terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Greta Thunberg e a consciência social do nosso tempo


Greta Thunberg e a consciência social do nosso tempo

Paulo Sérgio Ribeiro

Iniciando os trabalhos em 2020, penso ser oportuno falarmos de Greta Thunberg, particularmente das tentativas de desqualificar sua intervenção na agenda ambiental.

Desde que recusou-se a frequentar a escola às sextas-feiras na longínqua Estocolmo para sentar-se diante do Parlamento à espera de medidas concretas contra o aquecimento global, tal iniciativa ganhou simpatia e adesão de outros jovens suecos e, doravante, repercussão em todas as latitudes do globo. De um protesto inusitado e inicialmente solitário, tomou vulto uma ação coletiva que conferiu a uma ainda adolescente – Greta completou 17 anos em janeiro deste ano - um assento em encontros relevantes tais como a Conferência do Clima da ONU e o Fórum Econômico de Davos e, não menos, notoriedade para uma indicação ao Nobel da Paz em 2019.

Contudo, o eixo de sua vida pública, por revelar os desdobramentos imprevisíveis e manifestamente catastróficos da relação entre sociedade e natureza que negligenciamos sob os princípios do desempenho, no plano individual, e do produtivismo, no plano societário, tem causado reações agressivas da extrema-direita que, atualmente, ganha proeminência no mainstream político da Europa e alhures.

Há duas razões, congruentes ente si, para o incômodo que Greta provoca em líderes ultraconservadores – Donald Trump, entre outros -, bem como para a perplexidade que seu ativismo desperta em cidadãos comuns: a) a possibilidade de delimitar um lugar não subalterno ao jovem na luta política; e b) o mal-estar que a questão ambiental suscita em nossa consciência diante da perspectiva de futuro que cultivamos no Ocidente.

No tocante ao item “a”, podemos dizer que, ao seu modo e circunstância, Greta filia-se a uma corrente de pensamento que encontra na rebeldia de jovens de classe média e alta sua expressão política e na revolução cultural experimentada nos anos 1950 e 1960 sua primeira feição paradigmática. Naquele cenário de época, rebelar-se contra as normas de conduta, longe de ser uma frivolidade juvenil, confirmava um sintoma da crise derradeira dos valores tradicionais e, tão logo, assumiria ares de ameaça real a uma ordem sócio-política cujos fundamentos jamais teriam na lealdade a gerações passadas um critério de legitimação.

Ora, alguém indagaria, então Greta Thunberg seria uma versão rediviva dos hippies ou beatniks? Seguramente, não. Todavia, como eles, Greta escancara uma obviedade: pôr em dúvida crenças arraigadas sobre as formas de agir no mundo será sempre um risco intolerável em dada estrutura de poder, pois esta assim se institui e perdura no tempo quando uma visão de mundo orienta os atos humanos sem a consciência dos seus agentes.

Em quaisquer épocas, é plausível supor, indivíduos ou grupos considerados “desviantes” são, no melhor dos casos, punidos socialmente com toda sorte de estigmatização. Aos olhos vigilantes de quem fala (ou é feito de ventríloquo...) em nome do status quo, a solidariedade social dependeria, pois, do controle estrito de quem “ouse” pensar para além do consentido.

Ora, por que imputar à Greta a alcunha de “pirralha”, se ela prova sua maioridade ao valer-se do próprio intelecto para julgar um fato sem concessões à autoridade do instituído?

Qual fato? A destruição irreversível do meio ambiente donde a vida humana retira sua condição de existência. Aqui, tocamos no item “b” que elencamos. Se, de um lado, temos uma perspectiva de futuro que toca o âmago da Modernidade, por outro, deparamos com a necessidade de matizá-la diante das contradições do capitalismo que se avolumam no tempo presente.

A perspectiva de futuro à qual aludimos é, sobremaneira, uma perspectiva utópica. Foi Jürgen Habermas quem magistralmente delineou a indistinção entre tempo histórico e utopia como traço exemplar da modernidade[1]. Para o filósofo alemão, o que nos singulariza como homens e mulheres modernos(as) é sermos partícipes de uma cultura que destronou a ideia cristã de um novo tempo como a “eternidade vindoura” para substituí-la por um horizonte de valores que encontra em nossa própria época uma configuração do futuro.

Noutros termos, a atualidade condensaria expectativas de mudança que não mais extraem de outras épocas as orientações normativas para prognósticos sobre problemas mundiais. “Abandonada a si mesma”, diz Habermas, a modernidade implica que enfrentar dilemas contemporâneos torna-se uma verdadeira “fuga para a frente” na qual eventuais virtualidades de uma tradição só ganhariam pertinência se justificadas por formas de pensar em permanente revisão. Esboçar projetos e programas, pois, traduzir-se-ia em disputar uma ideia de futuro.

Não obstante, as “energias utópicas” - que, há menos de um século, ainda comprometiam a luta política com a ideia de que poderíamos mobilizar recursos do próprio processo histórico no e pelo qual se vislumbrava estabelecer uma direção consciente - parecem ter chegado ao fim.

Tal sensação de esvaziamento da modernidade como experiência de significado também é debatida por Paulo Arantes. Em “O novo tempo do mundo”[2], o filósofo brasileiro desnuda o cenário da falência da sociedade do trabalho ao dimensionar a insegurança (não apenas econômica, mas, sobretudo, ontológica) que acomete populações inteiras, uma vez que estão condenadas a um estado de espera justamente porque não há mais uma grande narrativa histórica que sirva de lastro a uma grande expectativa. No lugar desta, vigora um encurtamento do futuro como promessa realizável. Nas palavras de Arantes:


Não basta anunciar que o futuro não é mais o mesmo, que ele perdeu seu caráter de evidência progressista. Foi-se o horizonte do não experimentado. Com isso o próprio campo de ação vai se encolhendo[3].


Ora, a sociedade de risco produzida pelo tempo intemporal da acumulação capitalista que coabita com uma espécie de tempo morto, isto é, o horizonte de expectativas frustradas de quem está coagido estruturalmente a esperar por nada ou, se muito, por um ganha-pão é, também, uma época de insurgência, pois, se o futuro figura como uma zona de incerteza, o impulso para a superação não será hipotecado para quando já estivermos mortos.

Parafraseando Arantes, Greta Thunberg e seus pares aceitaram o desafio de reencontrar o “futuro perdido” na justa medida em que a crise ecológica não os convida a adiar a tarefa. Apocalípticos? Não, apenas realistas.


[1] HABERMAS, Jürgen. A nova intransparência: a crise do Estado de bem-estar social e o esgotamento das energias utópicas. Novos Estudos CEBRAP, nº 18, set. 1987, pp. 103-114.
[2] ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.
[3] Op. cit., p.96.

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