De que comunismo estamos falando? – Sobre a pesquisa IPEC de março.
George Gomes
Coutinho **
O IPEC, antigo IBOPE, realizou pesquisa nacional entre 02
e 06 de março. A síntese da pesquisa[1], divulgada primeiramente
pelo grupo Globo[2],
visava verificar a temperatura da conjuntura política no que tange a recepção
do governo Lula 3 e, para além disso, aproveitou para tratar de outras
temáticas de interesse político mais amplo. Dentre as questões apresentadas aos
indivíduos da amostra, um total de 2 mil brasileir@s, algo assombrou formadores
de opinião e demais atuantes no atual mercado descentralizado de produção de
informações: 44% dos participantes concorda total ou parcialmente com a
afirmação de que o Brasil corre o risco de se tornar um país comunista.
Vale dizer que se adotarmos a perspectiva do “copo meio
vazio”, e acrescentarmos os que “discordam em parte” da afirmação, o percentual
chega a 55%. Afinal, “discordar em parte” quer dizer que não se discorda totalmente
da possibilidade de nos tornarmos um país comunista na atual quadra histórica.
Ou interpretei errado?
A reação de maneira geral foi de estupefação e em alguns
casos resignação. Afinal, estamos no país do patriota do caminhão, dos aliens
golpistas, dos Messias em goiabeiras, etc.. Por outra via há os que se lançaram
no esforço (ou fé) iluminista e se puseram a explicar, afinal, o que é o
comunismo, seja por um resumo conceitual formal ou revisitando experiências factuais.
Os 44%, ou os 55% em minha perspectiva mais pessimista,
que acreditam para mais ou para menos na hipótese do país se tornar comunista,
certamente apresentam baixíssimo letramento político-ideológico em termos
canônicos. Vale dizer que, destes que temem uma ameaça comunista no horizonte,
há grande percentual que se declara portador de diploma universitário (43% do
total da amostra com ensino superior aposta na hipótese comunista – 55% se
somarmos também os que discordam só parcialmente do suposto risco vermelho
neste estrato). A maior qualificação formal não conferiu imunidade cultural ou
cognitiva pelo visto.
Não se trata de exigir que a população da amostra da
pesquisa IPEC ande com o Dicionário do Pensamento Marxista de Bottomore debaixo
do braço. Mas, a perplexidade generalizada se dá é pela ausência de rudimentos
de conhecimento sobre o que seria o comunismo ou a experiência do socialismo
real. De alguma maneira seria como se 44% da população da pesquisa (ou os 55%
em minha ótica mais sombria) se declarasse inepta para operar somas ou subtrações
simples. O levantamento do IPEC também indica lamentavelmente, dentre outras
coisas, uma lacuna de conhecimento básico.
Eu reconheço a gravidade do problema e considero
louváveis as intervenções abnegadas dos que se esforçaram no esclarecimento
sobre o que seria o comunismo em termos factuais ou conceituais. Contudo, eu
gostaria de apontar para outra coisa, para algo mais pragmático que importa na
atual luta política brasileira para restituir alguma saúde à democracia nativa.
Considero que o comunismo que está no horizonte de forma mais ou menos palpável
para estes cidadãos, e o que eles temem, é outra coisa, algo para além do
cânone ou das experiências do socialismo em Cuba, Coréia do Norte ou no Leste
Europeu. O que estamos lidando é com a atualização rarefeita, quase etérea, do
anticomunismo.
Heloisa Starling data o nascimento do anticomunismo nacional
em 1935[3] por ocasião dos levantes
comunistas do período. Desta malfadada experiência, voluntarista para dizer o
mínimo, decorreu trabalho sistemático da máquina varguista de perseguição
implacável aos membros do partido e simpatizantes, satanização ideológica e deflagração
de pânico moral. Todo este trabalho foi muito bem sucedido. Gildo Marçal
Brandão costumava lembrar que entre 1922, data de fundação do Partido Comunista
Brasileiro, e 1985, período da abertura da ditadura civil-militar em que houve
a reconfiguração do sistema político tal como o conhecemos, o PCB gozou de
apenas três anos e meio de legalidade plena. Este apagamento, esta vida nas
catacumbas do sistema político, jamais seria possível sem ampla legitimidade. E
aqui pouco importa, em temos das consequências práticas, se é legitimidade alcançada
às custas de iletrados ideológicos.
