domingo, 28 de maio de 2017

Rentismo e autocracias

Rentismo e autocracias*

George Gomes Coutinho **

Imaginemos o seguinte cenário: alta estabilidade na condução da política econômica e sem qualquer questionamento. A oposição a partir de movimentos sociais, partidos ou sindicatos inexiste ou é duramente reprimida. Não há igualmente imprensa livre e plural. É este o panorama dos mais rentáveis para os investidores do mercado financeiro especializado em dívidas públicas. Contudo, o(a) leitor(a) deve ter observado que não estamos falando de democracias.  O levantamento realizado pela insuspeita agência de notícias Bloomberg assinala a alta rentabilidade de regimes autocráticos ou dotados de instituições democráticas esquálidas e instáveis.

A matéria publicada em 20 de abril deste ano intitulada “The bond market prefers dictators to democracies” – “O mercado de títulos da dívida prefere ditadores a democracias” em uma tradução livre –  apresenta dados onde regimes pouco afeitos a práticas democráticas atingem maior rentabilidade dentre as economias emergentes. No topo situa-se a Venezuela com seus “invejáveis” 55% de retorno para os que investem nos papéis de sua dívida, o que coloca em dúvida a postura “socialista” de Nicolás Maduro. Afinal, é um paradoxo que um regime que se utiliza de uma retórica anti-imperialista seja tão dócil com os credores internacionais.

Na síntese dos dados apresentados pela Bloomberg  a rentabilidade dos papéis da dívida entre países autocráticos ou dotados de democracias frágeis é de 15% na média em contraposição aos 8,6% alcançados pelos Estados democráticos. Neste cenário, o decréscimo da qualidade da vida da maioria da população ou mesmo abusos cotidianos no que tangem os direitos humanos aparecem como meras “inconveniências” diante do pragmatismo amoral dos investidores.

No contexto de alta rentabilidade e práticas draconianas podemos tirar lições amargas acerca do Brasil contemporâneo. As chamadas “reformas”, sendo que estas em última instância garantirão o retorno desejado aos investidores, não seriam somente “impopulares”. Situam-se na direção contrária mesmo da vontade popular. Mas, como a compilação da Bloomberg demonstra, o mercado não é necessariamente um entusiasta da democracia.

* Texto publicado no jornal Folha da Manhã em 28 de maio de 2017


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

sábado, 20 de maio de 2017

Lasciate ogni speranza?

Lasciate ogni speranza?*

George Gomes Coutinho **

“Lasciate ogni speranza, voi che entrate” – “Deixai aqui toda a esperança, vós que entrais”. Assim o poeta italiano Dante Alighieri imaginou o aviso inscrito no portão de entrada do inferno na sua “Divina Comédia”, texto clássico e insuperável do século XIV. Guardadas as devidas proporções, não duvido que boa parte do sistema político brasileiro pode ter interpretado no mesmo tom a divulgação das gravações de Joesley Batista, dono da JBS, na última quarta-feira. O fim das esperanças.

Irei me ater a duas perspectivas: uma pautada pela obviedade exposta no noticiário. A segunda é menos visível e muito mais profunda.

Neste momento, no que tange o aspecto mais visível, temos o aprofundamento da crise da democracia representativa. Todos os grandes partidos encontram-se na berlinda em um cenário explosivo de ativismo judicial. Ao mesmo tempo as lideranças tradicionais, dotadas de lastro eleitoral, encontram-se no mínimo sob suspeição. No Congresso Nacional em suas duas casas boa parte dos agentes, senadores e deputados, tem seu próprio rol de acusações formais. Na presidência, Michel Temer, o “não eleito”, foi gravemente ferido pela divulgação das gravações de Batista e sua legitimidade só era sustentada pelo empresariado, latifundiários e banqueiros em um contexto de baixíssima popularidade. Em meio a tudo isso a polarização gera miopia, ódio político que sufoca a sensatez da análise, mantendo o ar ainda mais tóxico.

Mas, o que gerou este verdadeiro fumaceiro denso no espaço público? Onde está o fogo?

O volume de fatos levantados pelo judiciário sobre os agentes políticos revela muitíssimo acerca da construção de parte das grandes fortunas no Brasil. Em um ambiente suprapartidário de irrigação financeira da classe política o empresariado dos setores financeiro, produtivo e agrícola estabelece um jogo de “ganha-ganha”: não importa o vencedor da competição eleitoral, nós iremos vencer. Isto explicou também o apoio financeiro e simbólico das elites ao Governo Temer enquanto este era “útil”. De todo modo, sem enfrentarmos essa estrutura social profundamente desigual a democracia entre nós continuará seguindo um penoso caminho. 

* Publicado no jornal Folha da da Manhã em 20 de maio de 2017


*Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

domingo, 14 de maio de 2017

Moro, Lula e Freud

Moro, Lula e Freud *

George Gomes Coutinho **

Na última quarta-feira ocorreu, enfim, o encontro físico entre o juiz Sérgio Moro e Luis Inácio Lula da Silva.

Podemos observar algumas recorrências no espaço público. A primeira delas e mais óbvia é o fenômeno da “futebolização da política”. Já discutimos em diversos momentos o empobrecimento propositivo causado pela polarização desmesurada e os danos causados para a própria democracia neste cenário. Na última quarta as “torcidas” se organizaram efetivamente com bandeiras, expectativas e um certo ar de “final de campeonato”.

De novidade em Curitiba, pelo menos durante o “evento”, tivemos a notória desidratação dos movimentos assumidamente mais voltados para propostas estritamente moralizantes da sociedade. Atribuo este efeito a três causas: 1) a própria solicitação de Moro para que os grupos alinhados com a postura de parte do Ministério Público Federal não comparecessem. Foram espantosamente obedientes!; 2) Como em outros momentos da História, a pauta moralizante, justamente por sua fragilidade em apontar para um projeto de sociedade, é insuficiente para manter mobilizados os grupos; 3) Os movimentos “moralizantes” demonstraram em diversas ocasiões seus pés de barro ao terem dentre seus membros e simpatizantes inúmeros casos de corrupção e congêneres, algo que abala a coerência da pauta.

Outro fato recorrente e menos óbvio é a infantilização da esfera pública brasileira que busca, de forma incessante, uma figura paterna para se apoiar. A sacralização de Moro ou Lula produz distorções severas e o olhar amoroso e afetivamente carente de seus seguidores impede que se compreendam as contradições intrínsecas de ambos.  Ou seja, a criticidade, elemento fundamental para os dias que correm, é jogada na lata de lixo. Só que sem crítica não há o “bom combate” e tampouco a História avança.

Penso em um conselho psicanalítico para esta conjuntura. Para a tradição de pensamento criada por Sigmund Freud (1856-1939), o indivíduo que não toma para si seus desejos e projetos de vida e segue cegamente “papai” não amadurece. Isso vale também para a política.

* Texto publicado no jornal Folha da Manhã em 13 de maio de 2017


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Pós-Junho de 2013

Pós-Junho de 2013 *

George Gomes Coutinho **

As grandes mobilizações no Brasil do século XXI tem uma data para seu nascimento: junho de 2013. Naquele momento pautas difusas foram apresentadas, o que incluiu o protesto contra o aumento das passagens urbanas nas regiões metropolitanas e o questionamento dos investimentos em mega-eventos (Copa do Mundo e Olimpíadas). Este momento da história recente brasileira é tão sintomático que sem fazermos esta referência não entenderemos plenamente as manifestações posteriores, o que inclui os protestos na Avenida Paulista contra o Governo Dilma Roussef no ano passado ou mesmo a Greve Geral do último 28 de abril.

Junho de 2013 abriu uma Caixa de Pandora e suas reverberações ainda não se esgotaram.

O que há em comum em todas essas manifestações? Assinalo duas questões neste momento. A primeira delas é o uso ostensivo das redes sociais como ferramenta de mobilização. A segunda é a desidratação da política tradicional.

No que diz respeito ao uso das redes sociais enquanto ferramenta de aglutinação da ação coletiva eu observo problemas severos.  O caráter efêmero das formulações e, não raro, a característica individualista, narcísica e egóica das redes produz distorções no que tange a proposição de pautas de alcance societário. Inclusive as redes sociais tem amplificado a polarização e dificultam o diálogo que seria desejável em um ambiente democrático. Há apenas a desqualificação a priori do adversário onde os infelizes termos “coxinha” ou “mortadela” são suficientes para desconsiderar a totalidade dos argumentos do outro.

Neste ínterim, como segundo elemento preocupante, temos o esvaziamento da política tradicional. Não há um projeto de sociedade claro apresentado nem os mecanismos para construirmos uma melhor versão do Brasil são postos. De junho de 2013 para cá vimos o abandono dos partidos como agentes legítimos de representação, isso em uma realidade que se pretende pautada pela democracia representativa! Em prol da “voz das ruas”, uma polifonia ainda fragmentada, se crê que da espontaneidade das massas virá alguma solução. Até o momento, pelo conjunto da obra, não me autorizo a tamanho otimismo.

* Texto publicado no jornal Folha da Manhã em 06 de maio de 2017


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes