quarta-feira, 30 de junho de 2021

Pandemia, memória e justiça

Jogadores do clube de futebol uruguaio Villa Española em partida contra o Peñarol dizem "Nem esquecido, nem perdoado" à morte do coronel José Nino Gavazzo, agente de repressão na ditadura uruguaia. Fonte: Brasil de Fato. 


Pandemia, memória e justiça    

Paulo Sérgio Ribeiro

Em uma sessão da CPI da COVID, seu relator, Senador Renan Calheiros (MDB-AL), iniciou os trabalhos do dia com um ato de memória, a saber, a alusão ao Julgamento de Nuremberg, um paralelo com o destino dos próceres alemães do nazismo[1]. Citar um evento tão caro à autoimagem do Ocidente no pós-guerra evidenciaria, pois, um senso de responsabilidade histórica exigido pela matéria que os senadores têm em mãos, a saber, um possível crime contra a humanidade ou, não menos, um genocídio perpetrado pelo presidente da república, membros da alta administração federal e demais coadjuvantes surgidos da promiscuidade entre a burocracia estatal, empresários da estirpe de um “Véio da Havan” ou Carlos Wizard e o submundo do poder armado (alas golpistas das Forças Armadas, grupos fascistizados das polícias estaduais, garimpeiros, madeireiros, grileiros, milícias etc).

O ato, como esperado, teve pronta resposta dos senadores governistas na CPI. Para estes, tratar-se-ia simplesmente de uma fala “odiosa”, fora de contexto ou, quiçá, um “jogar para a plateia”. Ora, a virulência daquela reação diz muito sobre o nexo entre o que fazer para sobrevivermos – uma inflexão na política nacional de saúde que esteja à altura da complexidade da pandemia do novo coronavírus - e o que fazer para vivermos sem ignorar aqueles que se foram – a apuração de responsabilidade objetiva do Estado em um morticínio sabidamente evitável e, o que não é tão óbvio, a construção de uma memória nacional da pandemia que devolva um sentido a este luto coletivo.

Falar em gestão da memória no calor dos acontecimentos da CPI da COVID seria uma questão extemporânea? Se considerarmos que uma política do esquecimento é retroalimentada pela permissividade a práticas autoritárias de líderes, agentes ou apologistas de um Estado policial que flanaram pelas instituições ao longo da transição democrática, podemos responder sem titubear: não.

Contrarrevoluções do passado que impliquem violações em massa de direitos estão sujeitas ao escrutínio público com vistas a consolidar regimes políticos que tenham por fundamento a soberania popular. Tal revisão corresponde a uma política de memória, assumindo o Estado o dever de efetivar o direito à verdade tanto às vítimas do terrorismo estatal quanto às novas gerações para que se repactuem, em processos individuais e coletivos, limites éticos e padrões morais próprios aos direitos humanos.  

Como salienta Antônio Barros[2], temos de distinguir conceitualmente verdade hermenêutica de verdade factual. A primeira é a que se submete ou, melhor, é moldada pela disputa de opiniões inerente aos processos legislativos e ao debate público. Pelo próprio dissenso que variadas possibilidades interpretativas em torno de uma questão de interesse público suscitam, a força da persuasão tende a prevalecer sobre as proposições de validade universal. Não à toa, assistir a um cientista ser “inquirido” por um senador bolsonarista na CPI da COVID seja o mesmo que ver alguém jogando xadrez com um pombo... A segunda, por sua vez, equivale a um juízo de fato, isto é, àquilo que, sob pena de um constrangimento epistêmico, não se pode pôr em dúvida mesmo aqueles que se opõem ferrenhamente na luta ideológica. Exemplo: conservadores e progressistas reconhecem o caráter problemático das desigualdades raciais no Brasil, mas oferecem prognósticos concorrentes a este respeito quando adentram no debate econômico.

Não obstante, mesmo que admitamos que o processo de formação da opinião seja sempre um equilíbrio instável entre distorções deliberadas da realidade e a busca de um recorte da realidade que se ajuste a um diagnóstico do tempo presente, alguns pontos de partida podem ser traçados quando olhamos para a chamada Era Bolsonaro como a face mais sombria do país que sobreveio à Lei de Anistia de 1979.

A Lei nº 6.683/1979, promulgada na ditatura civil-militar, concedeu anistia a presos, exilados ou àqueles que estiveram na clandestinidade por terem praticados crimes políticos, bem como aos agentes da repressão que tenham praticado assassinato, tortura, desparecimento forçado e demais violações de direitos humanos entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Equiparar as formas de crítica, de protesto e de desobediência civil experimentadas nos anos 1960 e 1970 a uma pretensa “legitimidade” do regime de exceção que se instalava no Brasil é uma premissa que, na referida lei, é observável pela exclusão da anistia àqueles que foram presos por terem se engajado na luta armada contra o regime.

Para José Carlos Filho[3], a ambiguidade da Lei da Anistia matizou o processo de redemocratização entre nós. Se, por um lado, a anistia foi uma demanda pela reabertura política que ensejou uma mobilização social que se faria decisiva na campanha pelas Diretas Já (1983-84) e na Assembleia Constituinte (1987-88), por outro, representou uma justiça de transição conservadora, uma vez que promoveria o “esquecimento institucional” dos crimes contra a humanidade e, por conseguinte, a impunidade dos seus autores e executores. Como bem sintetiza José Carlos Filho:

 

Em outras palavras, militares, policiais, juízes, promotores, políticos e demais funcionários públicos que participaram ativamente do processo de perseguição política aos opositores do regime ditatorial continuaram nos seus postos de trabalho como se nada houvesse acontecido (SILVA FILHO, 2018, p. 1287-1288).

 

O fragmento em destaque nos serve para não subestimar a heterogeneidade dos grupos de interesse que sustentam uma ditadura. Não obstante, indagar como chegamos ao descalabro da pandemia é indagar como Jair Messias Bolsonaro chegou à Presidência da República e, de modo complementar, qual papel o partido militar desempenha na transição democrática e, sobremaneira, no pós-golpe de 2016. Marcelo Pimentel, coronel e oficial de artilharia formado na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) em 1987, elabora uma definição coerente dessa grande eminência parda da “Nova República”. A seu ver, trata-se de “um grupo coeso, hierarquizado, disciplinado, com algumas características autoritárias e claras pretensões de poder político, dirigido por um núcleo de generais formados nos anos 1970 na Academia Militar das Agulhas Negras, que integraram ou integram o Alto-Comando do Exército”[4].

A interdição do debate sobre a ditadura civil-militar dentro das próprias Forças Armadas em termos, digamos, mais realistas do que o revisionismo histórico que nomeia o golpe de 1964 de “revolução redentora” é sugestivo do quão herméticas suas corporações podem ser e de como a socialização na caserna tem, paradoxalmente, na subversão da ordem constitucional uma espécie de salvo-conduto para a transgressão disciplinar intramuros.

Para confirmá-lo, bastaria recordarmos a controversa retirada do então capitão Jair Bolsonaro dos quadros do Exército brasileiro[5]: em 1986, a revista Veja publica em sua seção “Ponto de Vista” artigo de autoria de Jair Bolsonaro, a serviço do 8º Grupo de Artilharia de Campanha, intitulado “O salário está baixo”, uma infração que lhe infligiria a prisão administrativa e, ironicamente, notoriedade entre oficiais da ativa e da reserva. No ano seguinte, a mesma revista Veja noticiou o planejamento da operação “Beco sem saída” que teria em Jair Bolsonaro seu principal artífice. A operação, que não chegou a ser executada, consistia em detonar explosões em unidades da Vila Militar sediada na AMAN, caso o reajuste concedido aos militares pelo governo federal ficasse abaixo de 60%.

Os resultados de uma sindicância feita pelo Exército concluíra que Jair Bolsonaro e outro capitão, Fábio Passos da Silva, deveriam ser expulsos da corporação por conceberem tal operação, levando o Ministro do Exército à época, Leônidas Pires Gonçalves, a submetê-los ao Superior Tribunal Militar (STM). Contudo, o STM decidiu pelo não afastamento de ambos os capitães, em face de inconsistências no processo. Em 1988, Bolsonaro vai para a reserva conservando sua patente de capitão e, a partir de 1990, inicia sua carreira política como vereador eleito no Rio de Janeiro pelo extinto Partido Democrata Cristão (PDC), arregimentando sua base eleitoral no antigo reduto militar.

A circunstância desse julgamento – secreto, sem acesso à imprensa – e o seu resultado são, para o jornalista Luiz Maklouf Carvalho – autor do livro “O cadete e o capitão”, que aborda a trajetória militar de Jair Bolsonaro – expressivos do “espírito de corpo militar”, assim como de sua “hostilidade à imprensa” durante a transição democrática[6]. Aqui, podemos refazer nossa indagação com maior detalhamento: como um ex-militar que chegara a ser julgado por seus pares por ter arquitetado um atentado à bomba contra a AMAN não só chega à Presidência da República como “quarteliza” o primeiro escalão do governo federal com mais de seis mil militares da ativa e da reserva em seus postos-chave?

Uma hipótese: por menor que seja a honorabilidade do ex-capitão junto ao Alto-Comando do Exército devido ao seu histórico de indisciplina – um autêntico “bunda suja” -, o partido militar não teria por que ignorar na projeção nacional de Jair Bolsonaro um “ativo político” para regressar ao Planalto como condottiere de ocasião do golpe parlamentar de 2016: uma ruptura institucional cujos elementos de exceção mostrar-se-iam mais difusos do que em 1964 com o lawfare no Poder Judiciário mas, nem por isso, refratáveis à tutela das armas. João Cézar Castro Rocha, autor do livro “Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas do Brasil”, avalia o discurso bolsonarista como tributário de uma “mentalidade revisionista e revanchista no Exército porque considera que os militares venceram a batalha, no golpe de 1964, mas perderam a guerra, a guerra pela opinião pública”[7] e faz um alerta, no mínimo, perturbador:

 

