Nota breve de conjuntura 2 - Diniz,
Gramsci e o Interregno *
George Gomes Coutinho**
O governo Rafael Diniz atingiu a
marca de seis meses na prefeitura de Campos. Nos encontramos em situação
diversa daquela quando fomos convidados a analisar o governo em seus primeiros100 dias. Acredito que hoje temos uma rotina mais consolidada que não precisará
ser aquela que irá moldar toda a gestão. Porém, olhando pelo retrovisor, é
possível detectar traços marcantes que ao menos dizem algo sobre a conjuntura
que já foi vivida.
Antes de prosseguir, registro aqui
uma sensação um tanto incômoda de minha parte. Antonio Gramsci (1891-1937), o
comunista sardo preso no período fascista e um dos alvos prediletos de parte da
direita brasileira contemporânea, apresentou uma síntese de pensamento sobre os
períodos de crise em um dos seus “Cadernos do Cárcere”: o velho se recusa a
morrer e o novo simplesmente não nasceu. Gramsci chamava estes períodos da
História de “tempos de interregno”, momentos particularmente difíceis de crise
de hegemonia onde perspectivas ideológicas mórbidas, falseadoras ou
simplesmente danosas são apresentadas aos borbotões. Em tempos de interregno as
auto-interpretações políticas, sociais e culturais de uma dada sociedade
tornam-se perigosamente gelatinosas. Portanto, é natural a sensação de relativa
desorientação dos tempos que correm. E é neste espírito do tempo, ou o bom e
velho zeitgeist como diriam os
alemães, que insiro estes seis meses do governo Diniz. Não podemos afirmar, até
agora, que tudo está a transcorrer de vento em popa.
Cabe dizer que Campos dos
Goytacazes não está descolada do seu entorno. Aqui há reverberações das
práticas e da conjuntura política nacional em âmbito local. Contudo, Campos,
enquanto realidade particular, não reproduz meramente as tendências que lhe
chegam. A esfera política e o espaço público daqui terão suas versões
singulares e em “miniatura” do que transcorre em escala nacional. Irei destacar
quatro tendências encontradas nacionalmente e “traduzidas” localmente nestes 06
meses de governo Diniz: a) a polarização; b) facebookização da política; c)
judicialização; d) a solução elitista para conflitos redistributivos.
I - Polarização
Venho argumentando em diversas
ocasiões que a polarização política, seguida do discurso irracional que é
inerente ao ódio, produz patologias no espaço público. O maniqueísmo vulgar em
dualidades como “coxinha X mortadela”, “petistas X tucanos”, e etc. tem redundado
na inviabilidade do diálogo. O problema é que a asfixia do diálogo envenena a
democracia em uma sociedade que é em si mesma complexa e plural. Na verdade,
abdicarmos do diálogo implica darmos asas para projetos totalitários ainda mais
danosos que o vilipendiado modelo democrático de convivência coletiva. Afinal,
quando falamos em democracia, estamos pressupondo algo mais do que um mero
método de seleção de governantes.
Nestes termos, a polarização
“Garotinho X Diniz”, o que redunda na formação de grupos onde a diferenciação
se dá pela adesão quase irrestrita a um personagem ou outro, não produz
igualmente bons resultados.
Noto de forma assistemática que
alguns atores dotados de capacidade de formulação política, seja entre o
empresariado, profissionais liberais e outros grupos políticos e sociais,
sentem-se alijados por considerarem que há fraca interlocução do governo para
além de seus muros. Seria um governo ensimesmado. Voltando aos efeitos
deletérios da polarização, dado que esta interlocução necessita da crítica para
ser bem sucedida dado que os atores notam erros de condução do executivo local,
o risco da serem simplesmente carimbados de “pró-Garotinho” por inércia é
inevitável. Por outro lado, apontar acertos por caminhos tortos na gestão
Rosinha não indica igualmente a adesão acéfala e subserviente à família que
governou a cidade até 2016.
Serei relativamente ingênuo. A
única solução que vejo neste momento é a maturidade política como via para superação
da polarização e da miséria discursiva e propositiva decorrentes. Abdicar da
polarização nos dias atuais indica a necessidade de abrir mão de determinados
dividendos eleitorais em futuras eleições. Porém, os malefícios da polarização
tem se mostrado infinitamente maiores para a sociedade do que os benefícios
obtidos por qualquer grupo político específico.
II
– Facebookização da política
Eu estou utilizando o nome do
“facebook” para me servir do neologismo “facebookização” por uma razão muito
simples: trata-se da rede social de maior alcance no Brasil neste momento. Porém,
eu poderia utilizar outras redes sociais para o neologismo. Basta lembrarmos do
uso obsessivo de Donald Trump com o “twitter” por exemplo.
Antes, cabe um alerta histórico bastante
simples: a comunicação entre lideranças políticas e sociedade sempre ocorreu de
forma ou de outra. Na modernidade temos os manifestos partidários e no século
XX vivenciamos a utilização dos meios de comunicação de massa (rádio, jornal e
televisão). Há incontáveis exemplos factuais que não pretendo apresentar aqui
para não ser enfadonho.
O que surge de novo, e os estudiosos das redes
sociais apontam isso, é a mudança das interações sociais, a agilidade da informação
e, por outro lado, certo déficit de reflexividade. Não por acaso o momento da
alta utilização das redes sociais convive com a era da “Pós-Verdade” e as “fake
news” produzidas em escala industrial. Resumo da seguinte maneira o quadro:
muita informação e pouco conhecimento.
O sistema político certamente
iria reagir a este novo tipo de interação que se intensificou nos agentes
políticos formais após as eleições municipais no Brasil ano passado. João Doria
Jr. em São Paulo é um dos exemplos para o bem ou para o mal. Afinal, como avaliou
FHC, Doria tem se mostrado muito mais hábil em utilizar seu smartphone do que
em propriamente enfrentar os desafios da maior metrópole da América do Sul.
Em nosso caso local, parte do
êxito da campanha de Rafael Diniz se explica pela capilaridade alcançada
justamente pelas redes sociais. Esta forma de se comunicar com o eleitorado
prosseguiu. O problema é quando a ferramenta não é bem utilizada.
Se as redes sociais produzem a
sensação de diminuição da distância entre governantes e governados, algo
salientado pelos próprios usuários das redes sociais, a utilização da linguagem
das redes pode esvaziar o conteúdo político propositivo e se tornar um reflexo
explosivo das patologias do espaço público contemporâneo. Não por acaso o vídeo
inflamado de Diniz em resposta à transcrição de um suposto áudio que teria
falas comprometedoras do staff de seu governo não escapou das armadilhas do Fla
X Flu político. Tampouco indicou qualquer encaminhamento construtivo ao
reforçar o maniqueísmo. O prefeito, imagino, sentiu-se aviltado. Não o condeno. Somos todos humanos afinal. Contudo, episódios deste quilate deveriam soar
como alerta amarelo. A comunicação política não deve ser refém das redes
sociais, de seus símbolos, caprichos e etc.. A fatura pode ser exorbitante e o
retorno exíguo.
III
– Judicialização
A relação entre os sistemas
jurídico e político no Brasil adquiriu feições que só compreenderemos em sua
totalidade após essa conjuntura de interregno se assentar. Só não sabemos
quando acontecerá.
Neste momento podemos assinalar
que há problemas severos em termos um judiciário hipertrofiado e radicalmente
politizado, onde as normativas do Estado Democrático de Direito são atropeladas
em diversas ocasiões. Não são raras as ocasiões onde a sensação de arbítrio
puro e simples se apresenta.
Por outro lado, o judiciário,
também em não poucos momentos, tem feito correções que não podem ser
desconsideradas nas relações entre poder econômico, democracia representativa e
eleições. Se estas correções irão produzir efeitos em termos de práticas sociais
paira o desconforto do mistério. A única
lição histórica que arrisco neste momento é a de que boa lei não produz por
encanto boa sociedade.
Voltemos para a realidade
campista. O que a judicialização tem produzido entre nós nestes seis meses do
governo Diniz de efeito mais evidente é a inviabilidade de consolidação das
feições políticas, programáticas e ideológicas do legislativo. A chamada “dança
de cadeiras” inviabilizou a consolidação da díade “situação/oposição” e o
perfil do próprio legislativo nos últimos seis meses. Os mais pragmáticos
apontam para prejuízos no orçamento do legislativo em virtude destas
recomposições. Em termos políticos, dada a tradicional maior proximidade da
relação da população com seus vereadores, o eleitor simplesmente não obtém
clareza necessária para realizar suas cobranças.
Ressalto apenas que não estou
advogando em defesa dos que se utilizaram das “más práticas”. O que estou
ressaltando são os efeitos negativos que um legislativo enevoado tem produzido
no curto prazo. No médio prazo a instabilidade pode trazer repercussões óbvias
na produção legislativa em si mesma e aqui não discutirei sobre sua qualidade
em versões anteriores do legislativo local menos afeitas aos efeitos da
judicialização.
IV - A solução elitista para conflitos
redistributivos
O Brasil após a pujança da “Era
das Commodities” vivencia um momento melancólico de alto endividamento de
pessoas físicas e jurídicas. Os recursos existentes, pacificamente drenados
pelo setor financeiro, tornam-se escassos em um cenário francamente recessivo
onde tanto o setor produtivo quanto o de serviços encontram-se combalidos.
Nesta seara surge fulminante o problema do financiamento das políticas públicas.
