Greta
Thunberg e a consciência social do nosso tempo
Paulo
Sérgio Ribeiro
Iniciando
os trabalhos em 2020, penso ser oportuno falarmos de Greta Thunberg, particularmente
das tentativas de desqualificar sua intervenção na agenda ambiental.
Desde
que recusou-se a frequentar a escola às sextas-feiras na longínqua Estocolmo
para sentar-se diante do Parlamento à espera de medidas concretas contra o
aquecimento global, tal iniciativa ganhou simpatia e adesão de outros jovens
suecos e, doravante, repercussão em todas as latitudes do globo. De um protesto
inusitado e inicialmente solitário, tomou vulto uma ação coletiva que conferiu
a uma ainda adolescente – Greta completou 17 anos em janeiro deste ano - um
assento em encontros relevantes tais como a Conferência do Clima da ONU e o
Fórum Econômico de Davos e, não menos, notoriedade para uma indicação ao Nobel
da Paz em 2019.
Contudo,
o eixo de sua vida pública, por revelar os desdobramentos imprevisíveis e
manifestamente catastróficos da relação entre sociedade e natureza que
negligenciamos sob os princípios do desempenho, no plano individual, e do
produtivismo, no plano societário, tem causado reações agressivas da
extrema-direita que, atualmente, ganha proeminência no mainstream
político da Europa e alhures.
Há
duas razões, congruentes ente si, para o incômodo que Greta provoca em líderes
ultraconservadores – Donald Trump, entre outros -, bem como para a perplexidade
que seu ativismo desperta em cidadãos comuns: a) a possibilidade de delimitar
um lugar não subalterno ao jovem na luta política; e b) o mal-estar que a
questão ambiental suscita em nossa consciência diante da perspectiva de futuro
que cultivamos no Ocidente.
No
tocante ao item “a”, podemos dizer que, ao seu modo e circunstância, Greta filia-se
a uma corrente de pensamento que encontra na rebeldia de jovens de classe média
e alta sua expressão política e na revolução cultural experimentada nos anos
1950 e 1960 sua primeira feição paradigmática. Naquele cenário de época,
rebelar-se contra as normas de conduta, longe de ser uma frivolidade juvenil,
confirmava um sintoma da crise derradeira dos valores tradicionais e, tão logo,
assumiria ares de ameaça real a uma ordem sócio-política cujos fundamentos
jamais teriam na lealdade a gerações passadas um critério de legitimação.
Ora,
alguém indagaria, então Greta Thunberg seria uma versão rediviva dos hippies
ou beatniks? Seguramente, não. Todavia, como eles, Greta escancara uma
obviedade: pôr em dúvida crenças arraigadas sobre as formas de agir no mundo
será sempre um risco intolerável em dada estrutura de poder, pois esta assim se
institui e perdura no tempo quando uma visão de mundo orienta os atos humanos sem a consciência dos seus agentes.
Em
quaisquer épocas, é plausível supor, indivíduos ou grupos considerados “desviantes”
são, no melhor dos casos, punidos socialmente com toda sorte de estigmatização.
Aos olhos vigilantes de quem fala (ou é feito de ventríloquo...) em nome do status quo, a solidariedade social
dependeria, pois, do controle estrito de quem “ouse” pensar para além do
consentido.
Ora,
por que imputar à Greta a alcunha de “pirralha”, se ela prova sua maioridade ao
valer-se do próprio intelecto para julgar um fato sem concessões à autoridade
do instituído?
Qual
fato? A destruição irreversível do meio ambiente donde a vida humana retira sua
condição de existência. Aqui, tocamos no item “b” que elencamos. Se, de um
lado, temos uma perspectiva de futuro que toca o âmago da Modernidade, por outro, deparamos
com a necessidade de matizá-la diante das contradições do capitalismo que se
avolumam no tempo presente.
A
perspectiva de futuro à qual aludimos é, sobremaneira, uma perspectiva utópica.
Foi Jürgen Habermas quem magistralmente delineou a indistinção entre tempo
histórico e utopia como traço exemplar da modernidade[1].
Para o filósofo alemão, o que nos singulariza como homens e mulheres
modernos(as) é sermos partícipes de uma cultura que destronou a ideia cristã de
um novo tempo como a “eternidade vindoura” para substituí-la por um horizonte
de valores que encontra em nossa própria época uma configuração do futuro.
Noutros
termos, a atualidade condensaria expectativas de mudança que não mais extraem
de outras épocas as orientações normativas para prognósticos sobre problemas mundiais.
“Abandonada a si mesma”, diz Habermas, a modernidade implica que enfrentar
dilemas contemporâneos torna-se uma verdadeira “fuga para a frente” na qual eventuais virtualidades
de uma tradição só ganhariam pertinência se justificadas por formas de pensar
em permanente revisão. Esboçar projetos e programas, pois, traduzir-se-ia em
disputar uma ideia de futuro.
Não
obstante, as “energias utópicas” - que, há menos de um século, ainda comprometiam
a luta política com a ideia de que poderíamos mobilizar recursos do próprio
processo histórico no e pelo qual se vislumbrava estabelecer uma direção
consciente - parecem ter chegado ao fim.
Tal
sensação de esvaziamento da modernidade como experiência de significado também
é debatida por Paulo Arantes. Em “O novo tempo do mundo”[2], o
filósofo brasileiro desnuda o cenário da falência da sociedade do trabalho ao
dimensionar a insegurança (não apenas econômica, mas, sobretudo, ontológica)
que acomete populações inteiras, uma vez que estão condenadas a um estado de
espera justamente porque não há mais uma grande narrativa histórica que sirva
de lastro a uma grande expectativa. No lugar desta, vigora um encurtamento do
futuro como promessa realizável. Nas palavras de Arantes:
Não basta anunciar
que o futuro não é mais o mesmo, que ele perdeu seu caráter de evidência
progressista. Foi-se o horizonte do não experimentado. Com isso o próprio campo
de ação vai se encolhendo[3].
Ora,
a sociedade de risco produzida pelo tempo intemporal da acumulação capitalista
que coabita com uma espécie de tempo morto, isto é, o horizonte de expectativas
frustradas de quem está coagido estruturalmente a esperar por nada ou, se
muito, por um ganha-pão é, também, uma época de insurgência, pois, se o futuro
figura como uma zona de incerteza, o impulso para a superação não será
hipotecado para quando já estivermos mortos.
Parafraseando
Arantes, Greta Thunberg e seus pares aceitaram o desafio de reencontrar o “futuro
perdido” na justa medida em que a crise ecológica não os convida a adiar a
tarefa. Apocalípticos? Não, apenas realistas.
[1] HABERMAS, Jürgen. A nova
intransparência: a crise do Estado de bem-estar social e o esgotamento das
energias utópicas. Novos Estudos CEBRAP,
nº 18, set. 1987, pp. 103-114.
[2] ARANTES,
Paulo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da
emergência. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.
[3] Op. cit., p.96.
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