terça-feira, 29 de março de 2022

MANA CHICA GOYTACÁ - Por mais Cabruncas e menos lamparões - Carolina de Cássia

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MANA CHICA GOYTACÁ - Por mais Cabruncas e menos lamparões ** 

Carolina de Cássia*** 

A estreia do curta “Faroeste Cabrunco” e do doc. que revela o seu processo de construção  foi sensacional. 

Na verdade não sei se existiu uma produção ficcional no município – caso a pesquisar. Dia desses, comentei com um ator dos velhos tempos que eu adoraria fazer um filme de ficção, baseado no livro Mangue, de Osório Peixoto. Para minha surpresa ele disse que esse filme foi realizado e nunca editado, que ele chegou a fazer parte como ator. Ahn? Mistérios ou falta de apoio para que o filme fosse finalizado?

Voltando ao Faroeste! O coronelismo que marca os campos Goytacá e todo território mundial, que fomenta a colonização até os dias de hoje, é um fato. Trazer essa realidade para a ficção é uma sabedoria invejável (a inveja fica por conta de meu lugar de documentarista). 

Considero o filme como uma sátira que nos convoca a refletir quem são os coronéis contemporâneos.  Além daqueles que continuam a mamar nos fundecanas do Estado existe os que, historicamente, cortam nossas árvores, retiram gramados para colocar um piso de granito encerado, onde a guerra pela sobrevivência se dá, para que ali não seja nosso túmulo como espetáculo.

Os personagens que pareceriam absurdos fora do filme, o fazem acontecer, num movimento de corpo invisível que provoca a imaginação no jogo realidade/ficção, que tudo vê no olhar profundo do Cabrunco.

Victor Van Ralse (diretor e roteirista) dá um show de criatividade no roteiro; aguça nossa memória de infância nas sessões da tarde, relembra o jongo (pisei na pedra pedra balanceou levanta meu povo cativeiro se acabou) e revela a realidade coronelista, colonizadora, expropriadora, mas sem esquecer a resistência Goytacá e negra que nos marca. Na guerra entre o bem e o mal, mocinho e bandido a luta é a vencedora, parece que não acaba nunca.

É um filme de resistência e utopia quando encerra com o presente que a mulher do povo - atriz Michelle Pereira – recebe do Cabrunco.  Hum, mas vai que, as luzes acendem e o lamparão coronelzinho tá ali, tá ali no palco do teatro e da vida, nos provocando a “pocar tudo” e persistir. 

Persistência é o que não falta para a maioria dos artistas. Fazer um filme dessa grandeza com um orçamento que parece mais piada é sofrível. Um conjunto maravilhoso de artistas - uns que atuam desde os anos 60, outros recém-formados no curso de teatro do IFF - faz o filme acontecer como um ativismo pela arte. 



Mas até quando a sobrevivência dos artistas terá que passar por isso, desde atuar sem cachê ou cachê irrisório/ diárias - como o nome diz, dia tem não e o outro também - até assistir seu trabalho ser utilizado no palco como propaganda eleitoreira de coronéis fantasiados de produtores /gestores culturais? Até quando?

Não sou bairrista e a guerra anda reafirmando isso, mas na terrinha do chuvisco e da goiabada existiu e existe muito artista com conhecimento grandioso, mas raramente reconhecido. Raros são os que vivem da arte sem recorrer ao emprego público. O que deveria ser diferente, óbvio. A autonomia artística e o financiamento do trabalho artístico pelo Estado é o mínimo que podemos reivindicar.

Torcendo pelo sucesso/premiação do filme, de forma que possam receber mais do que um prato de torresmo com chope, como diz um amigo meu do ramo, que nem imagina como e quando irá se aposentar.

Ah, o filme conta com fotografia maravilhosa, interpretação excelente das atrizes/atores. Fico imaginando a trabalheira da produção no processo. Muito feliz com o trabalho de vocês. 

A Mana Chica deseja que entre na agenda das escolas e do teatro apresentações diárias do filme para a meninada. Aí sim, Vamos “pocar tudo” só que, contra os coronéis!

Que venham muitos!

                                                                            Outono de 2022.

* As fotos do set de filmagem que ilustram esta crítica nos foram cedidas gentilmente por Victor Van Ralse, diretor e criador de Faroeste Cabrunco.

** Texto publicado no perfil do Facebook da autora ((https://www.facebook.com/ccarolina.cassia.92) oportunamente em 28 de março de 2022, aniversário de Campos dos Goytacazes. Reproduzimos aqui com a autorização de Carolina.

*** Assistente Social e Documentarista. Realizou 14 filmes, sendo 12 documentários que revelam a realidade do Norte Fluminense e alguns estados do Nordeste. Seus filmes trazem um olhar anticolonialista valorizando a sabedoria popular, a criticidade e a resistência cotidiana. E-mail para contato: carolinadecassia07@yahoo.com.br. Seus filmes podem ser degustados em seu canal no YouTube: https://www.youtube.com/c/CarolinadeC%C3%A1ssia.

                                                                       

domingo, 27 de março de 2022

PARA ALÉM DA ELEIÇÃO - AS BRUMAS DO FUTURO - Christian Lynch



PARA ALÉM DA ELEIÇÃO - AS BRUMAS DO FUTURO **


Christian E. C. Lynch ***

Se eu fosse capaz de ver algo do alto da montanha, veria que os próximos anos seriam marcados pela conclusão do processo de rearticulação do sistema começada em 2013-2016.

O sistema se rearranjaria  polarizado. À esquerda/centro-esquerda, as forças históricas oriundas da nova república (no momento, em torno de Lula), comprometidas com o progresso. À direita, as novas forças conservadoras comprometidas com o atraso (em torno dos Bolsonaros).

O sistema partidário está se recompondo. A federação somada à cláusula de barreira permite uma recomposição incremental rumo a um sistema marcado pela menor  fragmentação e maior consistência ideológica.

O quadro ideológico geral é estruturalmente mais conservador do que o passado recente. A crise da globalização e a emergência da direita radical jogaram o centro pra direita. Não é à toa que Lula está se movendo pro centro e empurrando junto o PT. O mesmo movimento fez o PSB.

À direita, vemos o "centrão" se converter abertamente ao conservadorismo ideológico. Outrora, no mundo da nova república, o "realismo político" conservador dessa turma tinha de se fazer de pragmático para ocupar o poder em governos progressistas. Isso acabou.

Com a mudança do clima ideológico na direção conservadora, o Centrão pode se assumir conservador. Contribui para isso, claro, o poder acumulado no domínio do congresso das emendas orçamentárias. Mas também com Bolsonaro o centrão, como antes os militares, encontrou seu homem.

Por quê? O sonho do Centrão era encontrar um Sarney ou um Temer com votos. Bolsonaro tem votos, mas resistia em vestir o figurino da normalidade. Daí o esforço do Centrão em enquadra-lo, afinal bem sucedido diante do fiasco do golpismo de 7 de setembro e a ameaça de impeachment.

Ha outras razões para o centrão virar uma coalizão bolsonarista. Uma delas é o ânimo  antirrepublicano e antijudiciarista. Bolsonaro é um aliado poderoso no desmonte das instituições de combate à corrupção política. Gente como Aras na PGR e Kassio, no STF são o seu sonho dourado.

Por fim, o Centrão apoia Bolsonaro e o "civiliza" porque o presidente detesta governar, para alem de blindar sua família e aliados dos braços da Justiça. O programa de Bolsonaro se resume em parar o relógio da história, razão pela qual pode delegar a administração ao Centrão.

Entregar o grosso do governo e da administração aos cupins centrônicos garante por inércia a política conservadora estilo Sarney. Bolsonaro se contenta em ficar de garoto propaganda do populismo reacionário, andando de jetski e apresentando o "Show do Gado" quinta à noite.

Quanto ao novo regime de governabilidade, o objetivo do Centrão é consolidar o status quo, substituir o presidencialismo de coalizão por um semipresidencialismo que garanta a ascendência legislativa contra o judiciarismo do STF. O STF e o PGR sendo neutralizados pelas nomeações de figuras anódinas ou conservadoras, pervertendo os princípios originais da Constituição.

Lula no poder vai tentar recuperar o presidencialismo de coalizão para poder organizar uma agenda progressista. Já o centrão e Bolsonaro vão apoiar o semipresidencialismo como modelo de governança da inércia, destinado a gerir a rotina e congelar o presente.

É como as brumas do futuro revelariam o futuro posterior à eleição, se eu tivesse uma bola de cristal. 

* Ilustração de Koji Yamamura. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-21163117, acesso em 27 de março de 2022.

** Texto originalmente publicado no perfil do Facebook do autor em 25 de março de 2022 (https://www.facebook.com/christian.lynch.5). Reproduzimos aqui com a autorização do próprio Christian.

*** Cientista político e professor da área no IESP/UERJ. É autor de “Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia” publicado pela editora da UFMG, “Wanderley Guilherme dos Santos: a imaginação política brasileira - cinco ensaios de história intelectual”  publicado pela Revan, dentre outras obras, coletâneas e inúmeros artigos nos campos do Pensamento Político Brasileiro, Teoria Política e História das Ideias Políticas.


sábado, 26 de março de 2022

A paz e seus descontentes

 

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A paz e seus descontentes **

George Gomes Coutinho


Não se deve esperar de um humanista qualquer apoio à guerra enquanto resposta para crises ou disputas. Já disse Georg Lukács (1885-1971) em contexto bélico: “quanto melhor, pior”. Ou seja, batalhas vitoriosas, de qualquer dos lados, não se dão sem morticínio. Falo evidentemente do contexto ucraniano em andamento. Mas, o mesmo se aplica a todos os outros conflitos armados em paralelo no mundo, de guerras civis a violações de um Estado-Nacional por outro. Chocante mesmo é que estes tantos conflitos simultâneos fora da Europa prossigam sendo quase que ignorados e não contem com a mesma comoção. Não é mera conjectura afirmar neste contexto que, para parcela relevante da população mundial, determinadas vidas valem mais do que outras. Lastimável e moralmente repugnante.

Retomando, penso que a primeira providência, diante de conflito armado, é lutar desesperadamente para restaurar a solução pela palavra e salvar vidas civis e militares. Portanto, defendo que nossos melhores esforços devem estar no apoio irrestrito ao encaminhamento de um desfecho negociado pela diplomacia profissional ou qualquer outra. Para agora, para já! Não creio que seja defensável moralmente ou politicamente qualquer outro encaminhamento. A questão é que o que julgo ser a única posição humanista possível parece não seduzir parte da opinião pública em Europa, EUA e até mesmo em nosso quintal.

Daqui por diante irei problematizar uma das respostas cognitivas ao conflito, um ponto de partida do entendimento humano facilmente sequestrado por interesses ideológicos ou econômicos. Falo da simplificação quase pré-reflexiva produtora de maniqueísmo. O problema é que terem parado preguiçosamente no ponto de partida cognitivo torna a defesa da paz na opinião pública uma causa difícil. Mas, antes eu gostaria de convidar o(a) leitor(a) a um exercício de imaginação.

Imagine uma praça onde há muitos e diferentes jogos sendo jogados ao mesmo tempo. Há a mesinha do pessoal do jogo de damas. Há outra com os concentrados num dominó. Mais adiante há o pessoal do carteado. Seria estúpido avaliar a performance dos jogadores de damas utilizando as regras de buraco. Ou incorporar os traquejos e jogadas ensaiadas do enxadrista ao participar de uma partida de gamão.

Nesta nossa praça lúdica imaginada vamos acrescentar um elemento fantástico: imagine que os resultados das mesas, dos jogos independentes, tenham potencial de produzir mudanças de impacto na praça, nos jogadores e na dinâmica dos próprios jogos. Mudanças não esperadas inclusive. Sem falar das consequências não desejadas.

De alguma maneira, e guardadas as devidas proporções, o mesmo procede no contexto da guerra no leste da Europa. Há níveis regionais, nacionais e transnacionais de interação entre os agentes. Há entes que são grupelhos atuantes e barulhentos. Também encontramos atores de grande porte, a indústria armamentista e instituições multilaterais robustas. Temos elementos geopolíticos, econômicos e ideológicos que incrementam em complexidade as interações e os processos de tomada de decisão.

É um secos e molhados sangrento do sistema internacional. Tem de tudo. Só não há factualmente anjos e demônios nitidamente identificáveis por quaisquer critérios que queiramos utilizar.