Não ocorrendo a entrada do capital das commodities e sem incomodar os lucros e
dividendos do setor financeiro, a opção foi se atirar de maneira selvagem sobre
os setores subalternos da população e em parte também sobre a classe média que
vive do seu trabalho. Não há mágica. Trata-se de uma opção política.
O mantra repetido exaustivamente
de que o problema do Estado é meramente “gerencial” gerou o discurso ideológico
dos administradores e técnicos que salvariam a pátria. No mesmo tom, a
simplória analogia das contas do Estado com a da dona de casa dotada de um
orçamento apertado segue nesta narrativa em uma simbiose. Na verdade o discurso
oculta a preferência por manter uma das sociedades mais desiguais do continente
americano em termos de redistribuição de riquezas. Esta foi a opção do Governo
Federal e de parte dos Estados ao enveredarem pelas práticas de “austericídio”:
cortes de gastos que derivam na destruição lenta de serviços imprescindíveis
para a população. Os freqüentadores dos serviços públicos de saúde em vários
estados ou, aqui perto de nós, os colegas da UENF e de outras instituições
podem fornecer relatos dramáticos do que esta opção política tem produzido.
Fica o paradoxo de Giuseppe di
Lampedusa (1896-1957): tudo deve mudar para que tudo permaneça como está.
No discurso de que não há um
plano B se esconde uma sociedade injusta em termos tributários, que não
regulariza a propriedade da habitação dos moradores das periferias, que oferta
volumes de recursos e isenções fiscais para o empresariado sem que existam
contra-partidas efetivas para a sociedade, onde o setor financeiro se
banqueteia com as taxas de juros das mais altas do planeta, etc..
Entre nós campistas ocorreu o
impacto da queda, que creio ser conjuntural, do preço do barril petróleo no
sistema internacional. É nacionalmente conhecida a dependência do orçamento
municipal do recurso dos royalties. Porém, mesmo sendo fato notoriamente
conhecido, todas as outras gestões municipais que se utilizaram destes
vultuosos recursos pouco ou nada fizeram para superar a dependência dos mesmos.
Em termos produtivos, Campos dos Goytacazes é uma cidade anêmica.
Voltando para o governo Diniz, as decisões que envolveram o Restaurante
Popular e o aumento do preço das passagens urbanas parecem caminhar na mesma
direção das opções adotadas por parte dos Estados e do Governo Federal na atual
conjuntura. Há nuances de austericídio, tecnificação do discurso político e
ideologia gerencial. Da mesma maneira, por outro lado, a revisão da tarifação
do IPTU até o presente momento não foi colocada em prática, algo que poderia
financiar políticas públicas e sociais que viabilizariam tornar a sociedade menos
desigual em termos de acesso a serviços.
Finalizando
nesta conjuntura
Não obstante todos os desafios
acima listados, que indicam a máxima gramsciana de que o “velho ainda não
morreu”, mesmo que tenha adquirido embalagens novas e atualizações, há também
“o novo que ainda não nasceu”.
Cabe citar a iniciativa da
consulta popular em formulário eletrônico que circulou entre os munícipes onde
estes deveriam apontar as necessidades de seus bairros. Eis uma tentativa que
considero absolutamente louvável da diminuição da distância entre governantes e
governados sem dúvida. O problema é o alcance: cabe a própria prefeitura
disponibilizar aos cidadãos quantos afinal foram atingidos pelo formulário,
quantos responderam e, no médio prazo, apontar as medidas que foram efetivadas.
Não é panacéia evidentemente. Mas, é um avanço.
Da mesma maneira é notória a
tentativa de oxigenar os setores culturais do município abrindo frentes de
interlocução com a classe artística local e apoiando, seja com o Teatro de
Bolso ou em eventos que se utilizam de parcerias entre setor público e privado,
eventos com entrada franca nos espaços públicos de Campos.
Ainda, é inegável também a
tentativa de diálogo com os setores propriamente acadêmicos e intelectuais
profissionais promovida pelo Governo Diniz. Podem surgir boas formulações,
desde que sistemáticas e robustas, amparadas por uma perspectiva de gestão da
coisa pública que fuja da miséria do mero gerenciamento.
Em suma: as boas novidades se
apresentam ainda tímidas. O que não quer dizer que não existam, embora ainda
sejam inegavelmente diminutas diante dos desafios de Campos. Aguardemos de
forma propositiva os próximos seis meses.
* A primeira versão deste texto foi publicada originalmente no Blog Opiniões do Grupo Folha da Manhã por Aluysio Abreu Barbosa em 03 de julho de 2017. Disponível em: http://opinioes.folha1.com.br/2017/07/03/george-gomes-coutinho-diniz-gramsci-e-o-interregno/
** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes.