Ser brasileiro, dentre outras coisas,
significa viver com várias questões entaladas na garganta. Você se depara com o
absurdo, mas não tem tempo nem meios para confrontá-lo, então ele fica lá até
ser esquecido [engolido] ou vociferado [vomitado] ao primeiro estímulo. Para
aqueles que escrevem, às vezes, sobra a oportunidade de transpor para as letras
aquilo que ficou travado na garganta da alma.
Uma das dificuldades dos antropólogos é que
eles, muitas vezes, só se sentem confortáveis para abordar temas que dominam
através de pesquisas de longa duração. Desse modo, como já destacou Tim Ingold,
os antropólogos deixam para aventureiros da opinião a abordagem de inúmeros
temas que encontrariam nas bases humanistas da Antropologia caminhos
alvissareiros. Como nunca pesquisei sobre motoboys, sinto-me pouco confortável
para falar sobre o assunto, mas, como já somei mais de 20 anos andando de moto
e várias dezenas de milhares de quilômetros que atestam minha sorte, acredito
que posso tecer comentários a respeito de algumas das atividades exercidas
sobre duas rodas.
Sou um entusiasta das motocicletas.
Acompanho os lançamentos e conheço detalhes de motos nas quais nunca tocarei e
que estão completamente fora do radar da minha conta bancária. Todavia, é um
prazer saber das novidades da BMW, do que a Honda vem projetando ou dos
relançamentos programados para o segmento Trail da Yamaha. E como sujeito
humano que sou, fico aborrecido a cada componente eletrônico adotado pela
Harley-Davidson – isso para não falar nos fios de cabelo branco que apareceram
quando fiquei sabendo do modelo elétrico da marca. Em meio a tudo isso, vejo-me
morrendo de inveja de gente como o Leandro Mello e a Karina Simões, que
conseguiram unir a vida prática à paixão e trabalham testando motocicletas e
falando de suas impressões. Nem todos os amantes das motocicletas tiveram tanta
sorte.
Existe uma falsa dualidade que é reiterada
cotidianamente quando surge o tema das motocicletas: Motociclista x Motoqueiro.
Nesse sentido, argumentos apressados surgem para separar aqueles que andam de
moto em dois segmentos. De um lado estão os bons motociclistas, respeitáveis,
ordeiros, seguidores fiéis das leis de trânsito e pessoas “de bem”. Do outro,
estão os motoqueiros, que são apontados como aqueles que desobedecem às leis de
trânsito, que correm riscos desnecessários e que fazem muito barulho com suas
motocicletas – que normalmente não são admiráveis.
É intrigante que justamente os mais pobres
sejam sempre associados à alcunha de “motoqueiros”. Em um país onde o
preconceito de classe se destaca cotidianamente, são os mais pobres, mais
jovens e com motos menores que sofrem com o estereótipo de “motoqueiros”. E não
falo por “achismo”, mas sim por experiência própria. Sempre fiz uso de
motocicletas para o deslocamento diário. Durante o período universitário,
quando andava em uma charmosa Honda XL-250R com quase 20 anos de idade, eu era
parado em blitz pelo menos duas ou três vezes por semana enquanto percorria os
trechos entre a Pecuária e a Uenf. Depois que comprei uma moto de alta
cilindrada, aos trinta anos, não apenas passei a contar nos dedos a quantidade
de vezes em que fui abordado pela polícia – apesar de ter multiplicado
consideravelmente as distâncias percorridas - como também notei maior polidez nas
abordagens.
A figura de uma pessoa com mais de 30 anos
– branca – em uma motocicleta cara e com acessórios de segurança adequados costuma
se enquadrar na categoria “motociclista”. Todavia, não é difícil encontrar
exemplos de personagens que preenchem todos os quesitos mencionados, mas que
extrapolam nos limites de velocidade – 299km/h -, ou outros que não pagam os
impostos do veículo ou que circulam sem habilitação na certeza de que estão
seguros por andar em grupo na estrada. A jaqueta não faz o motociclista – a
motocicleta ou a barba hipster tampouco.
As pessoas que utilizam motocicletas para
realizar entregas podem até ser possuídas por essa paixão ordinária despertada
pelos veículos de duas rodas, mas nem sempre é este o caso. É comum que a
motocicleta, nesses casos, surja apenas como um instrumento de trabalho. Nesse
sentido, há uma separação clara entre pessoas que andam em motocicletas apenas
por paixão e aquelas que andam apenas por necessidade profissional. Entre os
dois extremos, claro, existe um universo de possibilidades. O que quero
ressaltar, todavia, é que há uma enorme heterogeneidade no universo dos
motociclistas, algo que perpassa não apenas os diferentes modelos, mas que
também tem relação clara com os propósitos que impulsionam a relação entre pessoas
e máquinas.