Portanto, desde 1935 o espectro do anticomunismo assombra
a imaginação política brasileira, tendo atuação decisiva nos fatos que
desencadearam o golpe de março/abril de 1964. O anticomunismo no período ajudou
a conferir eficácia simbólica ao discurso de ditadores, torturadores e de seus
apoiadores, seja na sociedade civil ou nos quartéis.
A atual reencarnação do anticomunismo nesta década de 20
do século XXI é enquanto recurso retórico eficiente justamente por seu caráter
impreciso, lusco-fusco. Aproveita-se
da capilaridade adquirida pelo anticomunismo após décadas de inculcação no
inconsciente político nacional. Mas, a atual versão, mobilizada por direita e
extrema-direita, é dotada de conteúdo
vazio[4].
Portanto, os esforços de esclarecimento formal ou factual aí não penetram. Não
se trata de uso público da razão ou algo que o valha. O termo é usado como arma
política de mobilização contra os adversários, e aqui qualquer adversário.
Partido dos Trabalhadores, movimentos LGBTQI+, feministas, ambientalistas,
médicos sanitaristas.. fiscais de posturas, multas de trânsito.. libearis! Tudo
e todos, rigorosamente tudo pode entrar no comunismo dotado de conteúdo vazio e neste anticomunismo rarefeito,
militante e popular contemporâneo. Comunista é o inimigo, aqui no sentido
schmittiano, que se opõe ao meu grupo. É antiesquerda e além.
Portanto, pasmem, talvez a eleição de Lula para o grupo
que vislumbra o comunismo no horizonte, tenha significado passo firme em
direção ao regime que promete a socialização dos meios de produção.
O que fazer? Seguir saneando a opinião pública é trabalho
necessário e importante, até para sairmos desse lodaçal discursivo que não
interessa ao regime democrático. É fundamental que as coisas e seus devidos
nomes se associem, aí pouco importa se para críticos ou simpatizantes ao comunismo.
É preciso instituir qualidade na discussão pública. E junto a isso, nos resta é
a boa, velha e pouco quista luta política, a ocupação de espaços
institucionais, nos veículos de opinião, etc.. Se não o fizermos, os paranoicos
que veem fantasmas comunistas até mesmo em borras de café, o farão.
* Ilustração de Maurenilso Freire publicada no Correio Braziliense em 21 de março de
2023. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2023/03/5081751-nas-entrelinhas-o-fantasma-do-comunismo-renasceu-com-o-bolsonarismo.html, acesso em 28 de março de 2023.
** Professor da área de Ciência Política no Departamento
de Ciências Sociais da UFF-Campos. É um dos coordenadores do Imagina-Sul (Grupo
de Estudos e Pesquisas do Pensamento e da Imaginação Política no Sul do Mundo).
[1] O
relatório completo da pesquisa IPEC pode ser consultado aqui: https://www.ipec-inteligencia.com.br/Repository/Files/2218/Job_22_1925-3_Avaliacao_Relatorio_de_tabelas_Imprensa.pdf. Acesso em 27 de março de 2023.
[2]
Vide publicação dos resultados, no G1: https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/03/19/ipec-44percent-acreditam-que-brasil-corre-risco-de-virar-um-pais-comunista.ghtml.
Acesso em 27 de março de 2023.
[3]
STARLING, Heloisa Murgel. O passado que não passou. In: Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. Sâo Paulo: Cia
das Letras, 2019.
[4]
Starling, Op. Cit., 2019.
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