Pandemia, memória e justiça
Paulo Sérgio Ribeiro
Em
uma sessão da CPI da COVID, seu relator, Senador Renan Calheiros (MDB-AL),
iniciou os trabalhos do dia com um ato de memória, a saber, a alusão ao
Julgamento de Nuremberg, um paralelo com o destino dos próceres alemães do
nazismo[1].
Citar um evento tão caro à autoimagem do Ocidente no pós-guerra evidenciaria,
pois, um senso de responsabilidade histórica exigido pela matéria que os
senadores têm em mãos, a saber, um possível crime contra a humanidade ou, não
menos, um genocídio perpetrado pelo presidente da república, membros da alta
administração federal e demais coadjuvantes surgidos da promiscuidade entre a
burocracia estatal, empresários da estirpe de um “Véio da Havan” ou Carlos
Wizard e o submundo do poder armado (alas golpistas das Forças Armadas, grupos
fascistizados das polícias estaduais, garimpeiros, madeireiros, grileiros,
milícias etc).
O
ato, como esperado, teve pronta resposta dos senadores governistas na CPI. Para
estes, tratar-se-ia simplesmente de uma fala “odiosa”, fora de contexto ou,
quiçá, um “jogar para a plateia”. Ora, a virulência daquela reação diz muito
sobre o nexo entre o que fazer para sobrevivermos
– uma inflexão na política nacional de saúde que esteja à altura da complexidade
da pandemia do novo coronavírus - e o que
fazer para vivermos sem ignorar aqueles que se foram – a apuração de
responsabilidade objetiva do Estado em um morticínio sabidamente evitável e, o
que não é tão óbvio, a construção de uma memória nacional da pandemia que devolva
um sentido a este luto coletivo.
Falar
em gestão da memória no calor dos acontecimentos da CPI da COVID seria uma
questão extemporânea? Se considerarmos que uma política do esquecimento é retroalimentada pela permissividade a
práticas autoritárias de líderes, agentes ou apologistas de um Estado policial
que flanaram pelas instituições ao
longo da transição democrática, podemos responder sem titubear: não.
Contrarrevoluções
do passado que impliquem violações em massa de direitos estão sujeitas ao escrutínio
público com vistas a consolidar regimes políticos que tenham por fundamento a
soberania popular. Tal revisão corresponde a uma política de memória, assumindo
o Estado o dever de efetivar o direito à verdade tanto às vítimas do terrorismo
estatal quanto às novas gerações para que se repactuem, em processos individuais
e coletivos, limites éticos e padrões morais próprios aos direitos humanos.
Como
salienta Antônio Barros[2],
temos de distinguir conceitualmente verdade hermenêutica
de verdade factual. A primeira é a que se submete ou, melhor, é moldada pela
disputa de opiniões inerente aos processos legislativos e ao debate público. Pelo
próprio dissenso que variadas possibilidades interpretativas em torno de uma
questão de interesse público suscitam, a força da persuasão tende a prevalecer
sobre as proposições de validade universal. Não à toa, assistir a um cientista
ser “inquirido” por um senador bolsonarista na CPI da COVID seja o mesmo que ver
alguém jogando xadrez com um pombo... A segunda, por sua vez, equivale a um
juízo de fato, isto é, àquilo que, sob pena de um constrangimento epistêmico, não
se pode pôr em dúvida mesmo aqueles que se opõem ferrenhamente na luta
ideológica. Exemplo: conservadores e progressistas reconhecem o caráter
problemático das desigualdades raciais no Brasil, mas oferecem prognósticos concorrentes
a este respeito quando adentram no debate econômico.
Não
obstante, mesmo que admitamos que o processo de formação da opinião seja sempre
um equilíbrio instável entre distorções deliberadas da realidade e a busca de
um recorte da realidade que se ajuste a um diagnóstico do tempo presente,
alguns pontos de partida podem ser traçados quando olhamos para a chamada Era
Bolsonaro como a face mais sombria do país que sobreveio à Lei de Anistia de
1979.
A
Lei nº
6.683/1979, promulgada na ditatura civil-militar, concedeu anistia a
presos, exilados ou àqueles que estiveram na clandestinidade por terem
praticados crimes políticos, bem como aos agentes da repressão que tenham
praticado assassinato, tortura, desparecimento forçado e demais violações de
direitos humanos entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
Equiparar as formas de crítica, de protesto e de desobediência civil experimentadas
nos anos 1960 e 1970 a uma pretensa “legitimidade” do regime de exceção que se
instalava no Brasil é uma premissa que, na referida lei, é observável pela
exclusão da anistia àqueles que foram presos por terem se engajado na luta
armada contra o regime.
Para
José Carlos Filho[3],
a ambiguidade da Lei da Anistia matizou o processo de redemocratização entre
nós. Se, por um lado, a anistia foi uma demanda pela reabertura política que
ensejou uma mobilização social que se faria decisiva na campanha pelas Diretas Já (1983-84) e na Assembleia Constituinte
(1987-88), por outro, representou uma justiça de transição conservadora, uma
vez que promoveria o “esquecimento institucional” dos crimes contra a
humanidade e, por conseguinte, a impunidade dos seus autores e
executores. Como bem sintetiza José Carlos Filho:
Em
outras palavras, militares, policiais, juízes, promotores, políticos e demais
funcionários públicos que participaram ativamente do processo de perseguição
política aos opositores do regime ditatorial continuaram nos seus postos de
trabalho como se nada houvesse acontecido (SILVA FILHO, 2018, p. 1287-1288).
O
fragmento em destaque nos serve para não subestimar a heterogeneidade dos
grupos de interesse que sustentam uma ditadura. Não obstante, indagar como
chegamos ao descalabro da pandemia é indagar como Jair Messias Bolsonaro chegou
à Presidência da República e, de modo complementar, qual papel o partido militar desempenha na transição
democrática e, sobremaneira, no pós-golpe de 2016. Marcelo Pimentel, coronel e
oficial de artilharia formado na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) em
1987, elabora uma definição coerente dessa grande eminência parda da “Nova República”.
A seu ver, trata-se de “um grupo coeso, hierarquizado, disciplinado, com
algumas características autoritárias e claras pretensões de poder político,
dirigido por um núcleo de generais formados nos anos 1970 na Academia Militar
das Agulhas Negras, que integraram ou integram o Alto-Comando do Exército”[4].
A
interdição do debate sobre a ditadura civil-militar dentro das próprias Forças
Armadas em termos, digamos, mais realistas do que o revisionismo histórico que
nomeia o golpe de 1964 de “revolução redentora” é sugestivo do quão herméticas suas
corporações podem ser e de como a socialização na caserna tem, paradoxalmente, na
subversão da ordem constitucional uma espécie de salvo-conduto para a transgressão
disciplinar intramuros.
Para
confirmá-lo, bastaria recordarmos a controversa retirada do então capitão Jair Bolsonaro
dos quadros do Exército brasileiro[5]:
em 1986, a revista Veja publica em sua seção “Ponto de Vista” artigo de autoria
de Jair Bolsonaro, a serviço do 8º Grupo de Artilharia de Campanha, intitulado “O
salário está baixo”, uma infração que lhe infligiria a prisão administrativa e, ironicamente, notoriedade entre oficiais da ativa e da reserva. No ano seguinte, a
mesma revista Veja noticiou o planejamento da operação “Beco sem saída” que teria
em Jair Bolsonaro seu principal artífice. A operação, que não chegou a ser
executada, consistia em detonar explosões em unidades da Vila Militar sediada
na AMAN, caso o reajuste concedido aos militares pelo governo federal ficasse
abaixo de 60%.
Os
resultados de uma sindicância feita pelo Exército concluíra que Jair Bolsonaro
e outro capitão, Fábio Passos da Silva, deveriam ser expulsos da corporação por
conceberem tal operação, levando o Ministro do Exército à época, Leônidas Pires
Gonçalves, a submetê-los ao Superior Tribunal Militar (STM). Contudo, o STM
decidiu pelo não afastamento de ambos os capitães, em face de inconsistências
no processo. Em 1988, Bolsonaro vai para a reserva conservando sua patente de
capitão e, a partir de 1990, inicia sua carreira política como vereador eleito no
Rio de Janeiro pelo extinto Partido Democrata Cristão (PDC), arregimentando sua
base eleitoral no antigo reduto militar.
A
circunstância desse julgamento – secreto, sem acesso à imprensa – e o seu
resultado são, para o jornalista Luiz Maklouf Carvalho – autor do livro “O
cadete e o capitão”, que aborda a trajetória militar de Jair Bolsonaro – expressivos
do “espírito de corpo militar”, assim como de sua “hostilidade à imprensa” durante
a transição democrática[6]. Aqui,
podemos refazer nossa indagação com maior detalhamento: como um ex-militar que
chegara a ser julgado por seus pares por ter arquitetado um atentado à bomba
contra a AMAN não só chega à Presidência da República como “quarteliza” o
primeiro escalão do governo federal com mais de seis mil militares da ativa e
da reserva em seus postos-chave?
Uma
hipótese: por menor que seja a honorabilidade do ex-capitão junto ao Alto-Comando
do Exército devido ao seu histórico de indisciplina – um autêntico “bunda suja” -, o partido militar não
teria por que ignorar na projeção nacional de Jair Bolsonaro um “ativo político”
para regressar ao Planalto como condottiere
de ocasião do golpe parlamentar de 2016: uma ruptura institucional cujos
elementos de exceção mostrar-se-iam mais difusos do que em 1964 com o lawfare no Poder Judiciário mas, nem por
isso, refratáveis à tutela das armas. João Cézar Castro Rocha, autor do livro “Guerra
cultural e retórica do ódio: crônicas do Brasil”, avalia o discurso
bolsonarista como tributário de uma “mentalidade revisionista e revanchista no
Exército porque considera que os militares venceram a batalha, no golpe de
1964, mas perderam a guerra, a guerra pela opinião pública”[7] e
faz um alerta, no mínimo, perturbador:
Nós nos aproximamos do momento mais grave da vida
brasileira desde a redemocratização. Teremos uma recessão econômica cuja
recuperação não se encontra ainda no horizonte, e o colapso do governo
Bolsonaro é inevitável, porque não se pode governar sem dados objetivos. A
armadilha da guerra cultural é essa: você se mantém numa aparência de êxito
permanente, mas você não consegue fazer nada. Você está totalmente preso na
armadilha do seu próprio êxito aparente, que é virtual e em boa medida alimentado
por robôs. Quanto maior o colapso do governo, maior a virulência da guerra
cultural e maior a tendência dessa guerra virtual transbordar para as ruas. Não
dá para governar um país criando inimigos o tempo todo. (...) Nós vivemos hoje
a iminência, um risco sério de um golpe autoritário, que será mais violento que
a ditadura militar porque esse desejo de eliminação das instituições não fazia
parte da ditadura militar. A ditadura militar queria criar instituições à sua
imagem e semelhança. O bolsonarismo pretende destruir instituições. Nós só
poderemos deter esse processo se compreendermos a lógica perversa que domina esse
governo[8].
Entender
essa lógica perversa, na aceleração da conjuntura em que nos encontramos, requer
indagar se uma nova “operação de esquecimento” sobre o extermínio não apenas do
“inimigo interno” da vez – os partidos de esquerda, as minorias
organizadas, as lideranças do campo, os povos originários -, mas da população em geral estará em andamento em mais um capítulo da nossa história em que o monopólio da força é corrompido por uma burguesia em guerra contra toda nação.
[1] Portal G1. CPI da Covid tem discussão após Renan citar julgamento
de Nuremberg. Edição de 25/05/2021. Disponível aqui.
[2] Cf. BARROS, Antônio Teixeira
de. O debate parlamentar sobre a Comissão Nacional da Verdade no Congresso
Nacional Brasileiro. Revista Brasileira
de Ciências Sociais, 2020, vol. 35, nº 104. Disponível aqui.
[3] Cf. SILVA FILHO, José Carlos
Moreira da. Justiça de transição e usos políticos do Poder Judiciário no Brasil
de 2016: um golpe de estado institucional? Revista
Direito & Práxis, vol. 9, nº 3, set. 2018. Disponível aqui.
[4] Carta Capital. O Brasil é refém do Partido Militar, diz coronel.
Edição de 30/05/2021. Disponível aqui.
[5] As informações biográficas de Jair Bolsonaro foram
consultadas no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Disponível aqui.
[6] Portal G1.
Aversão de militares à imprensa ajudou a absolver Bolsonaro em 1988, diz autor
de livro. Edição de 31/07/2019. Disponível aqui.
[7]
Agência Pública. “Quanto maior o colapso do governo, maior a
virulência da guerra cultural”, diz pesquisador da UERJ. Disponível aqui.
[8] Idem.