Por Paulo Sérgio
Ribeiro
O programa
“Alimento para todos”, instituído em São Paulo pelo prefeito João Dória Jr. (PSDB),
focaliza a “camada mais pobre da sociedade”. À primeira vista, a finalidade
nele presumida seria bem-vinda, considerando a inadiável garantia de segurança
alimentar para a parcela mais vulnerável da população em um cenário de
desemprego crescente. O programa será executado em parceria com o Instituto
Plataforma Sinergia com o objetivo de distribuir “Farinata”: um “granulado nutritivo”
feito a partir do processamento de restos de alimentos que atendam aos
requisitos mínimos para o consumo humano e que (ainda) estejam dentro do prazo
de validade. O beneficiamento, a cargo da Plataforma Sinergia, terá, por sua
vez, a parceria do programa “Save Food”, da Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura (FAO).
O vínculo com uma agência da ONU especializada no combate à fome e à pobreza
confere um manto legitimador a um ato de governo que (como não poderia deixar de
sê-lo) passa pelo crivo marqueteiro de um político que busca distinguir-se como
“não político”: o granulado será denominado “Allimento”, qual fosse o
lançamento publicitário de uma nova marca.
Na propaganda
oficial do programa, há quem leve a sério uma vaga noção de sustentabilidade. Ora,
o que era então escória da indústria de alimentos, com destino incerto ao
tornar-se lixo orgânico, seria outra vez matéria-prima útil, diminuindo
assim os seus impactos no meio ambiente. Não resta dúvida de que soluções
criativas na administração pública podem favorecer a melhoria dos indicadores
de eficiência. Não menos verdadeiro, contudo, é reconhecer que políticas governamentais
têm uma dimensão qualitativa que condiciona o uso (ou abuso) de tais
indicadores, relevando-se, pois, com toda crueza, em sua relação com a
sociedade de consumo. A partir daqui, já se pode avistar a pergunta óbvia: por
que um programa dito “para todos” tem um foco que nega o que promete em seu
nome? Ora, em um país no qual insegurança alimentar e desperdício de alimentos
convivem sem maiores alardes, tomar o desperdício como raiz do problema nada esclarece
sobre a distribuição desigual de bens essenciais no mercado capitalista.
Aqueles que nele creem enquanto uma organização autossuficiente que dispensa
regulação estatal curiosamente não enxergam defeitos na destruição de alimentos
para elevar artificialmente o seu preço – a gestão da escassez pela mão “visível”
do mercado.
Sem
menosprezar os aspectos propriamente econômicos da lógica da acumulação
capitalista, há um problema de fundo no que, há pouco, antecipamos por “sociedade
de consumo”. Mesmo se tratando aqui de bens não duráveis como os alimentos, a
gestão de sua escassez não desmente as nuances de uma vida consumista. Produzir
muito além do socialmente necessário é uma contrapartida da distinção social, que
não reside, necessariamente, no acúmulo de bens, mas na disponibilidade de
recursos que permita descartá-los com a mesma facilidade com que são
adquiridos. Àqueles que não podem se entregar à frívola excitação dos sentidos dispondo
da rotatividade cada vez mais veloz das mercadorias, reserva-se um não-lugar na
sociedade de consumo. Esse “não-lugar” é o depositário do excedente humano que,
reduzido à condição de mercadoria, também é facilmente descartável à medida que
decai o seu valor de troca: desempregados, toxicômanos, pobres, idosos,
inválidos etc.
Não à toa, o
caráter social da produção de alimentos – quem os cultiva e quem os distribui –
é ocultado sob golpes de retórica acerca da política como gestão. Diante de um
governo antissocial por excelência como o exercido por Dória, é oportuno
lembrar de uma lição do velho barbudo, a qual nos diz que, num nível aparente e
imediato à consciência humana, opera-se uma inversão na ordem do capital: o
sujeito que despende esforço físico e investe sua subjetividade na criação de
um objeto passa a ter uma posição subordinada ao mesmo e, por conseguinte, o
objeto criado adquire de maneira fantasmagórica a condição de “sujeito” na
relação de consumo. Se assim é a reificação, por que os “mais pobres” – o público-alvo
do programa – não seriam tratados involuntariamente (ou, quiçá, nem tanto) como
coisas? Ou, precisamente falando, por que ignorá-los como biodigestores baratos
para a indústria de alimentos? Àqueles que estão sobrando na orgia consumista
do capitalismo tardio, as sobras, pois.
Excelente reflexão. "Biodigestores baratos", exatamente isso!!
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