Nós nos aproximamos do momento mais grave da vida brasileira desde a redemocratização. Teremos uma recessão econômica cuja recuperação não se encontra ainda no horizonte, e o colapso do governo Bolsonaro é inevitável, porque não se pode governar sem dados objetivos. A armadilha da guerra cultural é essa: você se mantém numa aparência de êxito permanente, mas você não consegue fazer nada. Você está totalmente preso na armadilha do seu próprio êxito aparente, que é virtual e em boa medida alimentado por robôs. Quanto maior o colapso do governo, maior a virulência da guerra cultural e maior a tendência dessa guerra virtual transbordar para as ruas. Não dá para governar um país criando inimigos o tempo todo. (...) Nós vivemos hoje a iminência, um risco sério de um golpe autoritário, que será mais violento que a ditadura militar porque esse desejo de eliminação das instituições não fazia parte da ditadura militar. A ditadura militar queria criar instituições à sua imagem e semelhança. O bolsonarismo pretende destruir instituições. Nós só poderemos deter esse processo se compreendermos a lógica perversa que domina esse governo[8].

 

Entender essa lógica perversa, na aceleração da conjuntura em que nos encontramos, requer indagar se uma nova “operação de esquecimento” sobre o extermínio não apenas do “inimigo interno” da vez – os partidos de esquerda, as minorias organizadas, as lideranças do campo, os povos originários -, mas da população em geral estará em andamento em mais um capítulo da nossa história em que o monopólio da força é corrompido por uma burguesia em guerra contra toda nação.



[1] Portal G1. CPI da Covid tem discussão após Renan citar julgamento de Nuremberg. Edição de 25/05/2021. Disponível aqui.

[2] Cf. BARROS, Antônio Teixeira de. O debate parlamentar sobre a Comissão Nacional da Verdade no Congresso Nacional Brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 2020, vol. 35, nº 104. Disponível aqui.

[3] Cf. SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Justiça de transição e usos políticos do Poder Judiciário no Brasil de 2016: um golpe de estado institucional? Revista Direito & Práxis, vol. 9, nº 3, set. 2018. Disponível aqui.

[4] Carta Capital. O Brasil é refém do Partido Militar, diz coronel. Edição de 30/05/2021. Disponível aqui.

[5] As informações biográficas de Jair Bolsonaro foram consultadas no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Disponível aqui.

[6] Portal G1. Aversão de militares à imprensa ajudou a absolver Bolsonaro em 1988, diz autor de livro. Edição de 31/07/2019. Disponível aqui.

[7] Agência Pública. “Quanto maior o colapso do governo, maior a virulência da guerra cultural”, diz pesquisador da UERJ. Disponível aqui.

[8] Idem.

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Divulgação - "Um certo senhor Gabriel"

 

O Cineclube Marighella e o Coletivo Teatral En La Barca convidam para a exibição do filme 'Um certo senhor Gabriel' (2021) seguido de debate.

O filme revisita a trajetória do artista popular Gabriel Joaquim dos Santos a partir dos cadernos que ele escreveu e dos relatos de Valdevir dos Santos, sobrinho-neto de Gabriel e, hoje, o guardião do seu maior legado artístico – a Casa da Flor, em São Pedro da Aldeia.

Gabriel começou a criar sua própria casa em 1912, a construção com paredes em taipa e esteios em madeira roliça foi decorada com mosaicos, esculturas e enfeites criados a partir do lixo e objetos quebrados, e se tornou fonte de inspiração para grandes nomes da cultura brasileira, como Ariano Suassuna.

O documentário é o primeiro material em audiovisual do coletivo En La Barca Jornadas Teatrais e foi realizado através de recursos da Lei Aldir Blanc.

Terça, 29 de junho – 19h

O encontro acontecerá pelo zoom - faça sua inscrição no Sympla pelo link:

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Feminicídio: até quando seguiremos assistindo essa violência?

Feminicídio: até quando seguiremos assistindo essa violência?*

* Publicado originalmente em Brasil de Fato.

Luciane Silva** & Michely Lazarini**

No mesmo dia de junho de 2021, duas mulheres foram atingidas na cidade de Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro, por homens com uso de armas brancas. Uma delas, foi atingida e assassinada em uma praça de alimentação de um shopping em seu horário de almoço. Jovem como seu assassino, buscava em um curso de enfermagem o mesmo que outras milhares de mulheres: qualificação.

Ao longo dos últimos anos temos produzido matérias, lives, textos, manifestos sobre o feminicídio. E ao revisar este material, era obrigatório pensar qual contribuição pode ser dada em um novo texto. Já falamos de socialização de meninas (e como se aprende o que é azul e o que é rosa), já falamos da violação de mulheres, da rede de pedofilia em Guarus, do levante feito por mulheres com o "Ele Não!" em 2018.

E de lá para cá todos os dossiês, institutos de pesquisas, dados de delegacia e manchetes de jornais, mostram o aumento de casos de morte de mulheres - tipificado como feminicídio desde 2015, sob a lei 13.104/2015 que altera o Código Penal. 

Servir-se da ciência em tempos de negacionismo é ir além do que já foi pontuado sobre o comportamento masculino. E mais, contrariar aquilo que muitas vezes é apresentado como explicação científica mas em nada coopera para compreender o fenômeno do aumento e da banalização da morte de mulheres.