Resumidamente o contexto implica o crime de invasão de um país soberano por outro, erros grosseiros de caráter geopolítico da Comunidade Europeia, a proximidade com as eleições de meio de mandato (mid term elections) nos EUA, a imprudência de uma OTAN de existência indefensável, etc, etc, etc.. As variáveis são tantas, tão variadas e com tantos níveis de densidade, que é simplesmente incompreensível o alinhamento automático a qualquer dos lados. Quer dizer, incompreensível a todos que não tenham ganhos assegurados e interesses contemplados diretamente com a derrota ou destruição de um ou mais dos envolvidos no conflito.

O risco da excessiva simplificação, que não considera a complexidade de uma realidade organizada em diferentes níveis de interação, redunda nas aberrações que estamos vendo na grande mídia e nas redes sociais. Ocorre o esdrúxulo, vide os cancelamentos do estrogonofe ou de Dostoievski. Mas, temos muito mais. O consumo acrítico das informações disseminadas por agentes com interesses claros no tabuleiro da guerra, a narrativa desumanizante e o adesismo quase que por imitação, produzem o ambiente da opinião pública refratária a discussões e pressões em prol da paz.

A tragédia do momento é infinitamente mais manejável pela ação humana do que a pandemia e precisaria da colaboração dos tomadores de decisão direta ou indiretamente envolvidos. Estes, por seu turno, são sensíveis aos outros Estados-Nacionais, organismos multilaterais e, claro, aos diferentes níveis possíveis de atuação da sociedade civil em escala regional, nacional e transnacional. Neste cenário, uma opinião pública que clama pela paz é uma grande arma de dissuasão em cenário de guerra. Mas, a paz sempre teve seus descontentes, tal como agora.

Infelizmente o que a humanidade tem conseguido produzir de paz perpétua, como assinalou em triste ironia o maior filósofo de Königsberg, é ainda a paz dos cemitérios.


* Pintura "Os Horrores da Guerra" de Peter Paul Rubens, circa 1638. Disponível em: https://www.nationalgallery.org.uk/paintings/after-peter-paul-rubens-the-horrors-of-war, acesso em 26 de março de 2022.

** Texto Publicado originalmente no jornal Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 26 de mar. de 2022. Pág. 4.

sexta-feira, 11 de março de 2022

Impressões sobre Faroeste Cabrunco

 

 


Impressões sobre Faroeste Cabrunco, filme do diretor Victor Van Ralse

George Gomes Coutinho

Sou amigo de Ralse há uns bons quase 30 anos... Nos conhecemos em um tempo em que nenhum dos dois tinha idade para ter barba. O contexto eram os nossos “loucos anos 1990” quando estudávamos na antiga ETFC, curso de eletrotécnica. Victor é um humanista desde sempre e por isso somos amigos até hoje (algo que não posso dizer de outras pessoas que conheci no mesmo período).

Embora eu saiba de seu investimento profissional de muitos anos na sétima arte, admito que fui surpreendido com a ousadia de Faroeste Cabrunco. Trata-se de obra cinematográfica feita em Campos dos Goytacazes, norte do estado do Rio, realizada com o importante apoio financeiro do Fundo Municipal de Cultura de Campos (FunCultura). O filme tem boa parte de sua equipe formada por campistas, tem roteiro pensado para a cidade, o diretor é campista...O que poderia advir desse experimento?

Assisti o filme na última quarta. Fui um dos intrusos na sessão das 19 horas do Cine Darcy na UENF. Se tratava da pré-estréia do média metragem e tive a honra de assistir em primeira mão junto da equipe. Eu estava devendo compartilhar essas impressões até pela honraria que me foi concedida.

Faroeste é um curioso mosaico de cultura pop e regionalismo. Há citações diversas e vale “desconstruir” para “reconstruir” a obra de Ralse. Há Legião Urbana? Há! Da épica Faroeste Caboclo, que certamente ajudou a batizar o filme, veio justamente um dos personagens, o “general de dez estrelas”.

Há realismo fantástico latino-americano? Há! Personagens como a Mana Chica ou o misterioso Peregrino estão ali para isso. Um surrealismo sutil se apresenta adornando o trabalho.

Há bang-bang spaghetti? De sobra. O filme é todo inspirado nesse gênero cinematográfico divertido, por vezes meio pastelão, onde mocinhos e bandidos lutam em meio a uma conquista do oeste norte-americano puramente imaginada (conquista esta que não foi nada divertida em termos factuais). Por vezes as deliciosas trilhas de Ennio Morricone estão ali como referências implícitas compondo a ambiência.

Temos crítica social? Sim, o filme não é chapa branca. Conta com financiamento público, algo fundamental e iniciativa absolutamente necessária que deve ser aplaudida, incentivada e aperfeiçoada. A questão é que, a despeito disso e por vivermos ainda em uma sociedade democrática, Victor optou por tomadas que doem na carne. O filme é honesto ao apresentar nossas mazelas sociais como protagonistas da trama. Além disso o diretor demonstra seu indisfarçável desprezo ante o coronelismo local, coronelismo este que se atualiza em oligarquias urbanas.

E o campistês? É a linguagem que articula tudo isso. Termos irresistivelmente regionais como “lamparão”, “cabrunco”, “tisgo” e congêneres são como agulha e linha que costuram a trama do roteiro conferindo ao trabalho uma imagem única.

Com tudo isso ainda temos a emoção no coração do campista. Emociona muito. Nunca tinha visto minha cidade na tela grande. Por vezes fecho os olhos e algumas imagens me assombram como espectros cinematográficos.  Praça São Salvador. A ponte. Mosteiro de São Bento. Os recortes da planície semiárida. Vi, me reconheci, me auto-interpretei.

Finalizando, meu irmão de vida, Sérgio Márximo Moreira Gomes Jr., trouxe o Aikido para esse guisado pop campista. Quem já esteve no dojô e acompanha as artes marciais como aprendizado (filosofia ou cultura, tanto faz), vai reconhecer ali boas cenas coreografadas e fieis ao footwork desta moderna arte japonesa.

É campista? Veja o filme. Duas vezes pelo menos! Conhece a cidade? Veja o filme, duas, três vezes. Não é de Campos e não conhece a cidade? Pouco importa. Veja um trabalho muito corajoso da imaginação artística brasileira que faz milagres a despeito do baixíssimo orçamento.

terça-feira, 8 de março de 2022

A mulher (ainda) é o negro do mundo

 

Fonte: ACNUR.

A mulher (ainda) é o negro do mundo*

* Publicado originalmente no Blog do Pedlowski.

Luciane Soares da Silva**

Uma letra da década de 70, composta por John Lennon para Yoko Ono, conduz nossa reflexão neste Oito de Março. Seu conteúdo é interseccional pois aqui a poética põe em íntimo contato formas distintas de dominação. Tão contemporâneas …

Em 2022, já não bastasse a guerra e seus horrores, o medo e a barbárie na condição imposta aos refugiados, temos um novo capítulo do ódio/desprezo às mulheres. Pedirei aqui um pouco de paciência porque me proponho a conectar fatos que estão na ordem do dia. Vamos destacá-los: o deputado que foi à Ucrânia  com um verniz de ajuda humanitária, revelou ao mundo parte de um inconsciente digno do filme Saló de Pasolini[1]. Vamos acordar que não precisamos mais citá-lo, até porque ele é um genérico do Movimento Brasil Livre, cuja troca por outros, resultaria no mesmo conteúdo. Misoginia, racismo, nazismo e violência são a plataforma que elegeu boa parte destes canalhas.

Saló assombrou a Itália e o mundo desde seu lançamento. A lembrança deste filme tem sido uma constante para mim desde 2018. Personagens que se divertem com piadas simplórias, defensores da família indiciados por envolvimento em assédios e violência sexual, racismo, linchamento e defesa da tortura na Câmara de Deputados. Não seria um exagero pensar no roteiro de uma Itália fascista e sua relação com estes anos de governo Bolsonaro.

O deputado em seu “tour” fez o mesmo uso de um linguajar comum entre os políticos eleitos em 2018. Tudo remete a um ato escatológico. No qual alguém submete ou é submetido. No qual o diálogo é objeto de desconfiança. É preciso ofender, atacar, destruir física e moralmente não apenas os inimigos. Não, claro que não. É preciso incorporar todos aqueles que podem ser sequestrados ideologicamente por descuido, vaidade ou pura ingenuidade nesta nova ordem.

Em março de 2018, uma vereadora foi assassinada, a tiros, no centro da segunda maior cidade do país enquanto voltava de uma atividade política. A noite e o ano começavam com uma intervenção, apenas mais uma fracassada e custosa intervenção. A morte de Marielle Franco, após uma semana de seu discurso na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, marcaria definitivamente o presidente que tornou Carlos Brilhante Ustra, seu patrono. Não é possível que se evoque os espíritos sem que eles apareçam. Já sabemos disto em 2022.

O ódio endereçado às mulheres, a misoginia explícita nos espaços públicos, particularmente nas Câmaras, Assembleias Legislativas e Universidades, não cessaria um dia sequer. Estamos falando dos feminicídios cotidianos, da interrupção de políticas públicas fundamentais para o combate a violência contra a mulher, do avanço desta violência sobre o corpo de mulheres indígenas.

A casa dos homens, o governo Bolsonaro, se assemelha ao filme de Pasolini em sua predileção pela covardia concretizada no ódio aos pobres. Quando o deputado se refere a situação de pobreza das ucranianas, ele o faz em comparação a riqueza de São Paulo. Este misto de alienação, demência e abuso de poder foi o motor de muitas de grande parte das ações destes parlamentares. Em algumas delas, deputados eleitos no Rio de Janeiro, não demonstravam qualquer problema em exibir uma placa quebrada com o nome da vereadora Marielle como se fosse uma cabeça de alce, um prêmio de guerra.

Esta masculinidade mal posta favorece o uso de tacos para morte de africanos. Favorece o uso de armas para disparos em vizinhos. Ou ainda, homicídios contra negros em dia claro em situações inaceitáveis.

As mulheres refugiadas são os negros do mundo pela extrema vulnerabilidade a que são expostas. A condição de vendeta em que são violadas. Ou o uso de seu corpo em redes de prostituição em confins inacessíveis dos Estados-Nação.

Aí reside o problema que a questão dos refugiados, e particularmente, das mulheres e crianças coloca para o projeto de modernidade. Se falamos de milhões de imigrantes, se sua vida em campos que deveriam se temporários, se torna “a vida que levam”, de que paz estamos falando? O que garantimos com tratados, missões humanitárias e discussões jurídicas? Sempre me preocupa que a relação sobre o território se reduza cada vez mais ao controle de recursos. Imagino a mão invisível e cruel de um sacerdote jogando milhões de pessoas como se fossem dados em pedaços de deserto no México. Ou como uma brincadeira engraçada em barcos de papel no Mediterrâneo. Uns afundam, outros não.

As mulheres ainda são os negros do mundo porque são “pobres” disse o deputado agora acusado também por assédio de menores em 2016 em uma escola do Paraná. Porque sua beleza é resumida a instrumento de troca, venda e violação. São os negros do mundo porque sendo vietnamitas, romenas, angolanas, ucranianas, não são assim … tão europeias. São do leste europeu. Aqui os jornalistas ficaram confusos, afinal, a população de Kiev não era “como Iraque ou Afeganistão”. E o racismo renasce enquanto potência explicativa deste biopoder em ação.

 

a mulher é o negro do mundo, sim, ela é, pense a respeito, faça algo contra isso, nós fazemos ela pintar o rosto e dançar, se ela não quer ser nossa escrava, dizemos que não nos ama, se ela é sincera, dizemos que está tentando ser um homem […] fazemos ela parir e criar nossos filhos, e depois a deixamos feito uma velha e gorda mãe galinha , dizemos que ela devia estar em casa, depois reclamamos que ela é provinciana demais para ser nossa amiga […] nós a insultamos todo dia na TV, e questionamos as razões pelas quais ela não tem confiança, quando ela é jovem, matamos seu desejo de ser livre, enquanto dizemos para não ser tão esperta, e a rebaixamos por ser tão boba”.

A luta que se trava nas ruas a cada ano, após cada assassinato é a recusa total e absoluta em seguirmos sendo, como mulheres, trabalhadoras do campo e da cidade, trans, mães, cientistas, vereadoras, subjugadas e escravizadas.

** Docente da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), chefe do Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do Estado (LESCE), integrante da diretoria da Associação de Docentes da UENF (Aduenf).



[1] Estadão. Especial Cinema e Fascismo: Salò, fascismo e o pecado de Pasolini. Edição de 21/06/2020. Acessível aqui.