Do mesmo jeito que podemos argumentar que
os motoqueiros-motociclistas são divididos em inúmeros aspectos, podemos dizer
que há uma questão que os une. Todos, independente da cilindrada, do modelo ou
do propósito, quando sobem em uma motocicleta, assumem o risco de um acidente –
seja ele decorrente da falha daquele que conduz a moto ou de qualquer outro
ator do trânsito. Desse modo, enquanto a maioria dos pequenos acidentes de
carro costumam gerar apenas prejuízos para os veículos, acidentes de moto, na
maioria das vezes, por mais simples que sejam, implicam em sangue. Basta cair
parado de uma moto para ralar as mãos ou o cotovelo, o que significa que
acidentes em movimento frequentemente ocasionam fraturas, cortes profundos ou
mesmo a morte. Andar de moto é expor-se ao risco. E não importa se você anda
por paixão ou por necessidade profissional, o risco está presente para todos –
embora os melhores equipamentos de segurança estejam longe do alcance daqueles
que encaram jornadas de 8 a 12 horas para entregar comida por aplicativo.
Uma crítica frequente às motos e aos seus
condutores diz respeito ao barulho. Escapamentos abertos ou alterados rompem o
silêncio das avenidas e atingem o interior dos lares. A questão, por vezes,
assume o tom legalista, demandando fiscalização e penalização para os
“infratores”. Os diferentes atores da segurança pública indicam a dificuldade
de impor a fiscalização – muitas vezes em virtude da escassez de
decibelímetros, sem os quais é difícil argumentar que um escapamento emite
ruído além do permitido. Associações de motoboys, por sua vez, argumentam que o
som alto dos escapamentos surge como um instrumento de segurança para os
motoboys, que têm sua presença percebida pelos motoristas à distância, mesmo
quando estes estão encerrados em seus veículos com janelas fechadas e som
ligado. O barulho do escapamento, nesse sentido, serve de alerta para quando os
motoboys se aproximam e passam pelos “pontos cegos” dos motoristas de
automóvel. O debate costuma ser acalorado e opõe o direito ao silêncio a um
dispositivo que aumenta a segurança de um grupo vulnerável. Não gosto dos
barulhos excessivos, mas, nesse debate, inclino-me a ficar do lado de quem pode
perder uma perna e não daqueles que precisam aumentar o volume da TV.
Com a pandemia do coronavírus,
intensificaram-se os serviços de entrega de comida. Com as ruas vazias em
virtude das medidas de isolamento social, os motoboys passaram a se destacar
ainda mais: tiveram seu número aumentado consideravelmente ao mesmo tempo em
que passaram a circular como maioria em ruas e avenidas com tráfego reduzido.
Não demorou para que os escapamentos surgissem como alvo de críticas. Sobretudo
por moradores de condomínios, que passaram a conviver com o entra e sai dos
motoboys em seus bairros particulares.
Até aí, tudo seguia o ritmo de sempre.
Acontece que, há poucas semanas, passou a circular nas redes sociais uma
mensagem solicitando que as pessoas evitassem pedir comida de restaurantes ou
lanchonetes que contratassem, para entregar seus produtos, motoboys que usam
motocicletas com escapamento “barulhento”. A cultura do cancelamento chegou aos
motoboys. Justo eles, que estão, desde o princípio da pandemia, expondo-se
cotidianamente para trabalhar, levando alimentos para aqueles que podem pagar
para ficar em casa. Não basta se expor para servir, é necessário, por essa
lógica, que se exponha em silêncio – sem perturbar a paz daqueles que estão em
casa. E não importa que o “barulho” das motocicletas seja um instrumento de
proteção no trânsito para aqueles que já estão se expondo ao vírus. A falta de
capacidade para colocar-se no lugar do próximo é o que se revela na referida
campanha virtual travestida de bem intencionada. No país das desigualdades,
enquanto uns correm para entregar a comida, outros reclamam que não estão
recebendo em silêncio. Trata-se, pois, de mais um problema enfrentado pelos
entregadores de aplicativo, que em Julho prometem realizar uma greve nacional
por melhores condições de trabalho. Como destaca a campanha da Honda: “O País
não parou. Está andando sobre 2 rodas. #valorizeOentregador”.
Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.
* Publicado no site do Jornal Folha da Manhã em 26/06/2020. http://www.folha1.com.br/_conteudo/2020/06/artigos/1263028-carlos-valpassos-os-motoboys-na-pandemia.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário