Quem
me colonizou? ou: os ouvintes de Rude Cruz*
* Publicado
originalmente em Revista
Contemporartes.
Esther de Souza Alferino[i]
Chamarei
este escrito de uma tentativa ensaística de traduzir o que foi minha criação
religiosa. Acredito que tentativa ensaística é um termo generoso demais para o
que virá a seguir, mas não consigo encontrar nada melhor no momento. Outra coisa
que pode estar passando pela mente do leitor é por que minha criação religiosa
teria alguma relevância para alguém além de mim mesma. Tentarei justificar, e
peço a generosidade do leitor, pois é a primeira vez que escrevo algo que se
pretende acadêmico assim, em primeira pessoa, e ademais, para falar de mim
mesma.
Eu
nasci e cresci crente, evangélica, protestante, os nomes eram variados durante
a minha infância, e ainda são. Mas eu não faço parte daqueles que têm uma
história de conversão recente na família, eu sou a quarta geração de pessoas
nascidas protestantes históricas. Originalmente presbiterianos, mas quando eu
cheguei já metodistas. Isso remonta dos primeiros anos do século XX, primeiros
mesmo, bem no começo do século, quando meus bisavós maternos, Palaio e Adelia,
se converteram em alguma igreja presbiteriana, talvez da zona rural, talvez já
na área urbana de Itaperuna, não sei exatamente. Minha avó materna, Drucila
(nome peculiar, porém bíblico) nasceu em um lar cristão protestante, e foi
assim que ela criou seus oito filhos que permaneceram vivos, duas meninas
morreram ainda bebês, não sei se chegaram a ser batizadas, porque tanto a
igreja presbiteriana quanto a metodista batizam crianças, bem diferente de
outras tradições protestantes, e essa é uma das coisas que no senso comum pouco
se sabe.
Mas
por que tudo isso teria alguma relevância para além do meu núcleo familiar? Eu
acredito ter, porque o Brasil não foi e não é apenas uma colônia portuguesa
católica. Há quem tenha sido colonizado de outra forma, por outros, e isso
também faz parte da História, com “h” maiúsculo que nos forma enquanto nação.
Pierre
Bourdieu (2002), o sociólogo francês, escreveu sobre o estudo de trajetórias
nas Ciências Sociais, em uma tentativa de afastar tais estudos do conceito de
biografia presente no senso comum, onde a vida segue um curso linear, em uma
sequência de acontecimentos que obedecem ordem lógica e cronológica. Para uma
análise sociológica, Bourdieu propõe que o pesquisador organize os fatos de
maneira inteligível, e que o agente pesquisado seja considerado em sua
totalidade, sujeito com nome próprio, que perpassa por diferentes campos. Mas
nesse caso a pesquisadora sou eu, e a trajetória é a da mina família, seria
isto possível?
Já
Paulo Renato Guérios (2011) traz o conceito de história de vida, onde o sujeito
pesquisado oferece sua própria perspectiva, geralmente por meio de uma
entrevista concedida ao pesquisador.
Cada
ator histórico participa, de maneira próxima ou distante, de processos de
dimensões e níveis variáveis, do mais local ao mais global. Não existe portanto
hiato, menos ainda oposição, entre história local e história global. O que a
experiência de um indivíduo, de um grupo, de um espaço permite perceber é uma
modulação particular da história global. Particular e original, pois o que o
ponto de vista microhistórico oferece à observação não é uma versão atenuada,
ou parcial, ou mutilada, de realidades microssociais; é […] uma versão
diferente. (REVEL, apud. GUÉRIOS, 2011, p. 16).
Recorrendo
à citação acima, e, mais uma vez, contando com a generosidade do leitor,
arrisco aqui propor uma apresentação do meu contexto religioso familiar, em uma
tentativa de, com isso, gerar uma reflexão sobre o Brasil que vai além do
catolicismo, em sua formação. Não teremos aqui espaço para uma análise
aprofundada do que estou chamando de colonização protestante histórica do
Brasil do século XIX e início do XX, mas o objetivo deste escrito ensaístico é
de provocação, para que se possa pensar em análises aprofundadas de trajetórias
de vida, no sentido bourdiesiano, de sujeitos que não foram catequizados por
jesuítas, franciscanos, ou qualquer outra ordem enviada ao país para salvar
nossas almas, mas que foram catequizados por calvinistas, wesleyanos,
arminianos, e que também compõe o Brasil profundo, o Brasil rural, o Brasil
urbano desorganizado, do interior e das capitais, que fazem parte de gerações
que nunca rezaram uma Ave Maria sequer.
Daqui,
deste lugar de quem viveu essa outra colonização que neste espaço me proponho a
brevemente narrar, recorro a Gilberto Velho (1978), para, mais uma vez
salientar que o que está diante dos nossos olhos, neste caso, as famílias
crentes há gerações, não estão necessariamente sendo vistas com curiosidade
sociológica.
O
que sempre vemos e encontramos pode ser
familiar mas não é necessariamente conhecido e o que não vemos e encontramos pode
ser exótico mas, até certo ponto, conhecido. No entanto, estamos
sempre pressupondo familiaridades e exotismos como fontes de conhecimento ou
desconhecimento, respectivamente. (VELHO, 1978, p. 126, grifos do autor).
Dito
tudo isto, irei reproduzir abaixo um texto originalmente publicado em meu blog
pessoal, espaço onde escrevo livremente sobre qualquer tema que me cause
inquietação. Manterei o texto exatamente como foi publicado em 17 de novembro
de 2020, às vésperas de minha defesa de mestrado, com todos os termos não
ortodoxos, pois acredito que mantê-lo assim será a maneira mais fidedigna de
contemplar o ser que sou, em todos os meus aspectos e por todos os campos pelos
quais circulo. Ser social, que carrega nome próprio, ser biológico, ser
individual, ser histórico, ser político.
O
texto foi escrito em contexto de eleições municipais, de indignação com o campo
político com o qual me identifico ideologicamente, o campo da esquerda
progressista, e sua incapacidade, na minha visão, de dialogar com
colonialidades outras, que não as suas próprias.
⌂
Quem me colonizou? ou: os ouvintes de Rude Cruz[ii]
Acho
que estou finalmente na última semana da escrita da minha dissertação de
mestrado, e, depois de uns longos minutos encarando a tela com as páginas já
escritas, eu fiquei querendo pensar em outra coisa por um momento. A questão é
que eu não sei mais no que pensar. Não faço a menor ideia. Eu estudo o que
estudo já há alguns anos, com diferente recorte, diferente objeto, mas com a
mesma temática: os crentes pentecostais brasileiros.
Eu
poderia agora pensar no resultado das eleições de domingo, eu poderia pensar na
pandemia que não sei quando nem se vai acabar um dia, poderia pensar que
sexta-feira tenho análise, e que tenho muita coisa pra falar, como sempre tive,
minha vida é um eterno falar demais, poderia pensar, sei lá, que está ventando
muito e parece que vai chover. Mas eu não consigo tirar da minha cabeça que
dentro de alguns dias vou defender as páginas que escrevi como se estivesse
lutando pela minha vida. É exagerado e dramático, mas eu sou exagerada e
dramática, dizem que é culpa do meu signo, o que me faz pensar por uma fração
de segundo que meu aniversário é mês que ve4m e que em poucos dias o sol vai
entrar em sagitário, e eu não faço ideia do que isso significa, mas vou aceitar
a culpa dele pelo meu exagero e drama.
Eu
poderia pensar em tudo isso que já falei, mas ainda assim estaria pensando nos
crentes pentecostais brasileiros, porque esse país não funciona mais da mesma
forma e isso também tem a ver com eles, e nas eleições de domingo eles foram em
peso votar e porque tudo isso faz parte de quem somos enquanto nação, e eu
pareço uma obcecada (talvez eu seja) e não retiro essas pessoas de nenhuma
equação. Acho que o fato de que vou tentar ser “dotôra” logo depois da defesa
do mestrado, e que vou seguir querendo analisar os pentecostais brasileiros tem
a ver com tudo isso. Imagina minha ousadia de querer ser doutora?! Se eu fosse
o resto do mundo estaria rindo da minha cara agora, mas eu não sou o resto do
mundo, então vou dar ao mundo minha cara a tapa pra estar nesse lugar também, o
lugar dos doutores, o lugar que me parece tão claramente não ser meu, mas que
eu vou teimar em tentar. Ao menos tentar. Talvez isso também seja culpa de
sagitário, sei lá.
Hoje
cedo eu li um texto do Anderson França[iii],
esse também sagitariano desajustado, tão diferente de mim, mas que me traduz em
tantos momentos. Ele nem sabe que eu existo, mas ele me traduz. Ele falava
sobre a colonização, não a dos portugueses (que inclusive ele vê melhor agora
em seu exílio em Portugal), mas a colonização missionária protestante, que dá à
pessoa crente outra visão de mundo, de país. Eu também sofri essa colonização.
Não foi a Europa católica que me colonizou, mas foi a ética protestante, a
doutrina histórica britânica, os europeus reformados que formaram minha
identidade de colonizada. Eu sei muito pouco sobre o Brasil católico, assim
como pontuou Anderson. Eu sou fruto de uma mistura de metodistas e
presbiterianos, daqueles roxos mesmo, que levam os cânones junto da Bíblia e do
hinário, claro. Eu nunca rezei um terço, não sei bem o que é um rosário. Lá em
casa a gente cantava Vencendo vem Jesus, e nunca fizemos sinal da cruz. Eita,
rimou, que cafona.
A
minha forma de ser colonizada no Brasil, na América Latina, é muito estranha aos
outros. É tão estranha que as outras esferas da sociedade ignoram que não fomos
colonizados da mesma forma, e que, portanto, não pensamos nem agimos da mesma
maneira.
Assim
como os colonizados pelos televangelistas pentecostais estadunidenses, gente empreendedora,
liberal na economia e conservadora nos costumes, que trouxe pra esse país não
apenas o dom de línguas e o batismo no Espírito Santo, mas também a Teologia da
Prosperidade e a linguagem de mercado. Eles também colonizaram, especialmente
os pobres, especialmente os sem perspectiva e sem amparo estatal, especialmente
os marginalizados, excluídos, da roça e do subúrbio, da favela e dos rincões
distantes aonde ninguém vai. Não deixam nem os índios em paz.
Esse
país não aprendeu a lidar nem com aquela ética protestante que não existe mais,
será que vai aprender a lidar com o colonialismo neopenteca[iv] que
oferece argumentos e recursos discursivos para uma expectativa de mudança de
vida que os partidos políticos não são mais capazes de oferecer? Será que as
exxxquerdas[v] tão
limpinhas e desinfetadas vão saber falar com a tia do reteté[vi] ou
com a avó que acorda cantarolando Céu lindo Céu? Até agora parece que não.
Eu
não sou neta de bruxa nenhuma que não conseguiram queimar, eu sou neta de
crente, mulher plantadora de igreja[vii],
que equilibrava a criação de oito filhos com seu evangelismo simples e direto,
mas muito eficaz. Não tente trazer os signos gramaticais das Laranjeiras[viii] pra
quem foi colonizado de outra forma. Parem de achar que as pessoas são burras e
bitoladas, que coisa mais feia e irritante.
Eu
ando de saco cheio dessas exxxquerdas mais acéticas que os puritanos, ouvindo
João Gilberto, mas também a nova MPB, claro, sem saber quem foi Luís de
Carvalho, e nunca ouviu Rude Cruz, porque essas coisas de crente pra cima deles
não, isso é lavagem cerebral. Ahhhh gente, faz favor, vai fazer a lição de
casa, vai aprender o que é esse país e entender que ele vai muito além das
nossas leituras eruditas.
Eu
ando de saco cheio, mas a culpa deve ser do meu signo, assim o jovem místico me
entende melhor.
Referências
Bibliográficas:
BOURDIEU,
Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, J; FERREIRA, M de M (Orgs)
Usos e abusos da história oral. Trad. Glória Rodriguez, Luiz Alberto Monjardim,
Maria Magalhães e Maria Carlota Gomes. 5ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2002, p. 183 – 191.
GUÉRIOS,
Paulo Renato. O estudo das trajetórias nas Ciências Sociais:
trabalhando com as diferentes escalas. In: Artigos, Campos 12(1): 9 –
29, UFPR, 2011.
VELHO,
Gilberto. Observando o familiar. In: NUNES, Edson de Oliveira.
A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa
social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 1 – 13.
[i] Cientista
Social pela Universidade Federal Fluminense e Mestre em Sociologia Política
pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
[ii] Disponível
em <https://estheralferino.wixsite.com/meusite/post/quem-me-colonizou-ou-os-ouvintes-de-rude-cruz>
[iii] Anderson
França é um escritor e ativista brasileiro, atualmente exilado em Portugal por
receber ameaças de morte de grupos de extrema-direita brasileira.
[iv] Termo
informal de tratar os neopentecostais, deixando claro que não há aqui intenção
pejorativa.
[v] Termo
informal e jocoso de falar do campo político de esquerda brasileiro, como forma
de autocrítica, já que a autora se identifica como pertencente a este campo.
[vi] Termo
comumente usado dentro do pentecostalismo brasileiro. Para mais informações
consultar <https://seer.ufrgs.br/debatesdoner/article/view/96166>
[vii] Temo
comumente usado no meio protestante para se referir a pessoas evangelizadoras,
que iniciavam novas igrejas, geralmente chamadas de congregações.
[viii] Bairro
do Rio de Janeiro conhecido por reunir pessoas do campo político de esquerda,
em especial do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).