Anomia ou espelho quebrado?
Narciso acha
feio o que não é espelho.
(Caetano Veloso)
Paulo Sérgio Ribeiro
Não é a primeira vez que escrevo com o pensamento em Viçosa/MG, atual morada deste blogueirinho sujo. Atrever-se a lembrar donde se vive é um risco, pois há sempre a chance de se repetir clichês ao tentar um distanciamento crítico do que lhe pareça familiar ou banal.
Quase nada sei de Viçosa, ainda que esteja nela situado há quase dois anos. Como qualquer habitante, certo trajeto se impôs a minha rotina e este circuito fechado se revelou demasiado claustrofóbico à medida que o isolamento se fez permanente na pandemia. Isolamento, não duvidem, tem sido apenas um ato pessoal de estoicismo diante da quarentena meia boca que alguns eufemisticamente chamam de “novo normal”.
O que é “normal”? O que nos vincula aos outros ao evocá-lo? Haveria alguma escala de valores para mensurá-lo?
O atrativo maior de Viçosa é o campus que lhe toma de empréstimo o nome: Universidade Federal de Viçosa (UFV). Sem dúvida, um deleite para quem aprecie suas manchas de Mata Atlântica, toda sorte de pássaros silvestres, sua jardinagem impecável, além, claro, de ser a preferência de dez em cada dez praticantes de esportes ao ar livre. Estes, entretanto, terão de eleger outro passeio público com a medida restritiva estabelecida pela Reitoria da UFV[1], haja vista a quantidade de frequentadores da universidade que, isoladamente ou em grupo, dispensam a máscara ao se entrecruzarem confiando na vastidão do campus, na providência divina, no Kapitão Kloroquina (com K) ou em sei lá o quê.
Ainda que considere tal decisão razoável, ela faz emergir uma questão que tanto inspira quanto atormenta àqueles(as) que, um dia, beberam da água da sociologia clássica: afinal de contas, o que faz o laço social?
Talvez, fosse mais fácil começar pelo que o esgarça – a dissolução do pacto federativo, entre outros processos de desagregação social - como sinaliza um dos mais argutos cronistas da questão nacional de que dispomos, Roberto Moraes[2]:
A guerra federativa do desgoverno do Partido
Militar contra governadores é muito profunda e de riscos incalculáveis.
[...]
Isso começou com a negação da pandemia, se ampliou
com a propaganda de remédios sem efeitos, seguiu com o enrolo em relação às
vacinas e agora com relação à distribuição orçamentária, como se as pessoas não
vivessem nas cidades e estados, mas de um único país. Ninguém mora na nação,
sem morar num município ou estado.
[...]
O resultado disso é a redução e a perda da identidade,
do sentimento de pertencimento à nação Brasil. União sem soberania e sem
articulação e cooperação federativa não é nação.
Não
suponho que a nacionalidade seja a definição última de um sentimento comum quanto
à origem ou destino coletivo. Mas aceitemos que a ideia moderna de “nação” vá ao
encontro da tentativa de dar nome a certas relações de interdependência entre
indivíduos estranhos entre si quando o que está em jogo é o controle sobre
determinado território, assim como a instituição do Estado de cuja legitimidade
depende o fato de que a totalidade daqueles indivíduos seja algo além do que a
simples soma das suas partes. A mediação entre Estado e sociedade implica,
pois, a figuração de um “todo orgânico” pela qual suas contrapartes se reconheçam
mutuamente até mesmo para se posicionar diante dos seus conflitos mais
cruentos.
Dito de outro modo, um mínimo de expectativa recíproca das maneiras de pensar, sentir e agir se faz necessário para que uma sociedade complexa transcenda nossas vidas sem reduzi-las a pura contingência. Mas, o que dizer quando um indivíduo se vê ameaçado por sua própria coletividade? Em termos simples: o que fazer quando, diante de um vírus da Covid-19 transmissível pelo ar, engrossando taxas de contágio galopantes e de óbito assustadoras, é quase certo que você topará com alguém ou algum grupinho sem máscara no campus da UFV, numa rua ou praça de Viçosa ou de qualquer outra cidade neste país?
Evidente que aqui subjaz uma situação de classe peculiar: escrevo do ponto de vista de quem pode se isolar para leitores que, provavelmente, participem de condição similar. Há, todavia, um sem número de categorias de trabalhadores que, simplesmente, têm de se expor e, ainda que tentem evitar condutas de risco, estão submetidos a maiores chances de se contaminar. Trato aqui, tão somente, de um comportamento coletivo – ser um agente colaborador de uma guerra biológica contra a humanidade – e do que ele revela sobre como laços sociais se fazem ou desfazem.
Diante desse comportamento coletivo sui generis, indago se há um estado de anomia entre nós.
Em uma primeira aproximação do conceito, anomia consistiria num estado de desorganização social resultante da perda do efeito disciplinador das normas sobre as condutas. A baixa adesão coletiva às tentativas episódicas de governos municipais ou estaduais de restringir a circulação de pessoas nos levaria a crer que a anomia, nos termos tratados até aqui, manifestar-se-ia como um conceito inequívoco em nosso cotidiano.
Porém, ressalva Heloísa Fernandes[3], a evolução mesma do conceito de anomia na obra de Émile Durkheim evidencia um diagnóstico da modernidade controverso em suas premissas.
Se nas primeiras obras do velho mestre francês - Regras do Método Sociológico e A Divisão do Trabalho Social –, anomia seria uma espécie de gradação do célebre conceito de “solidariedade orgânica” que, por sua vez, refletiria uma perspectiva dos conflitos como sintomas passageiros de uma sociedade que, qual um ser vivo em crescimento, comportaria fases de desiquilíbrio rumo ao estabelecimento de novas formas de vida social - desde que seus “órgãos” se mantivessem interdependentes - , em O Suicídio, diz Fernandes, há uma mudança de ênfase: com o “suicídio anômico”, admite-se a possibilidade de que o corpo social seja destruído, na medida em que uma ordem normativa internalizada não seja mais páreo para as paixões humanas que nos arrebatam:
Anomia é, então, o diagnóstico do corpo doente, e
não mais das relações dos órgãos entre si. Ademais, não deriva da inexistência
de regras de intercâmbio mas da ausência de freios. Já não indica a desordem de
uma etapa no curso de uma evolução progressiva e automática em direção à
solidariedade orgânica mas é o mal que ameaça a sociedade moderna (FERNANDES,
1996, p.75).
Ora,
por que duvidar da pertinência do conceito de anomia se continuamos a morrer
aos magotes pela elevação da liberdade individual a um valor absoluto por
aqueles que dispensam máscaras nos espaços públicos ou simplesmente avacalham a
noção de “desobediência civil” como subterfúgio para se reunir às dezenas em
quaisquer espaços? Esta imoderação da comportamento não prova que determinadas
pessoas seriam espécimes do “homo
bolsonarus”, assim interpretado por Renato Lessa[4]
como o mergulho numa distopia: devolver-nos ao estado de natureza?
Ao ponderarmos a correlação entre as maiores taxas de contágio da Covid-19 e as cidades com maiores resultados eleitorais favoráveis a Bolsonaro em 2018 [5], é bastante tentador tomar aquele segmento da população brasileira como o avesso da modernidade: a barbárie.
Contudo, tal suposição se mostra duvidosa a julgar pelo acerto de Fernandes (op. cit.) na análise que fez da sociologia do consenso de Émile Durkheim em diálogo com a psicanálise. O conjunto de valores e crenças que regulam o comportamento humano seria o correlato do superego, esta instância da autoridade moral a expiar nossas volições inconscientes numa luta sem fim por domá-las... em vão. Todavia, a consciência coletiva atribuível àquela “autoridade” se desvanece quando o indivíduo encontra-se sob pressão das múltiplas filiações valorativas propiciadas pela ruptura com a tradição que a modernidade nos brindou. Entregue às suas disposições de agir cada vez menos comprometidas com valores comuns – conformismo moral -, teríamos indivíduos insaciáveis e incontroláveis.
Ora, o que Durkheim toma por ameaça à sociedade moderna – a anomia – não seria a própria condição moderna? Sentir-se “perdido” não passou a ser uma constante em nossas vidas com a vacuidade de sentido num mundo onde (lembrando Weber) todos os valores são sagrados? Aliás, a entronização do indivíduo, indaga Fernandes, não seria o preço a se pagar pelas crenças modernas que nos constituem:
Quem sabe a anomia seja mesmo um sintoma do
mal-estar na modernidade ? Sintoma dessa impossibilidade de habitar uma cultura
que nos demanda como indivíduos –
seres indivisos, monádicos, desterrados e “livres como pássaros” – ao mesmo
tempo que não cessa de nos cobrar porque obedecemos tão bem ao seu mandato! (FERNANDES,
1996, p.78).
Sim, somos objeto de um experimento político genocida em curso, mas seus agentes colaboradores – ainda que personifiquem de maneira grotesca o “homo bolsonarus” – não são, necessariamente, encarnações de um passado arcaico, mas típicos homens e mulheres da modernidade. A perplexidade é reconhecer que não há qualquer chance de uma negociação pacífica de dissensos com aqueles, digamos, congêneres da vida humana.
Com “eles” não haverá um “nós” a ser compartilhado, mas um mundo a ser disputado.
[2] BRASIL 247. A construção da
guerra federativa do desmonte nacional. Edição de 01/03/2021 Disponível aqui.
[3]
FERNANDES, Heloísa. Um século à espera de regras. Tempo soc.,
São Paulo , v. 8, n. 1, p. 71-83, jun. 1996 . Disponível aqui.
[4] LESSA,
Renato. Homo bolsonarus. Revista Serrote,
Instituto Moreira Salles: São Paulo/SP, jul. 2020 (Edição especial).
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