dessa perfumaria que a modernidade esculpiu sob o nome de igualdade. O critério é, digamos, censitário: a dignidade da pessoa humana vale o que o mercado diz que vale. Tomo, uma vez mais, as palavras do jurista para exemplificar o que soa à primeira leitura inacreditável:

"Não é possível dar a uma pessoa que recebia um salário mínimo o mesmo tratamento, no pagamento por dano moral, que dou para quem recebe salário de R$ 50 mil. É como se o fulano tivesse ganhado na loteria" *.

Ganhar na loteria seria um acaso e não fruto do esforço, insinua Gandra em acolhimento ao liberalismo mais pedestre, típico dos que evocam a meritocracia para sequestrar do debate público as pautas relativas à questão social. De todo modo, considerando a reforma trabalhista como uma das injunções da ditadura civil que se instala no país exigindo cada vez mais esforços de mistificação dos seus vencedores, cabe não se dar por vencido no embate de ideias. Aqui, podemos voltar ao termo “regressão” enquanto uma espécie de revivalismo sociopata do século 19, quando os direitos de cidadania eram, no alvorecer da Revolução Industrial, tão somente a afirmação dos direitos civis do homem adulto de empreender a si mesmo, por sua conta e risco, na sociedade de mercado, limitando-se o poder estatal à manutenção da ordem legal dos contratos – feitos agora à imagem e semelhança do capitalista brasileiro ávido em inverter os polos da relação capital-trabalho, inaugurando, com um pé na economia real e outro no rentismo, o princípio protetivo do empregador – e da segurança pública.

Ora, se a situação de quase pleno emprego da última década ocorreu sem prejuízo da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), Gandra nada mais faz do que expor a condução política errática – ao menos, do ponto de vista de quem não dissocia o direito ao trabalho de um desenvolvimento autossustentado – de um governo ilegítimo cuja propaganda oficial alardeia a “retomada do crescimento”. Mas não se trata apenas de arbítrio senão de um ato de fé. Detendo-se o controle na alocação dos recursos de poder, o que impediria de empregá-los segundo a ideia de justiça social na qual se acredita? No caso em tela, estaríamos diante de uma decisão movida pela “ética da convicção”, que não tem outro fim senão o de manter e reforçar a própria convicção, já que a reforma trabalhista, nos termos da Lei 13.467/2017, é simplesmente impraticável.

No entanto, independente da justificativa que se queira atribuir a uma ideia ultraliberal de justiça social, a implantação da reforma trabalhista depara-se, inevitavelmente, com os paradoxos da política de que fala Weber, pois não seria menos razoável apoiar-se na “ética da responsabilidade”, que, na atual conjuntura, implicaria a auditoria da dívida pública - verdadeira sangria do orçamento da União - como contrapartida das medidas de racionalização do gasto público alardeadas como solução de todos os males. 

Weber asseverou que tais paradoxos confirmam a tensão entre esses dois princípios éticos, jamais vividos em separado pelo homem de “vocação política” cujo exercício só é reconhecível na medida em que jamais se alcança o possível sem se tentar o impossível. Além de empregos, tudo o que mais nos falta no momento é a vocação política de que nos fala o mais contemporâneo de nossos clássicos nas ciências sociais, notadamente quando a ordem do dia convida a enxergar com ousadia outro horizonte da ação: o restabelecimento da receita pública sem nenhum direito a menos para os trabalhadores do campo e da cidade.

* Jornal Folha de S. Paulo, 06/11/17.

Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/11/1933111-e-preciso-flexibilizar-direitos-sociais-para-haver-emprego-diz-chefe-do-tst.shtml

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