domingo, 21 de fevereiro de 2021

O servidor público não é seu inimigo


O servidor público não é seu inimigo

 

Paulo Sérgio Ribeiro & Renata Saul*

 

Vivemos em tempos de pandemia da Covid-19, acumulando perdas materiais (muitos perderam parte do salário; outros tantos, emprego), afetivas (quantas pessoas não pranteiam familiares, amigos?) e, por vezes, temos perdido a força para retomar uma postura cidadã diante dos absurdos que assolam nosso país desde a pandemia, que não é um problema exclusivo do Brasil, vide sua escala mundial.

 

Tivemos toda sorte - ou azar, pelo infeliz trocadilho - de descrédito sobre a gravidade da pandemia, a contar o volume de desinformações chancelado por autoridades públicas e formadores de opinião que, na mídia corporativa, mantêm-se auxiliares do negacionismo cientítico. No Brasil de Bolsonaro, a ciência e o conhecimento têm sido alvo de ataques e, a despeito do posicionamento de autoridades na comunidade científica - biólogos, infectologistas, cientistas sociais etc. -, nossos governantes (com honrosas exceções) resolveram subestimar a crise sanitária e isto nos custou e tem custado muito.

 

Efetivamente, não temos um plano nacional e tampouco articulação dos entes federativos – com exceção do consórcio experimentado na região Nordeste[1] - para atravessar esta conjuntura com a necessária racionalidade.

 

Não há plano para a imunização em massa, não há plano para a retomada econômica nem ações e programas consequentes no âmbito da justiça redistributiva para as categorias profissionais essenciais e/ou grupos vulneráveis durante e após a pandemia.

 

Confessamos que, a princípio, o título deste texto seria “O professor não é seu inimigo”, uma vez que a co-autora é docente, focalizando a situação dos(as) professores(as), sejam das escolas particulares ou públicas, posto serem eles(as) sujeitos(as) à críticas, quase sempre desconexas da realidade intramuros das escolas brasileiras, por estarem trabalhando em casa, com acesso à Internet ou através do envio de material didático, tal como ocorre na maioria das escolas públicas.

 

Contudo, seria omisso de nossa parte desconsiderar que somos servidores públicos de esferas de governo distintas – a co-autora, servidora pública municipal; o co-autor, servidor público federal – e, por conseguinte, que o trabalho remoto desempenhado por ambos responde a desafios próprios à sua circunstância. Se o assim o é, o que nos aproxima na tempestade que turva a visão de uma margem segura para as nossas desiguais embarcações?  

 

Talvez, o que nos vincule seja um esforço de Sísifo[2] para navegar contra a ideologia neoliberal que cimenta uma perspectiva do serviço público própria ao individualismo possessivo. Individualismo possessivo: tomar uma comunidade escolar como objeto exclusivo de sua fruição enquanto indivíduo que se quer desimpedido em sua ação no mundo, isto é, sem que os vínculos sociais daquela comunidade escolar com a realidade extramuros interfiram nos seus interesses imediatos e nas exigências caprichosas de sua idiossincrática personalidade.

 

O recorte de classe das “famílias” que exercem pressão pelo retorno às aulas presenciais chega a ser caricato. Algumas delas, que há não muito tempo se mostravam simpáticas ou até entusiastas do “home schooling”, agora clamam pela função social da educação escolar, a despeito dos evidentes riscos de reunir crianças e jovens em uma pandemia sem controle, alegando supostos prejuízos duradouros ao seu desenvolvimento humano.

 

Excelsa realização do nosso capitalismo periférico: reduzir a questão do desenvolvimento às afeições espontâneas de pais, mães e responsáveis cujo “tempo livre” – um recurso desigualmente distribuído entre as classes sociais – não pode ser violado, deixando em suspenso uma visão de sociedade na qual a proteção da infância e da juventude não seja tragada pelo “estado de natureza” desvelado pela pandemia: todos, impulsionados pelo seu desejo irrefreável, veem-se com direito a tudo, sem quaisquer garantias de que a vida alheia – a começar pela dos(as) professores(as) e demais educadores(as) - seja poupada nessa dinâmica fratricida.   


