Atualmente somos bombardeados semanalmente por
novos termos e expressões. A durabilidade de cada um varia, mas o tormento de
ouvir a mesma expressão repetidas vezes parece ser algo que se renova a
intervalos cada vez mais curtos. Não faz muito tempo, escutei pela primeira vez
alguém falar em “novo normal”. De imediato, não entendi e, por questões de
autopreservação, adotei a medida da sabedoria: ignorei. Todavia, não tinha como
fugir e a expressão começou a brotar por todos os lados. Chegou ao ponto em que
vi um debate sobre o termo utilizado na capa da revista Vogue, onde aparecia a
top model Gisele Bündchen e, abaixo dela se lia: “Novo Normal: Simplificar a
vida e se concentrar no essencial são os caminhos para um futuro mais ético e
saudável”. A Vogue destacava, assim, uma tendência da expressão: algo
relacionado à espiritualidade e ao consumo sustentável. Depois disso, passei a
observar que havia um apelo à dimensão ética e ambiental na expressão. Fui me
informar melhor e descobri que o “novo normal” era uma expressão para abordar o
mundo pós Covid-19, algo do tipo: “agora que tudo deu errado, vamos nos
reformular e buscar novos caminhos”. Fiquei incomodado, mas acreditei que não
valia o esforço.
Dias depois, por acaso, li um artigo de
opinião da Lilia Schwarcz intitulado “De perto ninguém é normal (ou o ‘novo
normal)”, onde a antropóloga demonstrava um incômodo semelhante ao meu diante
da expressão. Segundo ela:
“A expressão “novo
normal” tem sido muito utilizada nos últimos meses, quando se percebeu que o
coronavírus há de acarretar mudanças para todo o planeta. Isto é, que os
efeitos da Covid-19 não se limitarão ao dia em que a pandemia for dada por
terminada. E é certo: a história mostra que não se sai de crises como essa da
mesma maneira que se entrou. “Novo normal” não é, porém,
um termo recente; tampouco se sabe a origem dele. No entanto, tem sido
crescentemente associado a momentos da história em que toda a sociedade é
obrigada a se reinventar diante de períodos de crises de ordem política,
militar, econômica ou sanitária”.
Essa
ideia de reinvenção diante da crise foi o que chamou minha atenção no “novo
normal” – e que passou a incomodar, mesmo, depois da capa da Vogue. Por que a
capa da Vogue é importante? Bem, porque ali fica explícito que a ideia de
“normalidade” é muito variável. Ou você acha que a sua normalidade é igual à da
Gisele Bündchen? Pois enquanto a celebridade se preocupa em “simplificar a vida
e se concentrar no essencial”, há muita gente que vive a normalidade de não
saber se vai conseguir a próxima refeição. Independente do extremo dos
exemplos, o que quero frisar é que aquilo que é normal para a senhora Bündchen
seria um sonho para cerca de 99% da população mundial - e que aquilo que se
tornou normal para 40 milhões de brasileiros – sofrer nas filas para obter os
R$600 de auxílio do governo – seria algo absolutamente anormal para ela. O
conceito de “normalidade”, portanto, é relativo e contextual.
Boa
parte das Ciências Sociais dos séculos XIX e XX estiveram preocupadas com a
normalidade. Para ser mais específico: a Sociologia nasceu com o propósito de
ser uma engenharia social capaz de trabalhar pela manutenção da ordem. As
formas de “representação”, as categorias classificatórias e as “estruturas
sociais” foram temas centrais na história das Ciências Sociais. Após a Segunda
Grande Guerra Mundial – com o mundo sacudido por um evento que criava um “novo
normal” da época -, ficou claro que era importante entender as formas de
transformação da vida social. Um grupo de antropólogos, sob a liderança do
sul-africano Max Gluckman, ficou conhecido como “Escola de Manchester” e teve
suas pesquisas marcadas por uma ênfase na mudança social. Para tanto, uma forte
preocupação foi direcionada aos conflitos sociais – que deixaram de ser vistos
como algo de menor importância. A vida era marcada por conflitos e neles
estaria a força motriz das transformações das diferentes sociedades do mundo.
Nesse
grupo de pesquisadores, destacou-se um escocês, chamado Victor Turner, que
formulou o conceito de “drama social”. De modo sintético, podemos dizer que os
dramas sociais são rupturas do cotidiano “normal”. Quando algo acontece que
tira as pessoas dos seus fluxos “normais”, então temos o início de um drama
social. Isso significa que existem dramas sociais de pequena e de larga escala:
dramas de pequenos grupos ou dramas de cidades, regiões ou países. Podemos
encontrar expressões de dramas sociais em traições, conflitos armados, rupturas
políticas, desastres “naturais” etc. Os dramas sociais podem se envolver uns
nos outros - quando um drama familiar se insere em um drama nacional, por
exemplo. A importância do drama social reside na ênfase que dá aos conflitos
sociais, pois o “cotidiano” ou a “normalidade” tendem a esmaecer as tensões e
as oposições – expressas ou latentes – que caracterizam a vida social. Assim,
as ocasiões dramáticas teriam, para os antropólogos, a capacidade de
descortinar as divergências dos grupos sociais, destacando valores e
resistências a esses valores, ou mesmo valores em oposição. Em outras palavras:
os dramas sociais são reveladores, pois os conflitos expõem os axiomas sociais.
