segunda-feira, 2 de outubro de 2017

As intermitências do conflito entre razão e fé


Por Paulo Sérgio Ribeiro

Em 29/09/17, mediante julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4439), o Supremo Tribunal Federal (STF) admitiu, por seis votos a cinco, a liberação do ensino religioso confessional em escolas públicas. Seu fundamento? O § 1º do Art. 210 da Constituição Federal (CF), que prevê a oferta de ensino religioso nos horários normais do ensino fundamental em caráter facultativo. Em tese, não haveria o que temer para quem vislumbra na adesão voluntária do estudante a aulas de religião a garantia da liberdade de consciência e de crença. Não obstante, seria, no mínimo, imprudente fechar os olhos para a sobreposição de determinados valores religiosos a outras expressões culturais que, mesmo minoritárias, deveriam ter livre manifestação na comunidade escolar. Diante desse dilema, por que a laicidade seria uma premissa tão frágil em nosso ordenamento jurídico? Uma pista para dimensionar a complexidade dessa questão talvez se encontre no âmago da filosofia cristã.

O percurso pelo qual o cristianismo adquiriu um tempo e espaço próprios em face de outras matrizes culturais que lhe constituem (judaísmo, cultura grega) é bastante elucidativo no que toca às tensões que envolvem a formação do seu corpus doutrinário. Percurso esse que se confunde, inicialmente, com a vida de Paulo de Tarso, doravante são Paulo, um então funcionário do Império Romano cuja formação intelectual deita raízes na cultura erudita grega. Judeu de origem, converteu-se ao cristianismo e passou a transitar pelo Império Romano pregando e difundindo a religião cristã sem limitá-la a um povo “eleito”. Para Danilo Marcondes, a pretensão universalista de sua missão evangelizadora não seria explicável sem se observar uma conexão de sentido com o helenismo, uma cultura que se fez hegemônica no mundo antigo pelo estabelecimento de uma língua grega comum e, sobretudo, pela ideia de projeto inerente ao Império de Alexandre, cujo poder central orientava-se não pela supressão e sim para a assimilação de uma miríade de culturas locais nas regiões conquistadas. Como bem sintetiza Marcondes, “a concepção de uma religião universal corresponde no plano espiritual e religioso à concepção de império no plano político-militar”.

Todavia, rascunhar os primórdios do cristianismo é válido tão somente para não subestimar as contingências de seu processo de institucionalização. Falar em cristianismo no singular é um recurso didático de exposição, pois, efetivamente, houve um conjunto heterogêneo de iniciativas de difusão levadas a cabo depois de são Paulo, ocasionando práticas religiosas divergentes quanto à interpretação da mensagem de Cristo. O cristianismo emergente caracterizava-se não apenas por visões discrepantes do sagrado, mas por conflitos que sinalizavam a falta de coesão das comunidades que o confessavam. Integrá-las demandava uma autoridade que suplantasse os particularismos locais e, por conseguinte, legitimá-la suscitaria a formulação de uma doutrina unificada. Aqui, a filosofia grega fora decisiva. Dela se extrairia o léxico com o qual (para usar um jogo de palavras de sabor bourdieusiano) seus doutrinadores poderiam estar de acordo sobre o que discordariam.

Ora, por que discordariam, se o produto acabado de suas formulações – o dogma – seria impassível de discussão? Ideias são capazes de vincular indivíduos na justa medida em que sua elaboração original “decanta-se” paulatinamente de um nível conceitual mais abstrato para o senso comum. Desse modo, o parto da doutrina cristã se fez a muitas mãos e com o suporte de fontes não religiosas, notadamente daquelas radicadas na filosofia grega antiga. Para ficarmos apenas em um exemplo: Fílon de Alexandria (25 a.C. – 50 d.C) inspira-se no “Timeu”, diálogo da fase final da obra de Platão, para explicar a origem do cosmo. Enquanto Platão interpretava-o como o ato de criação de um “artífice” que organizava o mundo físico olhando as formas ou ideais situados em um lugar inacessível àquele mundo, para Fílon, a criação do mundo adviria não de um “artífice” ou “demiurgo”, mas de um Deus que cotejava ideias em sua mente sem dar margem à suposição de que elas fossem externas ao mundo a ser criado. Tal aproximação da cosmologia platônica com a narrativa de criação do mundo no “Gênesis” feita de modo precursor por Fílon, lembra Marcondes, matizaria, séculos depois, a teoria das ideias de Descartes. Nessa teoria opera-se uma transposição das entidades mentais concebidas como uma extensão da “mente de Deus” para uma visão inatista do conhecimento, que lhes ressignificaria como atributos da mente humana. Se são tantos os exemplos a confirmar que fora inevitável a filosofia grega, especialmente o platonismo, prover uma moldura axiomática para a filosofia cristã, não menos forçoso é reconhecer que o pensamento filosófico e o pensamento mítico-religioso mantêm um relacionamento problemático entre si.

O pensamento mítico-religioso – do qual a filosofia sempre colheu boa parte de sua estilística – permeia variados campos de atuação, delineando os pontos de referência para um sentir e pensar comuns. O mito não é uma percepção específica da cultura senão a própria visão de mundo dos indivíduos. Consistindo no senso de pertencimento a uma tradição cultural, o pensamento mítico implica aceitação inconteste dos indivíduos a uma forma de existência. Sendo o mito em si um paradoxo, isto é, a postulação de que a experiência do real seja explicável segundo o que excede a compreensão humana – o sobrenatural ou o mistério –, o pensamento mítico-religioso entregue a si mesmo reduz a possibilidade do conhecimento. Esse paradoxo acompanharia toda a filosofia medieval cristã, inaugurando o conflito entre razão e fé. Para os seus doutrinadores, tratar-se-ia de uma verdadeira encruzilhada: seria a filosofia cristã e todas as demais práticas religiosas conduzidas por seus intérpretes autorizados redutíveis à célebre passagem bíblica - “Se não crerdes não entendereis” (Isaías 7,9) – ou, ao contrário, o caráter crítico da filosofia, enquanto tentativas de questionamento e de superação de um ponto de vista por filósofos ou escolas de pensamento que se sucedem, sedimentaria o cultivo e a transmissão da fé cristã? Ante tais perspectivas, nunca houve consenso entre os cultores da doutrina cristã. Se muito, admitia-se a incorporação da filosofia grega se, e somente se, a verdade relevada pelos textos sagrados a precedessem, dispensando-se assim o potencial crítico do pensamento filosófico.

Feita essa breve digressão, cabe ponderar se a disposição indagativa inerente ao pensamento filosófico e, não menos, aos demais ramos do conhecimento se dobraria tão facilmente a qualquer pretensão dogmática como o querem os segmentos retrógrados das igrejas católica e protestante e os grupos alinhados às pautas do conservadorismo moral, assim representados pela dita “bancada da bíblia” no Congresso Nacional. Ora, que atitude um docente deverá tomar se um estudante expuser uma pergunta simples e direta sobre a razoabilidade ou não de crer em um deus numa eventual aula de religião? Caberá adverti-lo ou mesmo censurá-lo numa escola que, se pública é, não tem outra finalidade senão o interesse público o qual não se confunde com paixões ou crenças pessoais? Em dias que testemunham ataques virulentos às liberdades individuais, o ensino religioso confessional nas escolas públicas chancelado pelo STF apenas confirma as intermitências do conflito entre razão e fé. Para aqueles que insistam em ter “fé” na chegada de dias melhores, aconselho depositarem esperanças no caráter insubmisso da razão.

Obra citada:

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. Dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

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