Eleições 2024, a questão democrática e Campos **
George Gomes Coutinho***
O ano de 2024 foi aguardado com indisfarçável
ansiedade por politólogos de todo mundo. De janeiro até o presente ocorreram inúmeras
eleições em diferentes continentes e países, em níveis variados (eleições
locais, regionais, nacionais, transnacionais) e tipos (plebiscitos, eleições
majoritárias, proporcionais, por vezes tudo ao mesmo tempo).
De maneira geral o que une tantas
eleições em diferentes pontos do globo terrestre é o diagnóstico dos riscos
para a democracia representativa. Nosso século trouxe a ressurgência dos
movimentos de extrema-direita dotados da capacidade de atrair as massas. Além
da sedução, também se mostraram bons de voto e vitoriosos, derivando em desastres
como o Brexit ou gestões homicidas, vide o caso brasileiro na pandemia que ajudou
a produzir o número de 700 mil concidadãos mortos sem direito a luto.
O abalo das instituições se dá,
dentre outros vetores, pela imoderação destes líderes e de seus liderados,
todos dotados de discursos e práticas que ferem de morte um princípio basilar das
sociedades democráticas: o pluralismo, o que envolve o acordo tácito coletivo
pela preservação e respeito da diversidade realmente existente de nossas
populações. O objetivo dos extremistas é produzir uma homogeneidade artificial,
imposta pelo uso de diferentes tipos de violência, onde só é “povo” quem é
igual aos seus próprios pares. Uma sociedade das supostas “maiorias”, como vociferou
Bolsonaro em dada ocasião. Restaria nesta distopia da extrema-direita uma única
forma de professar a fé, amar, se relacionar e imaginar o mundo, tudo isso
temperado com um patriotismo fajuto que se prostra diante do primeiro tirano
estrangeiro que seja objeto de libido dessa gente.
Portanto, me unindo a outros
colegas de continentes diversos, interpreto que estas eleições de 2024 são
moduladas pelo antagonismo campo democrático versus extrema-direita. E
no campo democrático há, por óbvio, espaço para esquerda e direita, o que
explica os diferentes movimentos de frente ampla alhures. O que uniria democratas
dos dois lados do espectro político? A defesa das regras do jogo e dos
princípios morais, valorativos e civilizatórios de uma sociedade democrática.
As eleições municipais brasileiras,
que tem seu primeiro turno hoje, estão imersas, de maneira mais ou menos explícita,
nesta disputa entre autoritários de direita e democratas de ambos os lados do
espectro político. São eleições fundamentais para antevermos a correlação de
forças que irá dar o tom das nossas eleições de 2026.
Indo direto para Campos, é curioso
que neste pleito de 2024 parte da esquerda nativa tenha se fixado em outro par
de oposição, o velho e conhecido garotismo ou anti-garotismo. É um vício
interpretativo que já produziu a aliança de setores politicamente conservadores
com quadros partidários do petismo, em um vale tudo contra o “Senhor das
Moscas”, tudo temperado com contradições programáticas e ideológicas
constrangedoras. Vale dizer que este é um risco genético dos movimentos anti-garotismo.
Afinal, o garotismo é filho do embate justamente com as oligarquias que
dominaram a cidade por décadas até caírem podres na esteira dos movimentos de
redemocratização dos anos 1980. Parte do petismo local, ao eleger como grande e
eterno alvo a família Garotinho, só poderia ser arrastado pelas forças
gravitacionais mais tradicionais locais.
O meu leitor petista que aposta na
aliança de conservadores e “esquerda esclarecida” em uma luta de vida ou morte
com os Garotinho, pode estar a pensar sobre qual a saída possível. Por enquanto
sugiro que compreenda como os Garotinho se encontraram, mesmo que de forma
insuficiente, com as demandas populares concretas locais. Para além de querer
regrar os interesses desta camada da população, o caminho seria pelo diálogo
franco e respeitoso com estes ofertando mais do que os Garotinho já foram
capazes de fazer, algo ainda apenas esboçado nos melhores momentos da campanha
do professor Jefferson de Azevedo. Até porque, vale pensar qual lugar era
ocupado pelas demandas populares nos tempos de dominância política,
administrativa e simbólica das oligarquias latifundiárias, o que ajuda a
entendermos a persistência da popularidade da família Garotinho. Um projeto
progressista local digno desse nome só pode partir dos Garotinho e ir adiante,
superá-lo. Jamais ir ao ponto histórico-político anterior para buscar aliados de
ontem ou de hoje.
E Wladimir? Tudo indica que será
reeleito hoje, confirmando a tese da vantagem do incumbente cujo governo é bem
avaliado. Fez um governo aprovado por amplos setores da população, onde entra
aí o mérito político-administrativo individual do prefeito e o contraste com impopular
governo Rafael Diniz. O segundo governo provavelmente manterá a configuração
plural deste primeiro mandato, incluindo em seu staff nomes de esquerda e da
direita, desautorizando classificar Wladimir apressadamente como um “palhaço
macabro”, termo utilizado por Caetano Veloso para classificar lideranças de
extrema-direita. Contudo, nós democratas podemos sim ressaltar criticamente os
sinais de “semilealdade” ao projeto democrático por parte do prefeito reeleito
ao confraternizar com lideranças de extrema-direita, mesmo que sem muita
convicção e sob desconfiança da direita local organizada. Então prefeito, de
qual lado o senhor estará neste segundo mandato? Torço que aproveite a ocasião
para reafirmar um compromisso intransigente com a democracia.
* Imagem original publicada em: https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2024/02/6801807-crise-da-democracia-no-brasil.html, acesso em 16 de outubro de 2024.
** A primeira versão deste texto foi publicada em 06 de outubro de 2024 na versão impressa do Jornal Folha da Manhã em Campos dos Goytacazes, RJ. Também na mesma data foi publicada a primeira versão digital do ensaio no blog Opiniões, dirigido pelo jornalista Aluysio Abreu Barbosa: https://opinioes.folha1.com.br/2024/10/06/george-coutinho-a-questao-democratica-e-campos-2024/, acesso em 16 de outubro de 2024.
*** Cientista político, sociólogo e professor no Departamento de Ciências Sociais da UFF-Campos.
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