Apresentação - Autopoiese e Virtu
George Gomes Coutinho
Eis que retorno
ao mundo dos blogs. Prevalece aqui a máxima heraclitiana: nem o autor, nem os
blogs e tampouco os softwares são os mesmos. Quando comecei a dialogar com as
chamadas “novas tecnologias de informação”, hoje já não tão novas assim,
adjetivavam a Web de “1.0”. Até pouco tempo atrás já se tinha atingido a “web
2.0” onde novas funcionalidades e possibilidades de interação se apresentam em
uma desconcertante velocidade. Talvez o diagnóstico de “mundo em descontrole”
de um Giddens no aparentemente já
longínquo final da década de 1990 tenha lá sua validade. Todavia, as
ingenuidades ou entusiasmos descalibrados de outrora hoje dão lugar a lúcidas
leituras nas ciências sociais que a um só tempo indicam tanto as mudanças
quanto também as permanências, para o bem ou para o mal.
É neste zeitgeist
que este blog se insere. Trata-se de um projeto despretensioso, dado o caráter
de “artesanato intelectual” que o guia, onde se aposta que as ciências sociais
podem fornecer chaves interpretativas valiosas para o “homem desbussolado”[1]
dos dias que correm. Decerto, de forma não menos relevante que as ciências da
alma, as ciências da sociedade são, desde o século XIX, observatórios atentos
deste palco sem um diretor consciente que é o mundo. A cumulatividade da
produção da sociologia, ciência política e antropologia, pelo seu caráter de
“dupla hermenêutica”, é mobilizada pela própria sociedade em seus esforços de
auto-interpretação, adentrando o cotidiano, noticiários e best-sellers. Porém,
justamente pela necessidade do retorno da reflexividade, aqui no movimento de
contrapelo, penso que é uma tarefa primordial nos dias que correm que as
ciências sociais problematizem seu impacto na esfera pública em prol de um
projeto de sociedade radicalmente humanista. Até porque, a redução sociológica
quando utilizada de forma pouco consequente produz mais ônus que bônus. Digo
isto após uma certa perplexidade que me atingiu ao acompanhar a produção da
mídia nos últimos tempos. Honestamente, não imaginava que poderiam utilizar
conceitos sociológicos, mesmo que de forma pastichizada, para justificar
argumentos xenofóbicos, racistas e congêneres.
Com este
conjunto de “boas intenções”, onde dizem ser o inferno o espaço privilegiado
das mesmas, pretendo trazer algumas reflexões especialmente inspiradas na
sociologia e na ciência política. Antes que a lembrança da antropologia se
manifeste, peço paciência ao leitor.
Meus estudos se dão em um período de alta especialização e por isso me sentirei
mais a vontade no terreno acidentado de minha formação que se deu concentrada
nas duas grandes áreas das ciências sociais supracitadas. Trata-se de uma
honesta confissão de limitação intelectual. O que não impedirá a apropriação de
outras fontes de conhecimento sempre que o senso de perigo deste sociólogo/cientista
político estiver suficientemente adormecido. Lembrando a máxima de Hayek, se para um economista ser um bom
economista ele precisa ser mais do que um economista (perdoem pela proposital
redundância), acredito que o mesmo se aplica para todas as outras áreas de conhecimento.
Para um primeiro
post, penso que é um gesto de delicadeza informar ao leitor duas grandes
questões. Primeiro, o conjunto de temas que estarão aqui (re)interpretados. Em
segundo momento, esclarecer o título do blog inspirado em dois conceitos que
julgo fundamentais e são estruturantes dos esforços que se seguirão neste work
in progress.
O primeiro
ponto: as atenções estarão voltadas prioritariamente para questões de
cunho político. Ao pensar a política,
não estou restringindo essa atividade ao seu aspecto formal ou institucional,
nem à pequena e tampouco à grande política. Se a política tem por razão de sua
existência a tomada de decisões dotadas de caráter vinculante para a sociedade,
muitas vezes pensar as franjas da formalidade dos processos de tomadas de
decisão é ajudar a compreender a formação da ação politicamente orientada, seus
conteúdos, projetos em disputa, elementos simbólicos, etc.. Se não tenho a
intenção de aprisionar o homem ao zoon politikon aristotélico e
compreendo a “relativa autonomia” das outras facetas da ação humana, por outro
lado compreendo que por vezes é no trabalho de composição analitica “indireta”
que podemos derivar boas e importantes reflexões sobre os fenômenos políticos.
Sobretudo se compreendo que a esfera política interpreta a sociedade tanto
quanto é interpretada por esta, não obstante sua especificidade enquanto esfera
que a demarca e a singulariza. Por isso, também a face mais evidente do “fazer
política” estará presente. Ao mesmo tempo, concordando com Fredric Jameson[2],
reconheço a presença de um “inconsciente político” em toda produção humana
dotada de caráter simbólico. Este “impensé” encontrável na cultura em
sentido amplo, também estará presente em diversas ocasiões e análises.
Após esta explicação
ao menos ganho uma boa desculpa teoricamente orientada para discutir sobre
arte, cotidiano, economia e outros bichos. Assim, embora a política seja o tema
privilegiado, outros tantos surgirão dado que o autor mantém uma cognição
seletivamente imprudente. A forma que adotarei será prioritariamente de
crônicas. Imagino que é o mais adequado para um blog com estes objetivos,
embora que por vezes irei me arriscar em outros formatos sempre que julgar
necessário. Afinal, compreendo que aqui estou fazendo também um projeto de
“divulgação científica”, tarefa que julgo imprescindível para o fomento de uma
cultura de ciência, seja hard, soft ou so so no Brasil do
século XXI.
Agora o momento
mais delicado. Explicar, mesmo que de forma sucinta, os dois conceitos díspares
no tempo e no espaço que funcionam como estruturantes neste blog. O primeiro
deles, a autopoiese, encontra seu nascedouro no neosistemismo da segunda
metade do século XX, especialmente capturado para a sociologia contemporânea
pelo alemão Niklas Luhmann (1927-1998). A virtú, parceira conceitual da fortuna,
é chave interpretativa ascética do realismo político de Nicolau Maquiavel
(1469-1527) .
A escolha da autopoiese se dá por um
princípio hermenêutico. Ou seja, o conceito, explícito ou não, me auxilia a
interpretar a realidade. Maturana e Varela, dois biólogos chilenos,
provavelmente levaram a patamares radicais a questão de que todos os
componentes da realidade de alguma maneira “interpretam” e conhecem seus
arredores. Porém, não o fazem de forma neutra e asséptica. O fascinante é que
esta interpretação, onde conhecer o mundo é um elemento inelutável da própria
vida, ocorre a partir de seus próprios termos, sendo a natureza “cognoscente”.
Ou seja, vivemos em um mundo complexo
onde o observador é observado sendo estas posições relativas. Afinal,
onde todo(as) são observadores, somos objeto de curiosidade tanto quanto nos
relacionamos com esta realidade com o mesmo ímpeto.
Luhmann em sua
vasta produção aplica este conceito à sociedade. Compreendendo a realidade como
uma totalidade formada de observadores mútuos auto-referentes (autopoiéticos),
onde justamente daí podemos compreender a complexidade de uma sociedade em um
movimento constante de interpretações, interferências, seletividade, contingências,
qualquer ingenuidade hermenêutica é desautorizada. Neste sentido, uma noção de
“totalidade estrutural/estruturante” subjaz ao que pretendo fazer aqui neste
exercício do blog. Embora que, como o próprio Luhmann reconheça, nem sempre
estas correlações serão explicitadas em toda análise. As noções de autopoiese,
complexidade e totalidade muitas vezes serão o “non-dit”. Porém, não quer dizer que não estarão
presentes.
Já a virtú
maquiaveliana é nada menos que a luz interior, disciplinada, ascética de onde o
homem moderno retira suas energias. Maquiavel, justificadamente reconhecido por
fazer uma leitura mundana e dessacralizada da política e de suas instituições,
compreendeu em sua labiríntica produção que a virtú funciona como um
elemento de sobrevivência para o homem político diante dos enfrentamentos
existentes na constelação de interesses. Evidentemente sem a fortuna, a
boa sorte proveniente das contingências conjunturais, projetos políticos podem
não obter êxito. Mas, a virtú é realmente a única grande energia
manipulável pelo indivíduo. Nem boa e nem má em termos absolutos, a virtú
não idealizada em Maquiavel implica a capacidade de agir em toda e qualquer
circunstância e em acordo com a necessidade.
Retomando a
síntese que direciona os esforços deste blog, minha leitura do mundo não é
desinteressada. Faço este exercício de forma conscientemente autopoiética,
tendo por ponto de partida hermenêutico as ciências sociais. Por outro lado,
não sendo de forma alguma uma atividade pautada pelo mera opinião, esta virtú
é colocada como meta ética de uma prática que se pretende sistemática, ou até
mesmo um ethos que julgo
imprescindível para todo e qualquer analista. Sem mais delongas, por isso o
nome: autopoiese e virtú.
Antes de
finalizar, um breve agradecimento. Primeiramente ao Marcio Malta, o “Nico”,
cartunista e colega de ciência política do Departamento de Ciências Sociais da
UFF/Campos que forneceu generosamente o banner que é nosso cabeçalho.
Igualmente agradeço aos companheiros de “Outros Campos”, experiência exitosa no
espaço virtual que contribuiu de forma singular com as tentativas de enriquecer
a esfera pública da região Norte Fluminense entre os anos de 2008 e 2010. Deste momento pretérito cooptei o Paulo
Sérgio Ribeiro Jr. que neste início de 2015 se encontra em Alagoas trabalhando.
O colaborador eventual supracitado promete aparecer sempre que puder.
Ressaltando o experimentalismo deste blog, não duvido que outros(as) possam
também colaborar. Ainda, agradeço afetivamente à Angellyne que tem sido uma
incentivadora entusiasmada de meus projetos profissionais e pessoais.
Por fim, aos que
tiverem interesse e paciência de acompanhar as incursões neste espaço, lhes desejo boa(s) leitura(s) e não se
acanhem em participar com sugestões, críticas, etc..