É possível conversar com um reacionário?
Paulo
Sérgio Ribeiro
A indagação inspira-se, por óbvio, no livro da
filósofa Márcia Tiburi: Como conversar
com um fascista?[1]
Tal como Tiburi, bebemos uma certa dose de ironia na resolução deste
enigma sob o risco iminente de sermos por ele engolidos em caso de insucesso.
Sendo assim, uma maneira de não nos perdermos em meio às sombras do Brasil
pós-golpe é selecionar bem as categorias de análise. Opto, pois, pelo termo
“reacionário” ao invés dos já consabidos e populares “bolsonarista”,
“bolsominion” ou, simplesmente, “minion”, todos estes vocalizados como sinônimos
de “fascista”. Não que tais expressões não tenham lá sua serventia em momentos
de posicionamento na luta política, mas, para fins de pensar a comunicação
entre divergentes, é oportuno ceder a vez a um exercício de escuta do “outro”
enquanto depositário de uma subjetividade que ele próprio não consegue dar
conta e que, por sua vez, indispõe-no a qualquer forma de vida que ponha em
xeque sua miséria humana: a instrumentalização política de afetos primários como
o ódio.
Firula conceitual? Não, pois o comportamento
político não espelha necessariamente uma dicotomia entre progressistas e
conservadores descrita em um manual de ouro, mas gradações sutis entre tais pólos. Sendo isto plausível, nós,
progressistas, a despeito de tudo o que nos singulariza e antagoniza, temos
de tomar para si a tarefa (inglória para alguns, impossível para outros tantos...)
de estabelecer alguma maneira de repactuar limites com indivíduos e grupos cujo
“estar no mundo”, por assim dizer, revela concretamente o que se convenciona
por reação: anular os efeitos de uma
mudança qualquer. Trata-se de uma tarefa sensível tanto na esfera pública
quanto na esfera das relações íntimas de afeto. Talvez, mais gravemente na
última, dado o sofrimento moral acumulado após tantas decepções com quem, um
dia, já fora destinatário(a) de nossos sentimentos mais gregários.
Esta nossa tão universal necessidade de afiliação
nunca se viu tão desmentida por escrúpulos atribuíveis, quiçá, a uma
necessidade subjetiva de identificar-se (e comprometer-se) com a sorte do
gênero humano em sua inteireza. Afiliação não se realiza sem pagar tributos à
necessidade de poder e, cedo ou tarde, teremos de lidar com o ônus de navegar o
mesmo mar dos que militam pela reação sem, todavia, abrirmos mão da bússola
histórica que nos mostre uma rota consciente no entrechoque das correntezas que
arrastam a todos.
Tomemos um exemplo: a reação ao lockdown decretado pela prefeitura
municipal de Campos dos Goytacazes-RJ, minha cidade natal, com início para segunda-feira
(18/05/2020)[2]. O
reacionarismo manifestou-se na convocação, por parte de grupos de extrema-direita
organizados localmente, de um protesto contra o lockdown no espaço que condensa toda a potência do que seja um ato
público em solo campista - a Praça São Salvador – e no lugar que, por definição,
corporifica a instituição do direito – a Câmara de Vereadores ou, precisamente
falando, suas escadarias.
Qual é a “pauta” desses grupos? Basicamente, o
retorno a uma vida civil cujo verniz liberal são incapazes de simular com
suas patriotadas vazias. Ora, na tradição liberal bem compreendida, a
autolimitação do Estado é um ato de vontade do soberano que busca assegurar, através
da não interferência na esfera da consciência e da iniciativa econômica, a
autonomia civil de cada um(a). Contudo, na crise de saúde pública de alcance
global ocasionada pelo Covid-19, o ajustamento íntimo de cada um(a) a novas
rotinas torna imperativo que o Estado lembre aos seus cidadãos (com uso do
poder de polícia, se necessário) que eles também têm de observar a
autolimitação em nome de um bem primário – a vida.
A violação da ordem pública pelos meus conterrâneos
reacionários é sintoma de uma irracionalidade que tanto reflete a negação da
ciência quanto dela se retroalimenta. Ora, a ciência é uma prática social que
tem em seu horizonte o exercício da dúvida sistemática na comprovação de relações
de causa e efeito sobre os fenômenos. Admitir-se em erro não é, para um(a) cientista profissional, propriamente um motivo
de aflição, mas uma exigência ética ao demonstrar um fato passível de exame
geral. Ora, se é factível que o contágio ocorre em velocidade exponencial e que
não há outra medida ao nosso dispor, exceto o isolamento e distanciamento
sociais como meios de abreviar o período de quarentena e mitigar os custos da
recuperação econômica pós-pandemia é, no mínimo, inconsequente o lobby da Câmara dos Diretores Lojistas
(CDL) na agitação suicida dos verde-amarelos de plantão.
Por que é tão improvável um(a) reacionário(a)
admitir que possa estar errado(a) sobre suas próprias motivações? O rechaço ao
sistema político como prova de “isenção” ante os jogos políticos tradicionais é
produto de afeições que, para um certo segmento da população que transcende divisões
de classe, caracterizam um estado de desamparo diante das mudanças de posição e
de status advindas com a incipiente mobilidade
social verificada nos governos de centro-esquerda – gestão federal do Partido
dos Trabalhadores (PT) – sem, todavia, terem sido revertidos os condicionantes
estruturais da desigualdade socioeconômica reproduzida pelo racismo de classe e
de cor e, não menos, pela misoginia.
O código de virilidade exibido em protestos de rua
contra as instituições de direito e de justiça, sob o pretexto de questionar as medidas de restrição às liberdades públicas em um cenário de
pandemia, apenas evidencia o desejo um tanto caricatural de volta a uma “normalidade”
que, nada mais é, do que o estado de sítio mal disfarçado de pessoas – em sua
maioria, homens e pequeno-burgueses – que veem o seu lugar no mundo ameaçado por mudanças
que não compreendem.
O ressentimento decorrente desta invalidação
da existência social da fração proto-fascista da classe média – o “tio do
churrasco” que perdeu a graça; a vivandeira de quartel saudosa do “milagre
econômico” para o 1/4 de sempre; o(a) concurseiro(a) que clama por Estado
mínimo – serve de referencial ao conservadorismo moral das camadas populares
que não têm outro recurso senão a severidade nos costumes como forma de
distinção social que, por convicção sincera e deveras inútil, mimetiza o
moralismo hipócrita das classes que, por arrivismo ou simples desprezo ao lumpenproletariado
que explora, dita quem vive e quem morre com o falso dilema traduzido em “salvar
a economia ou preservar vidas”.
Daí, não é surpreendente que a tempestade perfeita esteja longe do fim e que sua nuvem mais pesada
paire sobre a planície fluminense confirmando o quão lenta pode ser a história
entre nós campistas.
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