Ao fazermos uma busca pelo termo “facada” na tentativa de compreender sua ocorrência, encontramos mais de 300 casos recentes espalhados pelo país. Novo Hamburgo, Belo Horizonte, Ribeirão Preto, Taguatinga, Campos dos Goytacazes, em pequenas, médias e grandes cidades do Brasil. O discurso de ódio se intensificou desde 2018 e precisamos ler o pesquisador alemão Theodor Adorno e sua produção sobre a personalidade fascista para entender as relações entre capitalismo, psicanálise e frustração.

Vamos apresentar esta discussão a partir de pontos que podem ser avaliadas pelos leitores:

- O uso de armas brancas e outros instrumentos domésticos é feito com emprego de crueldade contra a vítima. Desfigurar, mutilar após a morte arrancando pedaços do corpo, violar sexualmente, todos estes atos são parte do assassinato. Em um caso recente, ocorrido no Distrito Federal, o ex-namorado confessou à polícia ter permanecido no apartamento “vendo a vítima agonizar, gemer e gesticular”;

- É comum a alegação de que “nunca pensamos que isto irá ocorrer conosco”. Mas em uma pesquisa nas redes sociais de vítimas e analisando reportagens recentes, é possível encontrar casos que se entrelaçam, mulheres pesquisando ou militando pelo direito à vida que acabam assassinadas por motivos fúteis em via pública;

- Não são raros os casos em que um assalto se transforma em estupro e feminicídio. Em um caso recente, a servidora pública de 49 anos, Luciana de Mello, termina seu relacionamento ao saber da morte de Letícia Curado de 26 anos (ela passa a refletir sobre a natureza abusiva de seu relacionamento). O assassino de Letícia, confessa ter assassinado também Genir Pereira de Souza, no mesmo ano, na mesma cidade;

- A presença de filhos pequenos é uma variável importante a ser observada pois agrava a pena. Em um dos casos, a vítima foi jogada em um poço na frente do filho de oito anos de idade. Em outro caso, em Ribeirão Preto, ocorreu um feminicídio triplo. Não só a morte de uma mulher de 41 anos mas de suas duas filhas; 

- As acusações variam de traição até reclamações na volta de um bar. Recentemente uma mulher de 40 anos foi morta por discussão no Final da Copa Libertadores. Ele era corintiano e ela palmeirense. O casal tinha filhos gêmeos.

Em primeiro lugar, a idade dos envolvidos em casos recentes de feminicídio. Se estamos discutindo gênero e alguns alegam que estes são comportamentos de outra geração, o que vimos no caso do shopping de Niterói foi um jovem de 21 anos assassinar sua colega por recusar uma oferta de paixão. Esse caso aciona um sinal vermelho para as formas de socialização não apenas nas escolas mas em família, trabalho e círculo de amigos.

Em segundo lugar, toda a construção midiática das mulheres segue transformando seu corpo em objeto de consumo e erotização. Em sites adultos, esta erotização vem acompanhada de violência e frequentemente de submissão. A centralidade da propriedade sobre o corpo feminino segue sendo a principal forma de construção da masculinidade?

Precisamos discutir a forma de acesso destes adolescentes à pornografia e como eles imaginam que deva ser uma relação com outra mulher. Tão cedo já vemos um comportamento padrão: esperar meninas de 15 anos na frente da escola, afastá-las dos amigos e família, tudo isto, embora conhecido, continua sendo aceito e justificado. 

Os “surtos” de violência seguidos de pedidos de desculpa que instauram um ciclo cujo desfecho tem se tornado muito frequente. Bater com a cabeça da namorada contra a parede, impedir sua saída, trancar portas, forçar relações sexuais, produzir hematomas, deixar alguma marca permanente como lembrança e ameaça. Atos presentes em relacionamentos abusivos.

Em terceiro lugar, temos lido sobre transtornos, bipolaridade, esquizofrenia e comportamento na área de psicologia. É possível ir além:  é um erro patologizar o assassino como um homem com problemas psíquicos. Não só porque esta forma de matar mulheres é um fato social (e é objeto da sociologia a considerar a alteração recente do número de mortes) mas também porque banaliza a psicologia e o tipo de sofrimento que esta ciência trata em seus conteúdos.

Não estamos falando de nenhuma doença ou anomalia em 70% dos casos. Estamos falando de uma relação entre indivíduo e sociedade e não de um desvio biológico ou algo semelhante às teorias lombrosianas do século XIX. 

Para concluir, até que possamos enfrentar com seriedade o assédio cotidiano nas escolas, universidades, bancos, casas de família, delegacias, quartéis, igrejas, bares, enfim. Até que façamos algo que coloque limites as formas de assédio, não teremos qualquer avanço no combate ao feminicídio.

São dois fenômenos intensamente conectados. Precisamos de políticas públicas, redes de assistência, alteração da forma midiática de tratar o feminicídio. O que não precisamos é da insensibilidade e do ódio que culpam a vítima pela violência sofrida.

** Pesquisadoras do Núcleo Cidade, Cultura e Conflito da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).

terça-feira, 15 de junho de 2021

Nota de Pesar - prof. Glaucio Presente!

