O atirador de bem*
George
Gomes Coutinho **
Os fatos nos EUA podem nos servir
de parâmetro para pensarmos nossa própria sociedade. A razão é simples: parte
de nossas elites financeiras, políticas, empresariais e intelectuais vêem no
“Grande Irmão do Norte” um modelo a ser seguido. Isto implica que leis,
instituições e costumes poderiam ser transplantados para cá a despeito da complexidade
intrínseca das culturas nacionais. E mesmo com o decalque realizado os
resultados não viriam a reboque.
Dentre as questões a serem
“transplantadas” há a da venda e porte de armas de fogo. Em termos econômicos é
uma questão que atende diretamente ao empresariado da indústria armamentista. O
Brasil é um potencial grande mercado consumidor caso seguíssemos a legislação
de parte dos estados norte-americanos. Cabe esta ressalva: dadas as
características específicas do federalismo por lá, a regulação sobre venda e
porte de armas de fogo varia nas cinqüenta unidades que constituem os EUA. Há
estados mais ou menos liberais.
Como no Brasil neste momento alguns
dos mais conservadores defendem a revogação ou o afrouxamento do Estatuto do
Desarmamento de 2003, penso que a tragédia ocorrida na noite do último domingo em
Las Vegas, estado de Nevada, é relevante. Nevada é dos estados que mantém uma
das legislações mais liberais quanto ao porte de armas de fogo nos EUA e,
nestes termos, seria uma espécie de paraíso para os mais entusiasmados.
Contudo, não obstante a perda estúpida de 59 vidas, um recorde em um país que
se habituou a este tipo de ocorrência bárbara, há um fator que salta aos olhos.
O surgimento do “atirador de bem”.
Stephen Paddock, 64 anos, era um
contador aposentado com 23 armas em um quarto de hotel. Ainda não há indícios de
que fosse um fanático religioso ou supremacista branco. Sua suposta
“normalidade” nos aproxima da figura mítica e retórica do “cidadão de bem”.
Diante dos fatos a tragédia de Vegas coloca duas perguntas sombrias. Os
supostos e questionáveis benefícios da venda quase indiscriminada de armas
valeram as 59 vidas perdidas? Ainda, “cidadãos de bem” seriam sempre estáveis,
indestrutíveis ou santificados? Para a última pergunta Sigmund Freud, Nelson
Rodrigues ou até mesmo Immanuel Kant responderiam que não.
* Texto publicado em 07 de outubro no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ.
** Professor de Ciência Política no
Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes
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