Questiona-se por que o retorno às aulas presenciais não se dá, se mesmo sem vacinação, os profissionais da saúde e os que estão em atividades de apoio trabalharam sem vacina. Os policiais trabalham, ainda que sem vacina. O comércio funciona, ainda que sem vacina e por aí vai. Toda sorte de insultos, principalmente voltados ao(à) professor(a) da escola pública, é proferida. Mas quando evocaram o argumento de tantos outros servidores permanecerem trabalhando desde o inicio da pandemia e sem nem ao menos um cronograma de vacinação, começamos a atentar para outra perspectiva: como a lógica da exclusão (e não do exercício da cidadania plena e do Estado de bem estar social) se alojou entre nós. Não lutamos pela ampliação de direitos, mas por retirá-los das categorias profissionais que conquistaram, parcialmente, um mínimo de dignidade. Não se trata de privilégios, mas sim de reivindicar condições de segurança para o exercício de sua função pública.

 

Quando pensamos no risco que seria para a co-autora que vos escreve e para todos que a cercam estarem em uma escola não imunizada e alguém trouxe a questão de que os policiais continuam trabalhando e não imunizados também, o primeiro pensamento que nos ocorreu é o de quão cruel é a situação daquele servidor público.

 

O Governo Bolsonaro, na medida em que já tinha sido anunciada a existência de um conjunto de vacinas em fase final de testagem, deveria ter elaborado o plano de vacinação de toda população, mas, ao invés disso, vimos o presidente e demais autoridades públicas se valerem do negacionismo científico, da xenofobia contra os chineses e de bravatas calhordas contra a população. Chamamos de heróis nossos profissionais da saúde, mas não confirmamos uma inflexão no investimento alocado no Sistema Único de Saúde (SUS). Dissemos que os policiais estão em risco, mas não ponderamos a vacinação destes em nossas preocupações diárias. Comparamos shoppings lotados a escolas, mas não aceitamos o fechamento do comércio, porque a economia irá “ruir” e, por tabela, não admitimos que ações sociais (Bolsa Família, auxílio emergencial) desconcentrem renda e poupem vidas.

 

E, doravante, com frases de efeito vazias, sem fundamento crítico algum, vemos o Estado ser dilapidado porque estamos com raiva das categorias que compõem o “chão de fábrica” do serviço público, mas não percebemos o quanto de cidadania nos é privada a cada dia com a vigência da Emenda Constituição nº 95, que congela/sucateia investimentos públicos em educação, saúde, segurança e demais pastas que viabilizam a coesão social em um território no qual a nação perde substância ao converter-se num mero amontoado de gente.  

 

E daí, não é mesmo? A saúde mental do meu rebento e o estilo de vida que pais e mães de classe média nele projetam em primeiro lugar! Com assombro, assistimos à entronização do “indivíduo” na modernidade tardia, atomizado socialmente, incapaz, pois, de mediações mais realistas entre seus interesses ideais e as condições materiais dos cidadãos de cujos serviços prestados depende.

 

O deserto do real é aqui e agora e a nós, servidores(as) públicos(as), cabe suportar o peso do mundo esculpido com as ruínas do mundo pós-guerra e, não menos, quem reclama um Estado para chamar de seu desprovido de um senso de solidariedade genérica para com aqueles que habitam além do microcosmo de sua propriedade privada.


* Socióloga, Mestra em Cognição e Linguagem e Educadora.


[1] CONSÓRCIO NORDESTE. Ações de combate à pandemia. Disponível (aqui). Acesso em 21/02/2021.

[2] Sísifo: personagem da mitologia grega condenado a empurrar uma grande rocha para o topo de uma montanha e que, ao fazê-lo, testemunhava a inutilidade do seu esforço com a rocha descendo morro abaixo, levando a empurrá-la novamente em um ciclo sem fim.

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