Jefferson Ferreira do Nascimento[i]
A imaginária comunidade de milhões
parece mais real na forma de um time de onze pessoas com nome. O indivíduo,
mesmo aquele que apenas torce, torna-se o próprio símbolo de sua nação.[ii]
Domingo começou a 22º Copa do Mundo no Catar, criticada, ela é considerada uma Copa para milionários: a hospedagem mais barata é uma cabine nas Fans Villages (acampamentos) por US$ 207,36 a diária por pessoa. A organização catariana, ao que consta, foi exemplar no cumprimento do cronograma e na qualidade dos estádios. No entanto, são diversas as denúncias de exploração do trabalho de imigrantes, a utilização de trabalho semiescravo, análogo à escravidão e milhares de mortes dentre esses trabalhadores. A Anistia Internacional e a Human Rights Watch denunciaram as violações de direitos humanos.
Essa Copa é alvo da imprensa ocidental, sobretudo por ser em um “forasteiro” árabe que avança sobre o futebol europeu. Isso não apaga ou diminui as violações e muito menos ameniza a quantidade absurda de trabalhadores mortes no período de preparação da sede. Contudo, soa irônico lembrar do quase silêncio dessa imprensa ou da indignação intermitente e quase seletiva sobre uma sede escolhida em dezembro de 2010 e, em geral, do tom bem mais ameno nas criticas sem propostas de boicotes aos inúmeros atos de racismo e homofobia ignorados ou punidos leve e/ou protocolarmente no futebol em quase todo mundo, inclusive nas principais competições europeias. Há doze anos atrás já era notória a posição do país em relação aos direitos humanos (em relação às mulheres, LGBTQIA+ e da maioria da população composta por imigrantes sem cidadania catariana). Na ocasião também era conhecida a inexistência de estádios aptos a receber jogos de Copa do Mundo e o regime monárquico absolutista lá vigente. Portanto, não era necessário exercício de futurologia para alertar como o país se transformaria para receber o mundial. Poucos anos depois, o FIFAGate (2015) tornava mais uma vez pública a forma pelas quais as sedes são escolhidas pela FIFA, aumentando motivos para uma campanha real contra essa competição. A ironia não para por aí, se considerarmos o recorrente tratamento de países ocidentais - notadamente europeus - aos refugiados de outros continentes, sobretudo africanos e asiáticos. Isso sem contar o fato desse cenário não ser completamente inédito: a Copa de 1978 foi realizada em uma Argentina liderada por uma violenta ditadura civil-militar, com direito a estádio ao lado de centro de torturas. Mais de quatro décadas depois da Copa na Argentina, a líder histórica das Mães da Praça de Maio, Hebe Bonafini, faleceu no dia da abertura da edição sediada no Catar.
Sobre o título "A Copa dos Milionários", não custa perguntar: há quanto tempo as Copas são inacessíveis à maioria dos trabalhadores? Inclusive aos operários dos países-sede, que acessam os jogos apenas pela televisão – e olhe lá! Ou seja:
[...] o trabalho produz coisas boas
para os ricos, mas produz a escassez para o trabalhador [...] Substitui o
trabalho por máquinas, mas encaminha uma parte dos trabalhadores para um trabalho
cruel e transforma os outros em máquinas. Produz inteligência, mas também
produz estupidez e a cretinice para os trabalhadores[iii].
Ora, mas é indispensável lembrar que os trabalhadores não construíram só os estádios ou cuidaram dos
bastidores. É um erro reduzir o futebol a um esporte de elite. A prática nos
clubes começou aristocrática, mas rapidamente se popularizou e se tornou uma
paixão mundial. Segundo Hobsbawm: “O futebol como esporte proletário de massa –
quase uma religião leiga – foi produto da década de 1880”[iv].
Vejamos o contexto da frase. No Norte e no Centro da Inglaterra predominavam
clubes de industriais, da pequena burguesia e de operários, que remuneravam
os melhores atletas e treinadores. A prática foi contestada após as conquistas da
FA Cup pelo operário Blackburn Olympic[v]
(1883) e, seu rival, Blackburn Rovers (1884). Os clubes aristocráticos do Sul tentaram
proibir a remuneração e os clubes do Norte ameaçaram criar uma liga
independente, culminando na profissionalização a partir de 1885. Logo no início
do século XX os clubes ingleses começaram a virar companhias empresariais com
acionistas. Essa conversão precoce é consequência da expansão dos clubes não
aristocráticos e da popularização da prática e do gosto pelo espetáculo. Ou
seja, as soluções apresentadas hoje como inovadoras – clube-empresa e
Sociedades Anônimas do Futebol – datam mais de um século em consequência da
apropriação do esporte pelo proletariado.
Poucas décadas depois dos aristocratas ingleses, os clubes de elite
cariocas também recuaram. Em 1915, o Vasco da Gama entrou no futebol quando,
ainda dedicado às regatas, já havia eleito um presidente negro havia dez anos.
Em 1923, o cruzmaltino venceu o Campeonato Carioca e seus rivais exigiram a
exclusão de doze atletas negros “inadequados ao esporte”, alegadamente por
serem analfabetos. Na “Resposta Histórica”, o Vasco se recusou a excluí-los,
preferindo se retirar da competição. Em ascensão perante às classes populares,
foi readmitido em 1925. Na década seguinte, o Vasco foi um dos principais
defensores da profissionalização. Ou seja, o desenvolvimento e a
profissionalização do futebol aqui também contaram com a popularização da
prática e do torcer.
Hoje o futebol é uma das maiores indústrias capitalistas. Junto à
lógica da livre circulação de mercadorias e capitais da União Europeia (UE), a
Lei Bosman intensificou a mercantilização do futebol. Por ela, é jogador
“local” na UE qualquer atleta com cidadania de qualquer país do bloco e todo
atleta fica livre ao fim do contrato, estimulando um mercado de naturalização e
obtenção de passaportes europeus para atletas principalmente da América e da
África (dupla cidadania). Assim, a circulação de jogadores se intensificou com
a possibilidade de clubes ricos montarem verdadeiras seleções mundiais.
Do ponto de vista dos clubes,
provocaram um considerável enfraquecimento da posição de todos aqueles que não
estão no circuito das superligas internacionais e dos supertorneios e em
especial nos clubes dos países exportadores de jogadores, notadamente nas
Américas e na África. A crise dos outrora altivos clubes de futebol do Brasil e
da Argentina o comprova.[vi]
A mercantilização não se limita aos atletas. Desde a Copa do Mundo de
1978 na Argentina, ocorre a desnacionalização das competições com vendas de
cotas de patrocínios e direitos televisivos centralizadas na FIFA. (Antes os
países-sede negociavam). No final dos anos 1990 a FIFA avançou: realiza toda a
produção e transmissão com empresas parceiras. Agora as emissoras do mundo todo,
ao comprar direitos de transmissão, apenas reproduzem as imagens da FIFA. Esse
processo, típico dos esportes estadunidenses, foi replicado nas transmissões e
patrocínios de competições de clube.
O modelo de consumo total, também baseado nos esportes estadunidenses,
se tornou o meio preferencial de relacionamento com os torcedores. Além de
camisas, os clubes vendem planos sócio torcedor, experiências (batizados, visita
a estádios e centro de treinamentos, pacote de viagens para acompanhar o time,
camarotes, etc.) e diversos produtos licenciados. No Brasil, isso começou nos
anos 1990. Não é coincidência que a partir dali ocorra uma maciça campanha de
estigmatização das torcidas organizadas com um enquadramento simplista sobre o
problema da violência, sem ações efetivas de prevenção. Essa estratégia encobre
a responsabilidade do Estado e das entidades promotoras de eventos esportivos.
O estigma [...] desumaniza e, ao
fazer isto, autoriza o controle social sobre aquele que é desumanizado [...] e,
consequentemente, reduz sua capacidade de mobilizar apoio e de interferir nos
processos decisórios acerca das políticas de contenção da violência no futebol,
em particular, e nos arranjos institucionais do futebol profissional, de uma
maneira geral.[vii]
Ademais, as torcidas organizadas resistem ao processo de mercantilização do futebol. Desde a luta contra os altos preços dos ingressos a protestos políticos. (Exemplo: contra o governo Bolsonaro, em defesa da vacina e de políticas de combate à fome entre 2020 e 2021). Nesse mês de novembro, algumas torcidas desbloquearam estradas ocupadas pela extrema-direita negando os resultados eleitorais.
Antes da construção de estádios, da confecção de uniformes e bolas, antes de ser reduzido aos braços, suor e sangue que atuam nos bastidores, foi o proletariado quem tirou o futebol dos restritos círculos aristocráticos, quem deu ginga, quem fez do jogo arte, luta e paixão. Entretanto, conforme avança a mercantilização, o processo de dupla alienação se intensifica no trabalho e no consumo. A participação popular nas arquibancadas foi limitada, a forma de torcer nas tais arenas foi modulada, a forma de jogar foi padronizada em nome da tática (“transforma os outros em máquinas”) e o comportamento dos atletas controlado pelas restrições impostas pela FIFA às diversas manifestações, da comemoração do gol às entrevistas (“produz estupidez e a cretinice para os trabalhadores”). Assim, até os craques do espetáculo, majoritariamente filhos da classe trabalhadora, são desumanizados como máquinas incansáveis, peças nos esquemas táticos e celebridades despolitizadas.
“Se
a classe operária tudo produz, a ela tudo pertence”iii, incluindo
o futebol que é um mercado e um produto. Porém, o pertencimento não é dado a
priori, afinal “a vida que [o operário] deu ao objeto se torna uma
força hostil e antagônica”iii. É pela luta de classes que se
combate essa dupla alienação. No futebol, urge lutar para re-humanizar os
atletas e retomar as arquibancadas para a classe trabalhadora. Só assim será
“tudo nosso”!
[i]
Professor no IFSP, doutor em Ciência Política, membro do Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-Americanos (NEPPLA).
[ii]
HOBSBAWM. Nações e Nacionalismo desde 1870
[iii]
MARX, Karl. Manuscritos econômicos-filosóficos.
[iv]
HOBSBAWM, Eric. Mundos do Trabalho.
[v]
O Blackburn Olympic durou 11 anos (1878-1889). Apesar do título de 1883, ficou
difícil concorrer na cidade com o Blackburn Rovers por público e patrocínio com
o avanço do profissionalismo. A pá de cal veio quando o Campeonato Inglês (The
Football League, 1888) começou permitindo apenas um clube por cidade e o
escolhido foi o Rovers. No ano seguinte, endividado, o Olympic dispensou todos
os jogadores profissionais.
[vi]
HOBSBAWM, Eric. Globalização, Democracia e Terrorismo
[vii] LOPES, Felipe. Dimensões ideológicas
do debate público acerca da violência no futebol brasileiro. Rev. bras. educ.
fís. esporte.