Turner
dividiu os dramas sociais em quatro etapas sequenciais. A primeira etapa foi
chamada de “ruptura” e consiste na exposição pública de algum evento que
signifique a quebra da normalidade: pode ser tanto a descoberta da violação de
uma regra social quanto algum evento climático que altere o cotidiano
drasticamente. A partir daí inicia-se a segunda etapa, que é conhecida como
“escalada da crise”. Nesse momento, o problema originado na ruptura tende a se
expandir envolvendo cada vez mais pessoas e grupos. É importante lembrar que
Turner não escolhe o termo “crise” aleatoriamente, pois ele entende que as
crises constituem momentos de aguda reflexividade, onde é necessário ponderar
sobre passado, presente e futuro. Isso ganha força na terceira etapa, quando
“ações de reparação” são adotadas para minimizar os efeitos da crise e tentar,
assim, interromper sua escalada. Trata-se do momento mais “intelectual” do
drama, na medida em que é aí que são discutidas as possibilidades de resolução
das questões. Por fim, a quarta etapa: o cisma ou o retorno à estrutura. Aqui o
argumento é que se a fissura no tecido social for irreparável, haverá uma
divisão do grupo social – como em um casamento, quando não é possível reatar e
o casal se divorcia. O retorno à estrutura seria algo como retorno à
“normalidade” – mas é preciso enfatizar que Turner sinaliza que a “estrutura”
já não é exatamente a mesma, pois ela carrega em si as marcas históricas dos
eventos dramáticos.
Quando
leio sobre o “novo normal”, lembro dos dramas sociais de Victor Turner. A
transformação social é constante, mas ela não costuma ser abrupta. Mesmo os
cismas, quando ocorridos, fundam-se sobre valores e modelos da estrutura social
anterior. Do mesmo jeito, o retorno à estrutura representa uma transformação.
Imagino que o drama social da Covid-19 não nos transformará radicalmente em
pessoas solidárias e espiritualmente elevadas, preocupadas com a preservação
ambiental e com o consumo consciente – tal como tem sido imaginado por inúmeras
pessoas. Quando países europeus iniciaram a reabertura, filas enormes se
formaram para comprar produtos da Apple e da Louis Vuitton. A Zara parecia
estar com promoção de 90% de desconto – mas não estava. No que diz respeito ao
consumo, as coisas não foram radicalmente alteradas e aquele consumo que ficou
suspenso ao longo do isolamento social estava apenas esperando a oportunidade
para sua satisfação.
Do
mesmo modo, aqueles que pensam em um cenário distópico pós-Covid não devem
esperar que o país se transforme em um “Mad Max” da noite pro dia. As
transformações são dadas de passo em passo e o que virá será a continuidade de
algo que já estava em andamento há muito tempo no Brasil. Seja um quadro de
miséria extrema ou de um governo autoritário e ditatorial, não podemos dizer
que isso se apresentou como consequência da pandemia, pois a pobreza e a
desigualdade já estavam consolidadas em nossa sociedade há muito tempo; tal
como certas inclinações autoritárias com fetiches por fardas e fuzis.
Seja
como for, para além das especulações sobre o futuro, precisamos trabalhar com
as questões fáticas. Vivemos em um país polarizado politicamente, sem
compromisso com a educação e com o conhecimento científico, onde as
desigualdades são naturalizadas e o racismo é estrutural. Nesse contexto,
depois de anos em uma profunda crise econômica que se pretendia sanear por um
modelo de pirotecnia neoliberal, presenciamos o coronavírus estagnar a economia
e o desemprego aumentar acompanhando o número de mortes. Enquanto isso, o
governo federal continua a gerar crises e a fracassar na apresentação de ações
para reduzir os estragos pandêmicos. Ao final, pode até ser que uma parte das
pessoas entre na mesma “onda” da Gisele Bündchen, simplificando a vida e
focando no essencial enquanto buscam uma existência espiritualmente plena. No
entanto, é preciso se lembrar que, enquanto isso, milhões de pessoas estarão em
notável vulnerabilidade social, em um país em recessão, com crise política,
intelectual e social de todas as ordens.
Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.
* Publicado originalmente em 19 de Maio de 2020 no Jornal Folha da Manhã - http://www.folha1.com.br/_conteudo/2020/05/artigos/1261616-carlos-valpassos-novo-normal.html