“Tudo que é sólido desmancha no ar” e lembranças maceioenses
Os membros da
burguesia reprimem tanto a maravilha quanto o terror daquilo que fizeram: os
possessos não desejam saber quão profundamente está possuídos. Conhecem apenas
alguns momentos de ruína pessoal e geral – apenas, ou seja, quando já é tarde
demais. (Marshall Berman)
Paulo Sérgio Ribeiro
Há seis anos, dizia adeus a Maceió, cidade em que aportei em 2010 e na qual
posso dizer que vivi as dores e os amores que conferem alguma grandeza à vida
breve e banal que levamos.
Em 2010, percorríamos um Brasil um tanto diferente do qual submergimos
com o golpe de 2016 e do qual tentamos sobreviver com a chegada da extrema direita
ao primeiro escalão da política nacional em 2018. A comparação de cenários
poderia ser feita com diferentes chaves de leitura e os processos nela
focalizados demandariam tratar de elementos da conjuntura que a especialização
nas ciências sociais nos induz a enxergar como que dotados de vida própria diante das pretensões de devolvê-los à historicidade dos macroprocessos.
Longe de mim estar à altura de tais pretensões neste epílogo. Mas na
Maceió que deixei para trás (e que me assalta toda vez que a pulsão de vida
pede passagem...) um fato torna sua lembrança um alerta sobre as ilusões que a
percepção in flux dos acontecimentos nos ocasiona ao olhar de
frente o espírito da modernidade ou, melhor dizendo, a sua contraface mais
impiedosa: a modernização capitalista.
Uma premissa: o espírito da modernidade é uma expressão objetiva do
domínio do capital e das ruínas deixadas para trás com o suceder das suas
crises de acumulação. O fato: Maceió está afundando.
Os bairros Pinheiro, Bebedouro, Mutange, Bom Parto e Farol estão
literalmente afundando, resultado de mais de 40 anos de exploração das minas de
sal-gema que os circundam pela empresa petroquímica Braskem. O drama derivado
desse crime continuado se traduz em mais de 65 mil famílias expulsas de suas residências,
quase cinco mil empreendedores que perderam renda e, sem alternativa, demitiram
cerca de 30 mil trabalhadores. Pasme, a degradação do solo urbano é de tal
monta que se registrou um terremoto de 2,5 graus na escala Richter na capital
alagoana em 2018[1].
Ter lido essa notícia me remeteu a uma célebre passagem do Manifesto
Comunista, de Marx e Engels, que tomei de empréstimo para o título:
“Tudo que é sólido desmancha no ar”.
Marx e Engels imprimiram naquele panfleto um autêntico testemunho das
esperanças do oitocentos europeu atribuíveis à liberação das potencialidades
humanas com o alvorecer da civilização burguesa sem, entretanto, ocultar seu
fundamento na inevitável destruição dos modos de vida sob um sistema econômico
cuja expansão ignora limites da vida material e destrona interdições da moral e
da cultura tanto em vilarejos quanto em megalópoles.
Rever, pois, o desenvolvimentismo presente no Manifesto
Comunista permite olharmos para a circunstância dos homens e mulheres
maceioenses sem subestimar o enfrentamento das contradições que lhes atravessam
e que, na referida obra, já se insinuavam na avaliação quase
apologética da capacidade transformadora que a burguesia, enquanto
classe que um dia foi revolucionária, revelaria ao mundo.
Para tanto, nada melhor do que revisitar Marshall Berman, notadamente pelo modo
como ele captou a dimensão fáustica de nossa civilização que
o Manifesto ajudaria a iluminar.
Para o filósofo estadunidense, a maneira como Marx e Engels se deixavam
levar pela torrente da vida moderna é a um só tempo crítica e “cúmplice” das
revoluções burguesas. Em meio a acelerada transformação que delineava os
contornos mais abrangentes da modernização capitalista – a emergência de um
mercado mundial e a produção de massa capitalista que promoviam o êxodo de
famílias campesinas despossuídas para engrossarem o proletariado das áreas
urbanas cuja paisagem, por sua vez, confundia-se com as fábricas que tanto
absorviam quanto solapavam os antigos mercados locais –, havia na verve
incendiária de Marx a evocação de um ativismo burguês que, lembra Berman,
surpreende o leitor do Manifesto por deixar os seus
contemporâneos a um só tempo “excitados e perplexos”[2] ao descrever
como a mudança social espelhada por aquele ativismo nos defrontava com a
vida moderna enquanto uma “construção móvel que se agita e muda de forma sob os
pés dos atores”[3].
Berman vai além:
O que é surpreendente
nas páginas seguintes é que Marx parece empenhado não em enterrar a burguesia,
mas em exaltá-la. Ele compõe uma apaixonada, entusiasmada e quase lírica
celebração dos trabalhos, ideias e realizações da burguesia. Com efeito, nessas
páginas ele exalta a burguesia com um vigor e uma profundidade que os próprios
burgueses não seriam capazes de expressar (BERMAN, 1986, p.90).
Ora, mesmo em um autor não propriamente marxista como Yuval Harari,
podemos escutar os ecos dessa revolução permanente quando o historiador
israelense ressalta – de modo um tanto contraintuitivo[4] para consciências
alardeadas pela crise climática – que o estoque de energia disponível no
planeta não parou de crescer desde quando aprendemos a converter um tipo de
energia em outro, viabilizando, pois, as bases técnicas para mudanças dos modos
de produção as quais, para o bem e para o mal, permitiram ao gênero humano
estender sua barganha com a natureza.
