Golpe e autonomia universitária
Por Paulo Sérgio
Ribeiro
Luís Felipe Miguel é um cientista
político que dispensa apresentações. Seus escritos são hoje referência em
cursos de graduação e pós-graduação em ciências sociais. Professor e pesquisador
da Universidade de Brasília (UnB), Miguel oferece neste semestre uma disciplina
optativa – “Tópicos Especiais em Ciência Política 4: O golpe de 2016 e a
democracia”. Como o próprio disse, trata-se de um ato “corriqueiro” que não deveria causar frenesi. Contudo, um alvoroço tomou conta de sua rotina
profissional desde que jornais de grande circulação conferiram à sua disciplina
um injustificado caráter polêmico e o Ministro da Educação, Mendonça Filho, declarou
que encaminharia uma consulta aos órgãos de controle do Poder Executivo Federal
a respeito da sua “legalidade”. Eu bem poderia encurtar esse texto afirmando o
óbvio: questionar a vinculação à lei do ato de lecionar sobre o “golpe de 2016”
é tão esdrúxulo quanto questionar um seminário dedicado ao “golpe de 1964” ou aos
demais processos de ruptura institucional que dão relevo à república brasileira.
Não obstante, dimensionar o desvio ético de Mendonça Filho exige-nos mais do
que isso, considerando a sequência de violações à autonomia universitária iniciada
num governo ilegítimo do qual o ministro nada mais é que uma caricatura.
A condução coercitiva do reitor, da
vice-reitora e demais funcionários da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) em mais uma ação espetaculosa da Polícia Federal (PF), intitulada
acintosamente “Esperança Equilibrista”;
o suicídio de Luis Carlos Cancellier, então reitor da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC), que sofrera uma prisão arbitrária da PF na operação “Ouvidos
Moucos”; a intimação do médico Elisaldo Carlini, professor da Universidade
Federal de São Paulo (UNIFESP), especializado em pesquisas sobre entorpecentes,
para depor na polícia de São Paulo em inquérito no qual é acusado, pasmem, de “apologia
ao crime” são sintomas da perda de centralidade da questão democrática. A
autonomia universitária é uma orientação normativa ausente de sentido quando um
regime democrático se fragiliza. Ora, assim como a autoridade política se
exerce sob a delegação temporária do governados, estes mantêm-se soberanos se,
e somente se, forem capazes de confrontar toda e qualquer autoridade que, incapaz
de justificar racionalmente os seus atos, recorra à força e à submissão.
A censura às ciências sinaliza a
percepção da universidade como um perigo subversivo ao regime de força
instalado no país, privando-nos daquilo que é o sal da terra do mundo
intelectual: o dissenso. Não que a universidade fosse imune ao autoritarismo
como um modus vivendi dos brasileiros quando
ainda vivíamos sob a ilusão de que a redemocratização passaria dos 30... A
estrutura organizacional da universidade confirma a olhos vistos como a demarcação
de áreas de conhecimento pressupõe a naturalização da hierarquia social dos seus
objetos, uma espécie de luta de classes sublimada no tocante à distribuição de
recursos para o trabalho científico. Contudo, a universidade talvez seja a
única instituição na modernidade cuja razão de ser encontra-se na vitalidade de sua crítica
interna. Herdeira do ideário iluminista, as universidades são o lugar em que teorias
aparentemente sólidas se pulverizam à medida que um novo patamar da “maioridade”
da qual nos falava Kant é alcançado, isto é, quando se renova a capacidade dos
indivíduos pensarem por si mesmos, sem deferência a quaisquer argumentos de
autoridade, redefinindo assim as fronteiras do conhecimento.
A docência e a pesquisa científicas
– seguindo uma lógica que independe da tutela do Estado e da religião – relacionam-se
com as práticas sociais extramuros da universidade, devolvendo um sentido à
interrogação que tais práticas nos suscitam. Nada mais salutar, portanto, do
que uma disciplina que promova a reflexão criteriosa sobre um fato que afeta a todos os brasileiros e os vincula ao mundo: a diluição do pacto social ratificado na
Constituição Federal de 1988 ou, dito com todas as letras, o golpe parlamentar
de 2016. Daria muito gosto estar matriculado numa disciplina como a ministrada
por Luís Felipe Miguel. Seria instigante acompanhar o passo a passo desse
debate na UnB o qual, talvez, tenha por pano de fundo um acerto de contas com certas expectativas no interior da ciência política que relativizaram a coexistência problemática da democracia e do capitalismo na "Nova República", sacrificando, pois, o nosso intelecto com a crença resignada de que “se as instituições funcionam, está tudo bem”.
Sim, elas “funcionam” e não, não
estamos nada bem.
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