Tudo novo de novo?* - Breves reflexões
sobre a ação coletiva**
George
Gomes Coutinho ***
Quando eu elaborava meu primeiro
trabalho acadêmico dotado de algum fôlego, no caso minha primeira monografia na
UFF/Campos no início deste século, tive a afortunada experiência de ser
orientado pelo professor José Luiz Vianna da Cruz, uma das rochas fundamentais
da sociologia e dos estudos sobre desenvolvimento regional entre nós. Muita
água correu no Paraíba do Sul desde então. O professor José Luiz, daquela
relação formal entre orientador e orientando de graduação, se tornou
posteriormente meu amigo, colega de Departamento de Ciências Sociais e
prossegue sendo um interlocutor/conselheiro. Tanto é que hoje em dia ouso
chamá-lo simplesmente de “Zé” em uma demonstração singular de respeito e
carinho que tenho por ele.
Voltando ao início deste século,
minha monografia tinha por tema os movimentos sociais na universidade pública.
O Zé, do alto de sua experiência, me apresentou uma questão logo no início de
nossos trabalhos formulada de maneira simples e objetiva. Afinal, se estávamos
falando de movimentos sociais, o que os move? Se a pergunta era sintética e
elegante, a resposta (ou as respostas) me levou a trafegar pelas águas turvas
das noites em claro. A pergunta do Zé tocava realmente no que era fundamental.
Quais seriam os “móveis” da ação coletiva? Arrisco dizer que de lá pra cá parte
de meus trabalhos foram tentativas de responder a essa pergunta de forma direta
ou indireta e certamente parcela do conhecimento sistemático sobre a política
enquanto fenômeno se estrutura nos arredores dos dilemas da ação coletiva.
Na conjuntura atabalhoada em que
vivemos Aluysio Abreu Barbosa em uma conversa telefônica amistosa decidiu
reencarnar a pergunta do Zé trazendo para o nosso contexto. Senti na pele que
de fato as grandes questões não desaparecem. Elas se atualizam de acordo com as
especificidades de cada momento histórico. Aluysio inclusive não me colocou
“pouca coisa”. Ele nota, de forma correta, que os grandes movimentos coletivos
brasileiros ocorridos desde o arrefecimento da ditadura civil-militar até 2015,
perpassando o Fora Collor de 1992 e o junho de 2013 nas regiões metropolitanas
do país, não são tudo farinha do mesmo saco. De fato não são. Todavia, vamos
tentar ver o mínimo estrutural que os aproxima e o muito que diferencia estes
grandes movimentos que tem a rua por cenário. Causando estranheza ao leitor,
justamente o que os assemelha e os distancia envolve responder a pergunta do
Zé: quais os móveis?
Teoricamente, de Karl Marx
(1818-1883) a Mancur Olson (1932-1988), o que move grupos e classes que
engendram ação coletiva, o “grande móvel”, é o interesse. É justamente o que
aglutina e torna possível a ação coletiva e associativa dos sindicatos, movimentos
sociais tradicionais, grupos de pressão, movimentos de massa, etc.. Seja a
Associação Nacional de Rifles da América, o Greenpeace, O Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra, a Federação das Indústrias do Estado de São
Paulo ou o pessoal da Tradição, Família e Propriedade. Coloquei exemplos tão
discrepantes não tanto para causar desconforto ao leitor. Apenas quis
demonstrar que estes grupos, a despeito do seu posicionamento no espectro
político, se são de esquerda ou direita, progressistas ou conservadores, todos
se agrupam em prol de algum interesse comum e compartilhado. A associação
“reduz custos” que seriam simplesmente impossíveis para um indivíduo isolado e
a ação coletiva visa permitir que se alcance um objetivo ou um conjunto de
objetivos.
Antes de prosseguir, venho
declarar minha discordância sobre a morte da política ou o que seria um
processo de despolitização no Brasil contemporâneo. Eu concordo que exista um
arrefecimento da política tradicional sem dúvida, algo que está na raiz da crise
da democracia representativa no mundo. Não por acaso partidos, seja aqui ou na
Europa, apresentam um déficit de legitimidade considerável entre seus
eleitores. Porém, a política envolve tomar decisões dotadas de caráter
vinculante como diria o alemão Niklas Luhmann (1927-1998). Portanto, se a morte
é inevitável para tudo o que é vivo, a política é inescapável para todos(as)
que vivem em sociedade. Decisões que tem impacto coletivo, seja sobre os
parâmetros curriculares do Ensino Médio ou regras de tributação, são da
natureza da política. Porém, há a mudança de agendas, novos temas emergentes e
das formas de se fazer política, algo que retomarei adiante.
Prosseguindo, se os interesses demarcam
a ação coletiva para gregos, troianos e baianos, não podemos ignorar a
modulação fornecida pelos valores, visões-de-mundo, ideologias, elementos
simbólicos, etc.. Neste ponto TFP e MST tem obviamente posicionamentos inconciliáveis
sobre a questão agrária por exemplo. As agendas dos movimentos, a maneira pela
qual os interesses se particularizam e dão robustez para a operacionalização da
ação, são obviamente distintos. Contudo, temos momentos em que estes movimentos,
de natureza mais particularizada, transcendem seu público de adeptos e
simpatizantes atingindo a sociedade como um todo. A pauta originária de um grupo
torna-se uma pauta consensual entre diversos grupos e classes. Olhemos para o
movimento “Diretas Já” na longínqua década de 1980.
Nas “Diretas” o contexto explica.
Se a ditadura civil-militar jamais foi um consenso total na sociedade
brasileira, o que redundou nos movimentos de resistência insurrecionais (luta
armada) e civilistas (atuação nas instituições), é impossível não reconhecer
que um regime que durou 21 anos não tenha gozado de legitimidade entre amplos setores
da população. Todavia a ressaca produzida pelo “Milagre”, o cenário de
hiperinflação galopante e pauperização, tornou o descontentamento
incontrolável. Inclusive a atuação da grande mídia oligopolista, até então
entusiasta de primeira hora ao golpe de 1964, deu sua contribuição e reverberou
o processo de perda de legitimidade dos militares no poder. Neste ponto da história o que era um movimento
perene em prol do retorno dos ritos democráticos de uma contra-elite
minoritária (partidos de esquerda, intelectuais e artistas), se tornou um
movimento de massa que transcendeu classes e grupos. Só o amplo consenso
formado explica em um mesmo palanque gente como Ulisses Guimarães, Fernando
Henrique Cardoso e Luis Inácio Lula da Silva.
O movimento da “Diretas” foi um
movimento de massa cujo interesse era o de reinstituir a normalidade
democrática. Considero equivocado considerar a “Diretas” um movimento de
esquerda, embora que atores tradicionais deste espectro político, o que inclui
sindicatos, partidos e movimentos sociais, tenham dado suporte inegável ao que
vimos no Brasil na década de 1980. Os atores tradicionais auxiliaram na
fisionomia do movimento de massas inclusive pelo acúmulo de expertise em se
manterem organizados, a despeito de terem atuado durante boa parte do século XX
na ilegalidade ou semi-legalidade. Igualmente forneceram um discurso, muitas
vezes contundente, expresso em palavras de ordem onde a crítica da situação
econômica era absolutamente oportuna para o momento.
Também o “Fora Collor” na década
de 1990 mantém alguns dos aspectos que citei acima:1) transcende a crítica de
uma contra-elite minoritária; 2) encontra apoio e reverberação da mídia
oligopolista; 3) é dotado de uma fisionomia de esquerda pelo protagonismo de
certos atores tradicionais, embora que o consenso naquele momento quanto ao impeachment
tenha abarcado diversos grupos sociais para além do espectro político
mencionado.
A questão é que o mundo mudou
muitíssimo de lá para cá. A chamada “revolução informacional”, que se
potencializa a partir do final da década de 1990, já inclui novas formas de
comunicação e interação na sociedade. Ao mesmo tempo tivemos os anos do lulismo
neste século XXI, onde os atores tradicionais da esquerda ingressaram nas
instituições e tanto passaram a ser “vidraça” quanto tiveram sua atuação
contestatória consideravelmente diminuída. Afinal, movimentos e partidos
tornaram-se governo. Nesse ínterim novas pautas ganharam ainda mais corpo e
possibilitaram o protagonismo de atores que não se sentiam plenamente
contemplados pelos movimentos tradicionais de esquerda. Esse diagnóstico não é
meu, boa parte da literatura sobre movimentos sociais aponta para esta questão.