Por óbvio, devemos nos perguntar quais seriam os termos dessa “barganha”
e até quando poderemos nos valer dela.
Na obra de Marx, há um otimismo diante da janela histórica aberta pela
revolução burguesa, a ponto de o pensador alemão arriscar a própria pele na
organização do movimento operário europeu para contrapor-se às iniquidades da
nova ordem do capital. Se assim o foi, indagaria o leitor, por que cargas
d'água o “velho barbudo” quis enaltecer aquela revolução, se a ordem social que
a sucedeu não teria outra consequência senão a mais atroz desumanização do
trabalho? Haveria uma contradição em termos no Manifesto Comunista?
Berman
observa que importava menos para Marx as inovações tecnológicas sobrevindas com
o capitalismo e mais o dinamismo da civilização burguesa. O constante
revolucionar dos meios de produção não deixaria margem à sacralização de um
passado como o do ancien régime. De fato, a burguesia foi a
primeira classe dominante cujo poder se estabeleceu não pela aceitação passiva
das relações hierárquicas em uma estrutura social, mas pela pressão de inovar
ativamente seus negócios em resposta à diuturna competição de uma economia de
mercado. Ao fazê-lo, desvelaria um escopo inaudito da atividade humana
promovendo uma “perpétua sublevação e renovação de todos os modos de vida
pessoal e social”[5].
Contudo,
esse novo ideal de “vida ativa” concernente à burguesia não poderia ser contemplado
em todas as suas possibilidades, pois o seu papel revolucionário seria rapidamente
suprimido pela redução de todos os processos ativos e esforços humanos que
impulsionou a um único significado, a mercadoria, e a único propósito, acumular
capital. Berman reconhece em Marx o seu débito com o “ideal desenvolvimentista
da cultura humanística alemã”[6],
uma tradição intelectual da qual ele se filiou de uma maneira sui generis: assimilando a estrutura de
personalidade requerida pela economia burguesa ao mesmo tempo em que se fazia
seu mais contundente crítico ao tentar “fazer história” formulando uma via emancipatória para os trabalhadores.
O drama da modernidade, visto pelo prisma do materialismo histórico, é que realmente ninguém está alheio àquela estrutura de personalidade e que mudanças, por catastróficas que sejam, apenas confirmam que atividades humanas cada vez mais sofisticadas – como o extrativismo de minério em uma área urbana densamente povoada como a operada pela Braskem em Maceió – não têm um significado em si mesmas, pois são apenas meios para a consecução de um fim – fazer dinheiro –, reservando às milhares de pessoas atingidas pela negligência a favor do lucro a impossibilidade de exercer a vida activa com a fluidez que uma sociedade supostamente aberta como a da economia de mercado estimularia.
A
metamorfose do capital – sua transitoriedade quanto aos ramos de atividade em
que é reinvestido –, será traduzida no futuro breve pelos novos anúncios do
mercado imobiliário para a reconstrução dos bairros maceioenses afetados pela ação
predatória da Braskem. Uma ordem grão-burguesa se consolida a despeito de vidas
humanas e não-humanas serem aniquiladas por vorazes empreendimentos nas cidades
litorâneas brasileiras como, entre tantos
outros exemplos, construir torres residenciais fincadas no mar de Salvador[7]; o
projeto de urbanização para o cais José
Estelita, em Recife[8];
além claro do mundo bizarro criado
com o alargamento da faixa de areia em Balneário Camboriú, em Santa Catarina[9].
A noção de “colapso” com a qual o noticiário reveste os dias de agonia na capital alagoana pode ser enganosa. Não há evidência alguma de que o que ocorre em Maceió e alhures seja um esgotamento da capacidade de o capital assumir novas formas em sua autodestruição inovadora. Mas esse prognóstico não nos desestimula a indagar, perante impactos ambientais cada vez mais severos, quais são as alternativas emancipatórias às “soluções” das grandes corporações cujo modelo econômico de sempre é agora requentado pelo discurso da “transição verde”.
[1]
Brasil 247. Documentário de Carlos Pronzato sobre o crime da Braskem que
está afundando Maceió terá pré-lançamento em São Paulo. Edição de 19/07/2021.
Disponível aqui.
[2]
Cf. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido demancha no ar. A aventura
da modernidade. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda, 1986, p.89.
[3]
Idem.
[4]
“O volume de energia armazenado em todo combustível fóssil na Terra é
insignificante quando comparado ao volume que o Sol fornece todos os dias – e
de graça. Embora apenas uma pequena fração de energia solar chegue até nós, ela
equivale a 3 766 800 exajoules de energia a cada ano. [...] Todas as atividades
humanas e indústrias combinadas consomem cerca de quinhentos exajoules por ano,
o equivalente ao volume de energia que a Terra recebe do Sol em meros noventa
minutos. E isso diz respeito apenas à energia solar. Além dela, estamos
cercados de outras enormes fontes de energia, como a nuclear e a gravitacional
– esta última mais evidente no poder das marés oceânicas causadas pela atração
que a Lua exerce sobre a Terra”. Cf. HARARI, Yuval. Sapiens. Uma
breve história da humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 359.
[5]
Cf. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido demancha no ar. A aventura da
modernidade. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda, 1986, p. 92.
[6]
Op. cit., p.94.