 Nota de Pesar

Campos dos Goytacazes, 15/06/2021


É com imensa tristeza que recebemos ontem a notícia sobre o falecimento do professor Gláucio

Ary Dillon Soares. Ex-professor do IUPERJ e do IESP/UERJ, ex-presidente da ABCP e ex-Secretário Geral da ALACIP, Gláucio desenvolveu várias pesquisas no campo da Ciência Política e da Sociologia. Foi um dos pioneiros nos estudos sobre partidos e eleições no Brasil, em diversas obras desenvolveu aguçadas críticas sobre a Ditadura Militar de 1964, tornando-se referência nessa área, e mais recentemente se destacou em pesquisas sobre violência. Assim, mais do que um farto legado para as futuras gerações de cientistas sociais, Gláucio deixa uma lição de cidadania para a população. Extremamente querido e amado por seus alunos, orientandos e colegas, o professor Gláucio reverteu todo esse carinho em força para lutar bravamente durante anos contra um câncer, mas não resistiu à Covid-19 e lamentavelmente se tornou mais uma vítima dos crimes contra a saúde pública, dos negacionistas e genocidas que hoje ocupam o governo.


Prof.Dr. Claudio Araujo de Souza e Silva (Coordenador Bacharelado-COC/UFF)

Profa.Dra. Raquel Brum Fernandes da Silveira (Coordenadora Licenciatura-COC/UFF)

Prof.Dr. Carlos Abraão Moura Valpassos (Chefe de Departamento-COC/UFF)

Prof.Dr.George Gomes Coutinho (COC/UFF)

Prof.Dr. Frederico Carlos de Sá Costa (COC/UFF)

Profa.Dra. Mariele Troiano (COC/UFF)

Prof.Dr. Ricardo Bruno Ferreira (COC/UFF)

Pof.Dr. Rodrigo de Araujo Monteiro (COC/UFF)

quinta-feira, 10 de junho de 2021

O que pode estar por trás da indicação do ex-prefeito Crivella para embaixada na África do Sul

Olá!

Tive o prazer de participar da reportagem da BBC da ótima Juliana Gragnani, “O que pode estar por trás da indicação do ex-prefeito Marcelo Crivella para a embaixada da África do Sul”. Quando a gestão Bolsonaro busca agradar a cúpula da IURD, com quem se desgasta oficialmente desde o fim de 2020, com a nomeação de Crivella para embaixada da África do Sul, onde teve papel de destaque na década de 1990. Indico a leitura da reportagem.

Abraços,

Fábio Py. 

O que pode estar por trás da indicação do ex-prefeito Crivella para embaixada na África do Sul*

 * Publicado originalmente em BBC News Brasil.

 "A dor de ontem / Não vai vencer / Quem vive aqui / Sabe esquecer / África / África / África", canta o bispo Marcelo Crivella na canção "África", lançada no fim dos anos 1990.

Fazer esquecer "a dor de ontem" talvez seja a principal missão de Crivella em sua possível volta à África, onde a Igreja Universal do Reino de Deus que ele ajudou a fincar vive uma gigantesca crise.

O ex-prefeito do Rio de Janeiro foi preso preventivamente e afastado do cargo no ano passado acusado de chefiar um esquema de propina. Agora, foi indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para a embaixada do Brasil na África do Sul.

A indicação ainda depende de uma resposta positiva do país e da aprovação do Senado brasileiro.

A tensão da Universal nos últimos meses se deu em Angola. Segundo a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o Serviço de Investigação Criminal do país disseram à BBC News Brasil, há provas fartas e contundentes contra quatro integrantes da igreja, denunciados sob acusação de crimes como lavagem de dinheiro, evasão de divisas e associação criminosa.

A igreja refutou todas as acusações, as classificou de "fake news" e disse que os quatro membros acusados ainda não conseguiram acesso à investigação formal. "Nem a Universal, nem seus bispos e pastores praticaram crimes em Angola", disse à BBC News Brasil.

Crivella, que morou na África do Sul com a família nos anos 1990, foi fundamental para a ampliação da Universal, ou IURD (Igreja Universal do Reino de Deus), no país e nos países vizinhos.

Na opinião especialistas entrevistados pela BBC News Brasil, o movimento de Bolsonaro visa a controlar duas crises: a da Universal no continente africano e, especialmente, a do presidente com a Universal.

A indicação do governo tem uma "dupla função", diz a antropóloga Jacqueline Moraes Teixeira, professora no Programa de Pós Graduação em Educação da USP e pesquisadora do Cebrap. A primeira, é ter Crivella para "tentar de alguma maneira apaziguar possíveis levantes de outros países no continente africano" no contexto da Universal.

A segunda está relacionada à aliança do próprio governo com a Universal. "Mantê-la como apoio é fundamental para o governo Bolsonaro batalhar a sua estabilização e seu crescimento na disputa pelo voto evangélico nas eleições em 2022", afirma Teixeira.

Crise 1

Alguns anos depois da fundação da Universal em 1977, o bispo Edir Macedo começou um projeto de expansão internacional da igreja. No continente africano, essa ampliação começou em Angola, por volta de 1991. Na África do Sul, por volta de 1993.

Crivella, sobrinho de Macedo, foi enviado ao país como missionário para tocar a expansão, que se dava por meio da compra de espaços em lugares onde há maior movimentação de pessoas, abertura de templos e investimento em mídia.

"Era super importante ter alguém de confiança que realmente investisse nesse projeto de transnacionalização. Foi Crivella quem produziu esse primeiro processo de organização, elaboração e gestão do crescimento institucional da IURD pelos outros países da África e dentro da África do Sul", diz Teixeira.

"Em 1994, cheguei com minha esposa e três filhos na cidade de Durban. Saíamos pelas ruas dando folhetos, convidando as pessoas para a reunião na igreja", diz Crivella em um vídeo publicado em seu canal do YouTube em 2009. Ele está ao lado da esposa, mostrando o templo da Universal na cidade que fica no leste da África do Sul. "E logo ela [a igreja] começou a encher. Era uma lojinha pequena dentro do mercado indiano. Deus abençoou e se transformou numa grande catedral."

A data de chegada de Crivella no país coincide com o fim do Apartheid, o regime de segregação racial na África do Sul. A ideia inicial da Universal, diz lana van Wyk, professora de antropologia da Universidade de Stellenbosch, na África do Sul, era atingir os falantes de português, pessoas vindas de países lusófonos vizinhos - tanto que os primeiros cultos em Joanesburgo, maior cidade do país, eram nessa língua. Wyk é autora do livro The Universal Church of the Kingdom of God in South Africa (A Igreja Universal do Reino de Deus na África do Sul).

"Mas, de forma inesperada, atraiu um grupo grande de pessoas negras. A igreja saiu, então, de um bairro predominantemente branco e se imiscuiu em regiões com população negra", afirma Wyk.

Ela lembra da presença de Crivella no país. "Grandes multidões de pessoas compareciam a seus sermões. Ele tinha uma reputação de homem forte de Deus, com histórico de milagres."

Para ela, a Universal se aproveitou do momento pós-Apartheid, em que havia sentimento de esperança no país, para angariar membros. Com seu discurso de prosperidade, deslumbrou os sul africanos desejosos de mobilidade social e integração racial. "O momento em que a igreja entrou na África do Sul foi bem escolhido. Foi num tempo de muita esperança de mudança política e econômica", diz Wyk.

"Quando a Universal chegou, as pessoas pensavam que finalmente poderiam 'usar' o poder de Deus para mudar suas vidas de maneira prática. O Deus da igreja poderia os tornar ricos e saudáveis."

Hoje, segundo o site da Universal da África do Sul, há 309 igrejas no país - menos que as 320 contabilizadas por Wyk na época em que publicou seu livro, em 2014. Segundo ela, a igreja vem perdendo força na região, com membros migrando para outras denominações pentecostais ligadas à figura de profetas.

Ao lado das movimentações em Angola, essa hemorragia de membros forma um cenário preocupante para a Universal no continente. Bispos e pastores angolanos divulgaram há dois anos um manifesto com acusações públicas contra os brasileiros da igreja, iniciando um processo de "reforma" em Angola.

Para Teixeira, a presença de Crivella, "como toda a experiência que teve na África do Sul, seria uma forma de ajudar na mediação dos conflitos e pensar na contenção de danos dessa crise gravíssima" no continente.

Voltar à África também deve cumprir um desejo antigo de Crivella, segundo ele próprio já expressou. Em junho de 2014, em entrevista ao jornal da Universal, a Folha Universal (n° 1.160, ano 22), Crivella disse não ter sido "fácil viver na África em um tempo de guerra política no fim do apartheid". "Mas agradeço muito a Deus por ter me dado a honra de ter passado por aquelas dificuldades, que apenas nos fizeram mais fortes."

Quando questionado se tinha vontade de se tornar político, Crivella responde: "Confesso que não queria. Não queria mesmo. O que eu sonhava era voltar para a África ou qualquer que fosse o país."

O sonho virou também conveniência: com a nomeação, o ex-prefeito do Rio passa a ter foro privilegiado, e o processo a que responde é transferido para o Supremo Tribunal Federal.

Crise 2

O envio de Crivella para a África do Sul também cai como uma luva para Bolsonaro, que foi cobrado por lideranças da Universal pela omissão do Itamaraty diante da crise em Angola.

Para o teólogo evangélico Fábio Py, professor do programa de pós-graduação em políticas sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense, a "jogada" de Bolsonaro é uma maneira de afagar a crise entre ele e a igreja, que já cobrou diversas vezes posicionamento do presidente em relação às tensões no continente africano.

"Bolsonaro percebe que não consegue resolver a questão de Angola porque entra em questão nacional do país. Para dar outro caminho, ele abre possibilidade de Crivella assumir a relação Brasil-África do Sul", afirma. "É uma jogada para não perder o apoio do Macedo."

Para ele, com a indicação, Bolsonaro age para não "desamarrar a igreja Universal" de si. "Até porque está começando a pintar 2022. Bolsonaro começa a se armar por conta de Lula", diz. O presidente não quer "perder a Universal, sua estrutura e o processo de propaganda da Universal" visando às eleições.

A igreja é representada no Congresso pelo partido Republicanos, aliado do governo.

Além disso, o eleitorado evangélico tem um peso significativo para o presidente - e uma pesquisa Datafolha divulgada no dia 12 de maio apontou o ex-presidente Lula (PT) e Bolsonaro empatados no primeiro e segundo turnos entre o eleitorado evangélico. Indica que o atual presidente precisa se mexer para não perder votos com essa parcela de eleitores.

Para Teixeira, o discurso ostensivo por parte de lideranças da Universal sobre a falta "de apoio e resguardo" do Itamaraty é o que fez o governo se mexer. "É como se o governo Bolsonaro não estivesse correspondendo ao apoio da igreja, o que pode fazer com que ela repense o apoio eleitoral", diz. "A aliança estaria em risco."

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Divulgação - "O Brasil não nasceu ontem: os caminhos da imaginação política brasileira"


 

"Para Bolsonaro, parece que nenhuma ação tem consequência." - Luis Felipe Miguel

"Para Bolsonaro, parece que nenhuma ação tem consequência."*


Luis Felipe Miguel**

***


Se Bolsonaro chegar ao final de seu mandato, como parece que infelizmente chegará, ele terá sido vitorioso.

Mesmo perdendo as eleições, como espero que perca.

Ele terá mostrado que é possível alcançar a presidência por meio de eleições fraudadas manu militari e governar rasgando a Constituição, transformando o Estado num puxadinho de sua milícia, conspirando contra a democracia (ou o que dela resta), destruindo os direitos, sufocando as liberdades e matando o povo - e tudo bem.

Para Bolsonaro, parece que nenhuma ação tem consequência.

Tá certo que a gente sempre falou em "seletividade das instituições", mas devia ter algum limite, não?

O que se escancarou é que a direita pode tudo e as regras vigentes servem apenas para, quando for o caso, reprimir a esquerda.

Estamos pagando um alto preço por termos deixado impunes os crimes da ditadura. A conta será igualmente trágica se o bolsonarismo não for responsabilizado.

Em nome da "pacificação nacional", um eventual governo democrático será instado a varrer tudo para debaixo do tapete.

Isto não deve ser considerado uma opção. Investigar e punir Bolsonaro e seus muitos cúmplices não é apenas um dever diante dos milhões de vidas destruídas no Brasil - incluindo os mortos e aqueles que tiveram o futuro arrasado.

É um passo necessário para que possamos reconstruir um país. 

* Texto republicado com autorização do autor. Post original disponível em: <iframe src="https://www.facebook.com/plugins/post.php?href=https%3A%2F%2Fwww.facebook.com%2Fluisfelipemiguel.unb%2Fposts%2F10219846740339839&show_text=true&width=500" width="500" height="294" style="border:none;overflow:hidden" scrolling="no" frameborder="0" allowfullscreen="true" allow="autoplay; clipboard-write; encrypted-media; picture-in-picture; web-share"></iframe>


** Professor titular livre do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. Coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). É autor de  "Democracia e representação: territórios em disputa" (Editora Unesp, 2014), "Dominação e resistência" (Boitempo, 2018), dentre outros.


*** Paul Klee, "Angelus Novus". Disponível em: https://images.app.goo.gl/4PqRAqM2tseDp3qj7, acesso em 09 de jun. 2021.

terça-feira, 1 de junho de 2021

Sobre polarização e doisladismo no Brasil de Bozoasno

 
Créditos: Fabiano Rangel.

Sobre polarização e doisladismo no Brasil de Bozoasno.

 

Márcia Cristina Mérida Aguiar*

 

Tive contato com o conceito em moda hoje, “polarização”, faz tempo. Muitas vezes, vem sendo usado sem qualquer referência à sua construção histórica mais recente e, por vezes, para se dizer sabe-se lá o quê.

Conheci, usei, estudei “polarização” referindo-se às duas potências da Guerra Fria, EUA X URSS, que num confronto de décadas, se destacavam como polos.

A palavra "polo" diz sobre poder, capacidade, potência de lados opostos, se não iguais, pelo menos com alguma equivalência ou correspondência.

Não há uma só vez que eu escute ou leia a palavra polarização sobre o Brasil contemporâneo, que não me lembre destes elementos: dois polos se confrontam por possuírem poderes equivalentes.

Nunca tinha ouvido a expressão referindo-se às situações desiguais. No entanto, no Brasil do Bozoasno, esta palavra abriu mão da equivalência, princípio básico da polarização e passou a substituir tudo que até então era tratado por lados em oposição, lados assimétricos, lados desiguais, lados que não se enfrentam em iguais condições.

De repente, estamos nadando contra o afogamento neste mar de doisladismos.

Parece até que nos foi furtada a possibilidade de pensar e agir, afinal, este discurso não reflete a desigual relação de forças, os instrumentos de afirmação e as formas de (luta pela) existência.

Em meio a esta bruma confusa que surge no novo léxico, passamos à exposição digladiadora sendo tratada como debate, sem chance de entendimentos ou de divergências civilizadas, por exemplo, entre pressupostos científicos e formulações que chegam pelo tio do zap.

Parece que abandonamos a premissa primordial do debate: é preciso que se fale a mesma língua, ou que se tenha alguma possibilidade de tradução (não que tenham as mesmas ideias a serem defendidas), mas algum chão comum é o basal na elaboração de um debate.

Nas braçadas dadas entre os doisladismos, muito se defende o direito de opinião. É esquisito observar como parece que tudo que resulta da conexão cérebro - boca seja tratado como opinião. Sou do tempo em que a opinião concorria e se diferenciava do delírio, da mentira deslavada, da pós-verdade, do blefe, da retórica etc. e, note, todas as formas discursivas fazem este caminho entre o cérebro e a boca e isto não é suficiente para tornar todo texto que venha deste percurso seja considerada opinião.

São muitas as confusões de fundo que resultam em tornar o que vivi no 29M em mais um evento da polarização, em experiência de equivalências.

Eu bem sei que a História não ensina nada a ninguém. Entretanto, nesta história, há a figura do estudante, do estudioso, do curioso, do produtor e também do aprendiz do conhecimento histórico.

O que o doisladismo me aponta, do ponto de vista histórico, são os desperdícios de conquistas históricas. Tem história, mas carece de aprendiz. Um exemplo: em todas as sociedades, o homicídio passou por algum grau de reprovabilidade. Entretanto, foi na modernidade que se consagrou o direito à legítima defesa, situação que o indesejável homicídio é permitido.

O princípio da legítima defesa, estudado em vários povos não modernos, estendido do individual ao coletivo, esteve presente na consagração do direito de resistência à opressão. Exatamente este direito, o de resistir. Sem ele, não seríamos modernos, pois foi ele que garantiu a “evolução” das formas de organização das sociedades.

Legitimamente, para superar os paradoxos da opressão dos povos, foi a luta, a resistência que desinstalou o absolutismo francês, a descolonização da América do Norte e, só para ficar bem no começo de uma longa história moderna de lutas legítimas contra o arbítrio, contra o Estado que se coloca contra seus próprios governados.

Sem esta referência histórica básica, a gente vem se perdendo, se afogando neste mar de doisladismo.

É muito estranho ouvir: estamos polarizados! "Temos dois lados iguais, a oposição não pode aglomerar porque lutou contra isto até agora e se assim fizer está repetindo o outro polo".

Quanta desconsideração histórica! Em 29 de maio, eu fui para rua ao encontro dos meus iguais. Aglomerei? Prefiro primeiro dizer o que não foi feito: o espírito da praça São Salvador não era de deboche com o vírus. Todos de máscara e álcool para higiene (quem estava sem máscara recebia gentilmente uma, acompanhada de álcool). As pessoas que se mantiveram distantes até agora não se tocavam, não se abraçavam, e todos se beneficiando da brisa do Rio Paraíba, a céu aberto. Não vi ninguém com escárnio com a pandemia, nem com os mortos, nem debochando da falta de ar que a covid produz. Muito menos cultuamos bonecos infláveis de caixa de remédio já demonstrado ser sem qualquer eficácia.

O que fizemos na praça? Demos um primeiro passo público, coletivo, contra quem nos oprime.

Eu não queria ter quebrado a quarentena, nem nestes parâmetros de cuidado que tive na 29M. Sigo sendo contra aglomerações. E não contradigo nenhuma recomendação dos cientistas em relação à pandemia. Não mudei de opinião em relação à necessidade dos cuidados adotados nestes tantos meses de terror. Simplesmente assumi o risco.

A aceitação do risco surgiu da pergunta: qual seria o momento de começar a manifestar, externalizar que não darei margem para o prosseguimento do crime contra a humanidade que assola nosso país?

Temos um Estado que age (não só se omite) para nos matar. Que não se importa com nossas vidas, que deseja mesmo, malthusianamente, um controle populacional demográfico, para tornar o ideal da pasta da Economia uma realidade. É um Estado que guarda uma granada para colocar nos nossos bolsos, que lamenta que estejamos vivendo mais e melhor, que culpa a vida pelo “rombo da previdência”, que quer salvar os grandes e que quer que os pequenos e médios se fodam (não posso colocar entre aspas, pois não estou transcrevendo, mas estas são falas ou do "asno" ou do “gênio” da economia – “gênio” que participou da construção de um Chile que neste momento está em superação, exatamente porque houve o exercício do direito de resistir à opressão).

Fui à manifestação do 29M com muito orgulho e esperança. É luta, é direito de resistência, é busca para diminuir as desigualdades. Não tem nada a ver com polarização, já que um dos lados, este que estou, está sendo massacrado. Não tem nada a ver com dois lados diferentes e igualmente legítimos.

Tenho sincero respeito por quem, neste momento, optou por não passar por este risco, porém, não compartilho de mesmo reconhecimento com quem supõe que diante de um Estado genocida, só devemos ir à rua quando não houver risco, pois isto não acontecerá. Quando não houver o risco de um vírus, haverá o risco de milícias ou de policiais mandados, o risco dos fundamentalistas, o risco de deixar crescer a tragédia que estamos vivendo etc. Esqueçam o tempo em que fazer uma manifestação era estar todos de boas com a cara pintada na rua. De agora em diante, os riscos se multiplicarão, basta que observemos o que aconteceu em Recife.

Na luta contra a opressão, o que se quer é a queda do lado opressor, ilegítimo, arbitrário, absurdo e bárbaro. Não me peçam o reconhecimento do outro lado, pois eu fui às ruas em legítima defesa.

29 de Maio,

Márcia Mérida

* Professora de História, Advogada, Mestra em Políticas Sociais.