Aqui, dentre as novidades, falo do movimento ambiental, feminista, movimento
negro, grupos LGBTT, etc.. A natureza, este agente difuso, ganha porta-vozes
humanos. Jessé Souza (1960), sociólogo brasileiro, ironicamente chama este
grupo de “classe média de Oslo”, brasileiros que adotam uma agenda ambiental e
de sustentabilidade digna dos nórdicos. E
os afetos e a expressividade adquirem uma enorme relevância onde o clássico
problema das diferenças materiais entre as classes sociais passa a ser
secundário. Não por acaso o filósofo francês Luc Ferry (1951) aposta que a
intimidade, as relações afetivas, é um tema amplamente mobilizador neste século
XXI.
Um outro ponto, ao qual não canso
de lembrar, é o da fadiga das democracias representativas liberais no mundo
todo na nossa conjuntura. Devo este diagnóstico ao sociólogo polonês Zygmunt
Bauman (1925-2017). A alta financeirização das economias nacionais, processo
que se inicia na década de 1970, torna os governos reféns diretos da pauta
fornecida pelas grandes instituições financeiras. Em suma: o que prometem nas
campanhas eleitorais não é efetivamente realizado inclusive por
constrangimentos e acordos que moldam os orçamentos governamentais. Parte da
crise de legitimidade da social democracia européia é explicada por este fator.
Na esteira da fragilização dos partidos social democratas, os partidos
tradicionais moderados sofrem por inércia. Portanto, a crise da democracia
representativa liberal é seguramente também uma crise dos partidos e lideranças
tradicionais, um problema que não é só brasileiro.
O junho de 2013 no Brasil se
insere neste macro contexto absolutamente complexo. Não foram os atores
tradicionais de esquerda que organizaram os movimentos. Pelo contrário. Em
várias cidades brasileiras estes atores foram até mesmo hostilizados. Naquele
momento muitos analistas ficaram atônitos. O que houve?
Junho de 2013 foi um dos maiores
testes da capacidade de aglutinação coletiva das novas formas de comunicação e
interação. Como vimos, é inegável o barulho causado. Naquele momento o slogan
“Vem Pra Rua” ou o Movimento Passe Livre sintetizam uma pauta reivindicatória
que envolveu desde o seu estopim, no caso a revogação do aumento do preço das
passagens urbanas, até a crítica ao uso de dinheiro público para as grandes
obras que seriam necessárias para a realização dos mega-eventos vindouros.
Tanto a Copa do Mundo quanto as Olimpíadas do Rio estavam na lista de prioridades
do Estado brasileiro.
Notem que por mais que tenham se
apresentado como “movimentos pulverizados”, haviam pautas reivindicatórias que
apontavam tanto para o direito de mobilidade urbana quanto implicavam, mesmo
que de forma um tanto inábil, na tentativa de influir no processo de tomada de
decisão sobre os orçamentos governamentais. Em contraposição ao investimento
nos mega-eventos os manifestantes clamavam, mesmo que sem muita precisão, por
mais investimentos em saúde e educação. Neste ínterim, até pelo caráter inovador,
os grupos políticos tradicionais não conseguiram interlocução ou mesmo captar as
demandas apresentadas, dotá-las de objetividade política.
Ali abriu-se uma caixa de
Pandora. Os métodos de mobilização, até então jamais vistos no cenário
tupiniquim, foram depois largamente utilizados. Inclusive há semelhanças de
métodos com o que ocorreu aqui e na Primavera Árabe: redes sociais, novas
formas dinâmicas de interação, etc..
Cabe notar que os movimentos da
chamada “nova direita” no Brasil se utilizaram depois fartamente tanto da
estética de mobilização dos grupos de junho de 2013 quanto até mesmo de
nomenclaturas e slogans. Afinal, o “Movimento Passe Livre”, o MPL, de alguma
inspirou o “Movimento Brasil Livre”, não por acaso MBL. O slogan “Vem Pra Rua”
tornou-se um movimento homônimo.
