Não vejo saída pela Porta dos Fundos
Esther de Souza Alferino*
Sempre que participo de alguma discussão, uma pergunta aparece: como você acha que nós, pessoas de esquerda, podemos nos aproximar dos evangélicos?
Mas antes de chegar a isso, eu preciso dizer que não sou uma pessoa dada a programas de humor, de modo que preciso começar esse emaranhado de ideias, que espero que faça algum sentido, dizendo que não dou risada com basicamente nada do que o Porta dos Fundos faz, assim como não dou risada do Zorra, dos humoristas youtubers ou dos filmes do Adam Sandler. Meu senso de humor está mais para “Chaves” e “Um maluco no pedaço”. Duvidoso? Provavelmente, mas não estou exatamente preocupada em apurar ou refinar meu gosto pessoal pelas comédias. Por minha iniciativa, jamais assistirei a qualquer especial de natal de humor, seja com ou sem pretensões críticas.
Eu até entendo que na carência de referências em que vivemos, esse movimento em busca de possíveis representantes se acirre, mas também acredito que devemos, enquanto pessoas que se pretendem de esquerda e progressistas, sermos menos emocionados na ânsia de encontrar nossa voz ecoando nos espaços. O “Porta dos Fundos” não é a esquerda (e aqui sem levar em conta as mil complexidades existentes dentro desse termo-balaio), mas muitas das esquerdas (contidas no termo-balaio) se apressam em etiquetá-lo como vozes dissonantes e efusivas em meio a tanto obscurantismo. Eu gostaria de dizer a todos nós: vamos com calma.
Ali naquele elenco existe uma grande diversidade de pessoas e pensamentos e fazer algumas esquetes que ironizam o que existe de mais evidente sobre questões sociais não torna o humorístico necessariamente um porta-voz dos movimentos sociais; inclusive, daquele povo todo ali, quem teve alguma formação de base em movimentos sociais? Quem tem alguma formação política desenvolvida fora do twitter? Ali tem global, tem liberal, tem o pé esquerdo do sapatênis com sobrenome que é nome de rua, tem gente da Record. De onde tiramos que essa gente representa a esquerda?
Dito tudo isso, vou reafirmar o quanto acho sem graça uma reunião de obviedades ditas como grandes descobertas, grandes sacadas, e, claro, polêmicas.
Porque sem polêmica não há audiência que se sustente e até quem se pretende desconstruído não sobrevive sem uma. Ou várias.
Fazer piada da religião alheia é uma polêmica antiga, manjada, uma obviedade, como muita coisa que aquela galera faz, mas ainda assim rende. Com ou sem qualidade crítica – e aqui não farei nenhum julgamento de valor de tal qualidade, simplesmente porque seria incapaz de fazer. Bate recorde de audiência, pode ter boicote puxado pela igreja, não adianta, nem que seja para falar mal, todo mundo quer ver.
Eu não posso e não vou dizer a ninguém do que elas devem rir, do que elas devem fazer piada, qual deve ser o tema dos programas a que elas assistem ou produzem. Mas quando me fazem aquela pergunta de sempre, por tudo que vejo no campo desde que me dedico a estudar os pentecostais, eu só posso dizer que ridicularizar alguém é uma péssima abordagem.
Recentemente, Igor Santos[1] escreveu sobre como a “lacração” com a imagem de Jesus afasta os trabalhadores e dividiu opiniões. Guardo diversas divergências com o texto de Santos, mas também tendo a concordar com muitas questões levantadas por ele. Perdemos eleições por muitos motivos, mas também porque estamos perdendo (e perdendo feio) na disputa de narrativa e na disputa pelas consciências dos trabalhadores brasileiros. Descolamo-nos da realidade das pessoas, alienamo-nos em nossas bolhas pseudo-eruditas em que damos risada de humor medíocre enquanto chamamos pessoas de alienadas. Dizemos que pessoas sofreram lavagem cerebral e são massa de manobra, desconsiderando que os sujeitos são agentes da própria história, são sujeitos com anseios, ambições, e que há quem lhes ofereça o repertório discursivo que negamos quando os infantilizamos e os menosprezamos no que há de mais humano neles: seus desejos.
O crente, aquele crente pobre, que entrou no mercado de consumo na Era Lula, que hoje amarga a volta à pobreza, aquele que dá o dízimo do quase nada que tem, e que por isso é chamado de manipulado por quem paga caro em pedras dizendo que são cristais energéticos; porque, sim, no fantástico mundo da lacração, as pessoas gostam da espiritualidade, não podem ver um “Prem Baba” abusador, que gastam muito dinheiro para ver tudo que ele faz; aquele crente não vai ouvir nenhuma voz arrogante e cheia de tutela, descolada da realidade prática.
Condeno todo e qualquer tipo de censura ou tentativa de silenciamento do grupo de humor aqui mencionado. Não se trata de querer calar a voz deles. Para mim, trata-se de voltar a ser capaz de dialogar com quem tem mais com o que se importar do que gênero neutro na gramática.
* Cientista Social, Mestra em Sociologia Política.
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