Por
Paulo Sérgio Ribeiro
Em 29/09/17, mediante julgamento
da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4439), o Supremo Tribunal Federal
(STF) admitiu, por seis votos a cinco, a liberação do ensino religioso confessional
em escolas públicas. Seu fundamento? O § 1º do Art. 210 da Constituição Federal
(CF), que prevê a oferta de ensino religioso nos horários normais do ensino
fundamental em caráter facultativo. Em tese, não haveria o que temer para quem vislumbra
na adesão voluntária do estudante a aulas de religião a garantia da liberdade
de consciência e de crença. Não obstante, seria, no mínimo, imprudente fechar
os olhos para a sobreposição de determinados valores religiosos a outras expressões
culturais que, mesmo minoritárias, deveriam ter livre manifestação na
comunidade escolar. Diante desse dilema, por que a laicidade seria uma premissa
tão frágil em nosso ordenamento jurídico? Uma pista para dimensionar a
complexidade dessa questão talvez se encontre no âmago da filosofia cristã.
O percurso pelo qual o cristianismo
adquiriu um tempo e espaço próprios em face de outras matrizes culturais que lhe
constituem (judaísmo, cultura grega) é bastante elucidativo no que toca às
tensões que envolvem a formação do seu corpus
doutrinário. Percurso esse que se confunde, inicialmente, com a vida de Paulo
de Tarso, doravante são Paulo, um então funcionário do Império Romano cuja formação
intelectual deita raízes na cultura erudita grega. Judeu de origem, converteu-se
ao cristianismo e passou a transitar pelo Império Romano pregando e difundindo
a religião cristã sem limitá-la a um povo “eleito”. Para Danilo Marcondes, a
pretensão universalista de sua missão evangelizadora não seria explicável sem
se observar uma conexão de sentido com o helenismo, uma cultura que se fez hegemônica
no mundo antigo pelo estabelecimento de uma língua grega comum e, sobretudo, pela
ideia de projeto inerente ao Império
de Alexandre, cujo poder central orientava-se não pela supressão e sim para a assimilação
de uma miríade de culturas locais nas regiões conquistadas. Como bem sintetiza
Marcondes, “a concepção de uma religião universal corresponde no plano
espiritual e religioso à concepção de império no plano político-militar”.
Todavia, rascunhar os primórdios
do cristianismo é válido tão somente para não subestimar as contingências de
seu processo de institucionalização. Falar em cristianismo no singular é um
recurso didático de exposição, pois, efetivamente, houve um conjunto heterogêneo
de iniciativas de difusão levadas a cabo depois de são Paulo, ocasionando
práticas religiosas divergentes quanto à interpretação da mensagem de Cristo. O
cristianismo emergente caracterizava-se não apenas por visões discrepantes do
sagrado, mas por conflitos que sinalizavam a falta de coesão das comunidades
que o confessavam. Integrá-las demandava uma autoridade que suplantasse os
particularismos locais e, por conseguinte, legitimá-la suscitaria a formulação
de uma doutrina unificada. Aqui, a filosofia grega fora decisiva. Dela se
extrairia o léxico com o qual (para usar um jogo de palavras de sabor
bourdieusiano) seus doutrinadores poderiam estar de acordo sobre o que discordariam.