Nesse ínterim uma pletora de
questões aflorou. Trata-se de uma constelação de fatores. Aqui a frustração
econômica causada pelo término da era das commodities implicou uma enorme
dificuldade de manutenção das políticas econômicas e sociais do lulismo
continuadas por Dilma Rousseff. Este é um ponto crucial para entendermos a
insatisfação que gerou os movimentos de massa pós-2013. Para além disso os
movimentos da “nova direita” passam a vocalizar demandas e perspectivas de
grupos da sociedade que até então não encontravam representantes dotados da
capacidade de síntese necessária e com enorme habilidade em utilizar as redes
sociais. Não quer dizer que não existissem as visões-de-mundo mais
conservadoras. Apenas não haviam encontrado grupos que vocalizassem esses
sentimentos difusos.
Nesse ínterim, já desde ação
penal 470, o “mensalão”, a grande mídia monopolista engrossou de forma
sistemática a narrativa que associou o Partido dos Trabalhadores de forma
inequívoca, por vezes quase exclusiva, ao fenômeno da corrupção. Por outro
lado, no âmbito da política tradicional, Dilma lidou diretamente com um governo
dotado de capacidade decisória limitada e um Congresso Nacional rebelde
liderado por Eduardo Cunha.
O que tornou os movimentos de
massa diferenciados não foi tanto o uso das táticas de comunicação novas já
experimentadas em 2013. O que há de novo é o conteúdo apresentado e pela
primeira vez desde a redemocratização a ausência de atores ou pautas usualmente
apresentadas pela esquerda tradicional. Até 2013 encontrávamos pautas de
reivindicação inclusivas, de ampliação direitos. De 2013 em diante não houve
sequer a fisionomia de esquerda. Neste ponto do diagnóstico concordo plenamente
com Aluysio que me chamou a atenção para este fato.
Contudo é difícil dizer, conforme
afirmei anteriormente, que a “política morreu”. Outros grupos, dotados de alta
capacidade de negociação jamais arrefeceram. As mudanças que vivenciamos de
2016 para cá na legislação social são obra de grupos que se não redundam em
grandes movimentos de massa, até pela natureza silenciosa com que atuam, são
tão ou mais eficientes no diálogo com o sistema político tradicional. São
grupos de pressão dotados de alto poder de fogo oriundos das 6 mil famílias que
concentram boa parte da riqueza nacional. Promovem uma ação coletiva menos
visível dado o convencimento promovido pelo dinheiro. Neste sentido na atual
conjuntura é desnecessário inflar grandes movimentos da nova direita nas ruas e
lidamos com uma contra-elite, pelo flanco esquerdo, profundamente fragilizada e
carente de legitimidade.
O que ficará disso tudo? Como já
disse Wanderley Guilherme dos Santos (1935), um dos decanos da ciência política
brasileira, “o futuro não é materialmente verificável”. O que temos certeza é
que a revolução informacional das últimas décadas, se modificou o cotidiano das
nossas sociedades, não poderia ter efeito muito diferente nas mobilizações coletivas.
Estas, tal como outrora, permanecem guiadas por interesses sendo este o móvel
aglutinador. Todo o restante sobre o amanhã ainda “não decantou”. Aguardemos. Porém, os “móveis” da questão do Zé
prosseguem.
* Uma confissão tardia, sincera e necessária neste 03 de dezembro de 2017. Tomei de empréstimo o título do "cantautor" brasileiro Paulinho Moska. Moska lançou em 2003 o disco e a canção "Tudo novo de novo" que inspirou diretamente a forma como batizei esse texto. Se todos somos um pouco ladrões, e creio que somos, espero que a minha condição de réu confesso pelo menos amenize a pena vindoura.
** Texto publicado originalmente em 24 de novembro de 2017 no blog "Opiniões" do jornalista Aluysio Abreu Barbosa. O blog "Opiniões" é parte do grupo Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ. Disponível em: http://opinioes.folha1.com.br/2017/11/24/origem-da-serie-ruas-do-brasil-resumida-por-george-gomes-coutinho/
*** Professor de Ciência Política no
Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes