sexta-feira, 13 de outubro de 2017

A propósito de... restos

Por Paulo Sérgio Ribeiro

O programa “Alimento para todos”, instituído em São Paulo pelo prefeito João Dória Jr. (PSDB), focaliza a “camada mais pobre da sociedade”. À primeira vista, a finalidade nele presumida seria bem-vinda, considerando a inadiável garantia de segurança alimentar para a parcela mais vulnerável da população em um cenário de desemprego crescente. O programa será executado em parceria com o Instituto Plataforma Sinergia com o objetivo de distribuir “Farinata”: um “granulado nutritivo” feito a partir do processamento de restos de alimentos que atendam aos requisitos mínimos para o consumo humano e que (ainda) estejam dentro do prazo de validade. O beneficiamento, a cargo da Plataforma Sinergia, terá, por sua vez, a parceria do programa “Save Food”, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). O vínculo com uma agência da ONU especializada no combate à fome e à pobreza confere um manto legitimador a um ato de governo que (como não poderia deixar de sê-lo) passa pelo crivo marqueteiro de um político que busca distinguir-se como “não político”: o granulado será denominado “Allimento”, qual fosse o lançamento publicitário de uma nova marca.  

Na propaganda oficial do programa, há quem leve a sério uma vaga noção de sustentabilidade. Ora, o que era então escória da indústria de alimentos, com destino incerto ao tornar-se lixo orgânico, seria outra vez matéria-prima útil, diminuindo assim os seus impactos no meio ambiente. Não resta dúvida de que soluções criativas na administração pública podem favorecer a melhoria dos indicadores de eficiência. Não menos verdadeiro, contudo, é reconhecer que políticas governamentais têm uma dimensão qualitativa que condiciona o uso (ou abuso) de tais indicadores, relevando-se, pois, com toda crueza, em sua relação com a sociedade de consumo. A partir daqui, já se pode avistar a pergunta óbvia: por que um programa dito “para todos” tem um foco que nega o que promete em seu nome? Ora, em um país no qual insegurança alimentar e desperdício de alimentos convivem sem maiores alardes, tomar o desperdício como raiz do problema nada esclarece sobre a distribuição desigual de bens essenciais no mercado capitalista. Aqueles que nele creem enquanto uma organização autossuficiente que dispensa regulação estatal curiosamente não enxergam defeitos na destruição de alimentos para elevar artificialmente o seu preço – a gestão da escassez pela mão “visível” do mercado.

Sem menosprezar os aspectos propriamente econômicos da lógica da acumulação capitalista, há um problema de fundo no que, há pouco, antecipamos por “sociedade de consumo”. Mesmo se tratando aqui de bens não duráveis como os alimentos, a gestão de sua escassez não desmente as nuances de uma vida consumista. Produzir muito além do socialmente necessário é uma contrapartida da distinção social, que não reside, necessariamente, no acúmulo de bens, mas na disponibilidade de recursos que permita descartá-los com a mesma facilidade com que são adquiridos. Àqueles que não podem se entregar à frívola excitação dos sentidos dispondo da rotatividade cada vez mais veloz das mercadorias, reserva-se um não-lugar na sociedade de consumo. Esse “não-lugar” é o depositário do excedente humano que, reduzido à condição de mercadoria, também é facilmente descartável à medida que decai o seu valor de troca: desempregados, toxicômanos, pobres, idosos, inválidos etc.

Não à toa, o caráter social da produção de alimentos – quem os cultiva e quem os distribui – é ocultado sob golpes de retórica acerca da política como gestão. Diante de um governo antissocial por excelência como o exercido por Dória, é oportuno lembrar de uma lição do velho barbudo, a qual nos diz que, num nível aparente e imediato à consciência humana, opera-se uma inversão na ordem do capital: o sujeito que despende esforço físico e investe sua subjetividade na criação de um objeto passa a ter uma posição subordinada ao mesmo e, por conseguinte, o objeto criado adquire de maneira fantasmagórica a condição de “sujeito” na relação de consumo. Se assim é a reificação, por que os “mais pobres” – o público-alvo do programa – não seriam tratados involuntariamente (ou, quiçá, nem tanto) como coisas? Ou, precisamente falando, por que ignorá-los como biodigestores baratos para a indústria de alimentos? Àqueles que estão sobrando na orgia consumista do capitalismo tardio, as sobras, pois. 

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