Ora, por que discordariam, se o
produto acabado de suas formulações – o dogma – seria impassível de discussão? Ideias
são capazes de vincular indivíduos na justa medida em que sua elaboração
original “decanta-se” paulatinamente de um nível conceitual mais abstrato para
o senso comum. Desse modo, o parto da doutrina cristã se fez a muitas mãos e com o
suporte de fontes não religiosas, notadamente daquelas radicadas na filosofia grega
antiga. Para ficarmos apenas em um exemplo: Fílon de Alexandria (25 a.C. – 50 d.C)
inspira-se no “Timeu”, diálogo da fase final da obra de Platão, para explicar a
origem do cosmo. Enquanto Platão interpretava-o como o ato de criação de um
“artífice” que organizava o mundo físico olhando as formas ou ideais situados
em um lugar inacessível àquele mundo, para Fílon, a criação do mundo adviria não
de um “artífice” ou “demiurgo”, mas de um Deus que cotejava ideias em sua mente
sem dar margem à suposição de que elas fossem externas ao mundo a ser criado. Tal
aproximação da cosmologia platônica com a narrativa de criação do mundo no “Gênesis”
feita de modo precursor por Fílon, lembra Marcondes, matizaria, séculos depois,
a teoria das ideias de Descartes. Nessa teoria opera-se uma transposição das
entidades mentais concebidas como uma extensão da “mente de Deus” para uma
visão inatista do conhecimento, que lhes ressignificaria como atributos da mente
humana. Se são tantos os exemplos a confirmar que fora inevitável a filosofia grega,
especialmente o platonismo, prover uma moldura axiomática para a filosofia
cristã, não menos forçoso é reconhecer que o pensamento filosófico e o
pensamento mítico-religioso mantêm um relacionamento problemático entre si.
O pensamento mítico-religioso – do
qual a filosofia sempre colheu boa parte de sua estilística – permeia variados
campos de atuação, delineando os pontos de referência para um sentir e pensar
comuns. O mito não é uma percepção específica da cultura senão a própria visão de
mundo dos indivíduos. Consistindo no senso de pertencimento a uma tradição
cultural, o pensamento mítico implica aceitação inconteste
dos indivíduos a uma forma de existência. Sendo o mito em si um paradoxo, isto
é, a postulação de que a experiência do real seja explicável segundo o que excede
a compreensão humana – o sobrenatural ou o mistério –, o pensamento
mítico-religioso entregue a si mesmo reduz a possibilidade do conhecimento. Esse
paradoxo acompanharia toda a filosofia medieval cristã, inaugurando o conflito
entre razão e fé. Para os seus doutrinadores, tratar-se-ia de uma verdadeira
encruzilhada: seria a filosofia cristã e todas as demais práticas religiosas conduzidas
por seus intérpretes autorizados redutíveis à célebre passagem bíblica - “Se
não crerdes não entendereis” (Isaías 7,9) – ou, ao contrário, o caráter crítico da filosofia,
enquanto tentativas de questionamento e de superação de um ponto de vista por filósofos ou escolas de pensamento que se sucedem, sedimentaria o cultivo e a transmissão da fé cristã? Ante tais perspectivas, nunca houve consenso entre os cultores da doutrina cristã. Se muito, admitia-se a
incorporação da filosofia grega se, e somente se, a verdade relevada pelos textos
sagrados a precedessem, dispensando-se assim o potencial crítico do pensamento
filosófico.
Feita essa breve digressão, cabe ponderar
se a disposição indagativa inerente ao pensamento filosófico e, não menos, aos
demais ramos do conhecimento se dobraria tão facilmente a qualquer pretensão
dogmática como o querem os segmentos retrógrados das igrejas católica e
protestante e os grupos alinhados às pautas do conservadorismo moral, assim representados
pela dita “bancada da bíblia” no Congresso Nacional. Ora, que atitude um
docente deverá tomar se um estudante expuser uma pergunta simples e direta sobre
a razoabilidade ou não de crer em um deus numa eventual aula de religião? Caberá
adverti-lo ou mesmo censurá-lo numa escola que, se pública é, não tem outra finalidade
senão o interesse público o qual não se confunde com paixões ou crenças pessoais?
Em dias que testemunham ataques virulentos às liberdades individuais, o ensino religioso
confessional nas escolas públicas chancelado pelo STF apenas confirma as
intermitências do conflito entre razão e fé. Para aqueles que insistam em ter “fé” na chegada de dias melhores, aconselho depositarem esperanças no caráter insubmisso da razão.
Obra citada:
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. Dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
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