Resistência democrática
“Hoje
é muito difícil não ser canalha. Todas as pressões trabalham para o nosso
aviltamento pessoal e coletivo”. (Nelson Rodrigues)
Por Paulo Sérgio
Ribeiro
Os tiros contra a caravana de
Lula no Paraná poderiam ter assumido contornos trágicos para todos aqueles que,
a despeito de inclinações partidárias, ainda creem na democracia como regime
político no e pelo qual os conflitos são admitidos e geridos racionalmente.
Desnecessário dizer que o atentado não é um ponto fora da curva, uma vez que a
violência pré-política tornou-se a rotina de instituições que deveriam servir
de contrapeso ao uso arbitrário das razões pelos contendores na política
nacional. Dito de outro modo, não há por que estarmos surpreendidos com o iminente
risco de morte de lideranças e militantes pelo simples fato de se posicionarem
à esquerda do espectro político, pois a selvageria que recaiu sobre Lula e seus correligionários no sul não é desconexa, por exemplo, da violência simbólica
contra Dilma Rousseff quando, pasme, sua imagem fora fixada no stand de tiro da Polícia Federal como
“motivação” para o treinamento [1].
Por que falar disso agora? “Não
força!”, dirão alguns. Detenhamo-nos um pouco mais sobre aquilo que, a meu ver,
seria um sintoma das práticas fascistas que se disseminaram em todas as
latitudes do país. Não é aleatório lembrar do “tiro ao alvo” contra a então
presidenta legitimamente eleita Dilma Rousseff dentro da Polícia Federal. O agente
que o fez em serviço e o divulgou nas redes sociais cometeu um ato de insubordinação
grave, haja vista o comando que a Presidência da República, por intermédio do
Ministério da Justiça, exerce sobre aquele órgão. O que ocorreu ao agente? Um
processo disciplinar resultante em demissão a bem do serviço público? O
processo até que se cumpriu, mas a apuração da apologia ao crime contra a vida
da então autoridade máxima da nação lhe rendeu aprazíveis quatro dias de
suspensão... Há três anos, esse evento apenas confirmava a fratura da cadeia
hierárquica do governo federal numa conjuntura que flertava com a luta
aberta entre os três Poderes e, doravante, com a derrocada de uma incipiente democracia.
Todavia, o que causa verdadeira
perplexidade não é o atentado em si, mas o endosso ao mesmo por membros da
política institucional que, diante da crescente beligerância de grupos de
extrema direita, poderiam ser mediadores capazes de devolver a luta ideológica
ao leito da esfera pública. Pelo contrário: acirram os ânimos dos “odiadores da
política” até, quiçá, regredir a vida civil a uma horda primitiva. Segundo
Geraldo Alckmin (PSDB), governador de São Paulo, Lula e seus apoiadores “estão colhendo o que plantaram”[2], enquanto
a senadora Ana Amélia (PP-RS) exalta os agressores de sua
caravana na passagem pelo Rio Grande do Sul: “Quero parabenizar Bagé, Santa Maria, Passo
Fundo, São Borja. Botaram a correr aquele povo que foi lá levando um condenado
se queixando da democracia. Atirar ovo, levantar o
relho, mostra onde estão os gaúchos”[3]. Evidente que ambos operam uma inversão dos fatos. Um dos mais hábeis artífices da conciliação de classes, para o bem e para o mal, foi Lula quando à frente do Planalto e, ao contrário do que apregoa Ana Amélia, a condenação do ex-Presidente em um processo penal sem sentença definitiva (e cujas “inovações jurídicas” fazem corar qualquer professor de Direito Constitucional) não lhe retira o direito de reunir-se pacificamente em local público.
Da suposta equalização
dos polos da política brasileira na Era Lula, chegamos à mobilização dos seus
extremos rumo a uma conflagração na qual tudo parece possível. A defesa da candidatura
de Lula à Presidência não é, necessariamente, adesão espontânea àquela
liderança senão a aceitação de que a soberania popular é irrenunciável e de que
os seus titulares não podem ter suas escolhas cerceadas pela retirada forçada
de Lula ou de quaisquer atores políticos das eleições majoritárias deste ano. A manutenção de uma democracia
sem povo, em tese, não deveria ser aceitável pela fração civilizada da direita
brasileira. Não obstante, a repactuação de limites na luta política ainda está
longe de encontrar porta-vozes que convençam do contrário aqueles que
amam odiá-la. Diante desse quadro, a resistência democrática de Lula, independente dele ser ou não
elegível em outubro, é um experimento entre outros para a tarefa que se agiganta para toda
uma geração: refundar a república brasileira.