Fábio Py
“Bem-vindos/as ao fim do mundo” (Karne Krua)
Neste texto, destaco a
atuação de um dos principais agentes da base bolsonarista, o pastor Silas
Malafaia, responsável por mobilizar parte do setor cristão conservador e
fundamentalista. Diante do crescimento exponencial de mortes e de restrições à
liberdade das pessoas, Malafaia se estabelece como um dos maiores articuladores
do apocalipse ampliado com a gestão de Bolsonaro. Associar a gestão Bolsonaro
ao apocalipse não é um exagero retórico. O teólogo Carlos Mesters (2013) foi
quem destacou a possibilidade de vivências apocalípticas em momentos de
destruições, tragédias e morte, contextos pródigos de figuras “cavalares”
repletas de discursos de ódios. A análise de Mesters (2013) é interessante
porque, neste momento “apocalítico”, milhares de cristãos estão hoje lendo e
relendo o último livro da Bíblia para se inspirar nos tempos da pandemia do
coronavírus, o Covid-19.
O contexto apocalítico é
ainda mais trágico no Brasil diante da gestão Bolsonaro, que utiliza técnicas
cristofascistas para ampliar o autoritarismo, ao desrespeitar as instituições
democráticas como o Parlamento e o Judiciário. O faz ao se associar a grandes
lideranças evangélicas como Silas Malafaia, que se coloca como figura-chave da
articulação, propaganda e produção intelectual religiosa de Bolsonaro. Por sua
postura, que amplifica o caráter cristofascista do governo, Malafaia merece ser
reconhecido como o primeiro cavaleiro do apocalipse brasileiro. Tal título se
deve à incansável atuação do evangelista na execução de uma mensagem que se baseia
na interpretação literal dos textos bíblicos, resultando em uma teologia
autoritária, sedenta do sangue dos pobres, dos velhos e dos doentes. Assim,
primeiro, falaremos sobre Malafaia e sua associação ao “cristofascismo
brasileiro”.
Malafaia: agente e cavaleiro do cristofascismo brasileiro
O cristofascismo
brasileiro (Py, 2019; 2020) é uma agenda do Estado brasileiro cerceador, a qual
utiliza a linguagem cristã como metodologia para legitimar e ampliar a
truculência na repressão aos pobres, negros, índios e heterodoxos. Mesmo não
ocupando um cargo oficial no governo Bolsonaro, Silas Malafaia, como
evangelista, atua como ponte teológica entre o governo cristofascista e os
cristãos por meio dos vídeos e mensagens, a partir das quais justifica a política
em termos teológicos e bíblicos. Portanto, sua função é estratégica.
O cristofascismo no
Brasil (Py, 2020 e 2019) precisa de figuras como Malafaia, para auxiliar na
tecedura da teologia política opressiva pautada no “ódio à pluralidade democrática”, como destacou o filósofo Rancieré
(2014). Destaco que o cristofascismo brasileiro (Py, 2020) é composto por
técnicas governamentais de promoção da discriminação, do ódio aos setores
heterodoxos, baseado no fundamentalismo cristão. Este cristofascismo, que no
apocalipse do coronavírus no Brasil, foi somado à característica
antidemocrática do economicismo como justificativa para a “política da morte”, termo cunhado pelo filósofo Mbembe (2014).
Nessa política da morte, Malafaia se promove como cavaleiro do estado de sitio
embasado biblicamente sua política cujos alvos são os pobres, os mais velhos,
os diabéticos e os hipertensos.
Esse cristofascismo se
relaciona com o trabalho de Dorothee Sölle (1970), que usou o termo ao reconhecer que o nazismo era
fundamentado tanto por integrantes do partido nazi, que frequentavam igrejas
cristãs, quanto ao se utilizar das relações e das terminologias cristãs para
sua composição – tal como hoje se faz a teologia política do bolsonarismo.
Hitler utilizava jargões cristãos como chaves de seus discursos como o próprio
“Conheceis a verdade e a verdade vos
libertará” (João 8,32), e “criou
Deus, o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher criou”
- para defender a família tradicional cristã alemã. O führer fez conferências em reuniões cristãs (luteranas, católicas e
confessantes) e tinha lideranças cristãs no seu governo desenvolvendo o
“cristianismo positivo”.
O cristofascismo brasileiro também se vincula ao legado de
Walter Benjamin (1940). O filósofo escreve que o fascismo não seria um estágio da civilização, mas estaria contido
na própria civilização liberal-burguesa, que produziria “estados de exceção”
internamente às gestões. Portanto, a cúpula do governo cristofascista
brasileiro se desenha a partir do clima apocalítico da tragédia da doença para
aprofundar o ultraliberalismo em medidas pouco humanitárias em favor do setor
empresarial, focando na manutenção das empresas, da produção e do capital.
Neste enredo, Malafaia tem a função de munir a “guerra dos deuses” na sociedade
brasileira por meio da teologia pentecostal incrementando os argumentos de
Bolsonaro em prol da política da “permissão das mortes”. Vejamos quatro momentos
em que o evangelista fundamenta e/ou desenvolve a política bolsonarista de
ódio.
Primeiro momento
Foto 1
Antes do apocalipse do Covid-19, o
cavaleiro participou do evento The Send, ocorrido no sábado, dia 8 de
fevereiro, no Estádio “Mané Garrincha”, em Brasília (figura 1). O evento foi um
marco para os jovens evangélicos e os projetos missionários no Brasil fundamentalista,
contando com várias personalidades cristãs. Quem também falou no evento, no
mesmo estádio, foi Bolsonaro. O evangelista/cavaleiro defendeu que os jovens
deveriam se manter firmes à convicção cristã, a partir de três textos: o
primeiro foi de Romanos 12,2 “não vos
conformeis com esse mundo mais transformai-vos pela renovação do vosso
entendimento”; o segundo de Mateus 5,16 “Assim resplandeça vossa luz diante dos homens para que vejam as vossas
boas obras e glorifique a nosso pai que estas nos céus”; e o terceiro de
Filipenses 2, 15 “para que sejais
irrepreensíveis filhos de Deus, inculpáveis no meio de uma geração corrupta e
perversa na quarta entre eles”. A partir deles, voltou-se à questão do
testemunho dos jovens.
Ao pregar sobre os três textos,
reproduzo trechos de seu discurso. No início, apresenta os casos de “jovens muçulmanos, que vão para as
universidades, na Europa. Passam lá entre cinco a dez anos e quando voltam para
suas nações, voltam mulçumanos, nada muda a crença e os valores deles”. Em
tom de acusação, diz: “jovens evangélicos
(...) estão indo para as universidades, três meses depois de ouvir professor
humanista, ateísta e esquerdopata, voltam contaminados, duvidando de crenças,
valores, de Deus, chamando o pastor de fascista e homofóbico”. Dessa forma,
transforma o ingresso à universidade e o acesso à pluralidade de ideias numa
“guerra cultural”, uma “guerra bíblica” (Py, 2020; Lowy, 2000). Incita que os
referenciais de laicidade e de secularização das geografias do Oriente sejam
seguidos pelos jovens brasileiros. Com isso, reduz as diferentes pluralidades
de crenças dos muçulmanos. Tudo para fundamentar sua “guerra bíblica” contra as
universidades brasileiras, docentes e pesquisadores. Coloca-os todos no jargão
talibã brasileiro: “humanista, ateísta, e
esquerdopata”.
Ironicamente, segue elogiando os
muçulmanos (por ele idealizados como extremistas). Textualmente, afirma: “não abrem mão uma vírgula dos seus princípios”, ao inverso do que
acontece “com os jovens evangélicos que
vão para a universidade”. O cavaleiro de Bolsonaro ardilosamente tece uma
versão da vida de “nós” versus
“eles”; “bem” versus “mal”. Nesta
operação de inspiração fundamentalista, Malafaia enclausura toda a mensagem da
Bíblia, dos Evangelhos e de milhares de textos, em uma. Traça uma operação que
simplifica a mensagem cristã, em cima do que chama “verdade bíblica” – ou seja,
o que interessa a ele. Opera isso em torno da perigosa dicotomia do “nós”
(jovens evangélicos) e o “mundo” - todo o resto de pessoas, os gentios,
perdidos. Com sua palavra na formação dos jovens, trama uma complicada “guerra
bíblica” entre os evangélicos e o restante da sociedade.
Segundo momento
Foto 2
No segundo momento de ação como cavaleiro do
apocalipse, já se percebia o alastramento da doença no Brasil, que assistiu
perplexo o presidente defender em cadeia nacional o isolamento vertical para o
país. Diante da polêmica, Malafaia tratou de defender o presidente ao gravar o
vídeo “Concordo com Bolsonaro! O que é
pior: coronavírus ou caos social?”, no dia 25 de março (https://www.youtube.com/watch?v=lJX3MTNEZE0). Na gravação, o cavaleiro indicou a quarentena
vertical (isto é, para os mais velhos), fundamentando sua posição ao afirmar
que na Itália, que até o dia 17 de março tinha registrado milhares de mortes,
“somente” haviam falecido cinco homens abaixo dos 50 anos, os quais, segundo
Malafaia, tinham doenças anteriores. Tecia, assim, seu apoio a necropolítica de
Bolsonaro lembrando que a Itália “é o
país na Europa com mais idosos, e o segundo maior do mundo”.
Segue dizendo que
existem mais mortos no mundo por fome, por tuberculose, que de coronavírus.
Malafaia, cavaleiro do apocalipse cristofascista, fala em tom de alarde do
Brasil em que “90% da população ganha aí
perto é.... quatro salários mínimos. Não tem dinheiro reserva, nem alimento
estocado. Eu fico indignado com esses políticos!”. Mostra com isso que, ao
contrário de suas palavras, não está preocupado com a população pobre, mas, com
os grandes empresários, prioridades da gestão Bolsonaro que mantêm o patrimônio
intacto. Deixa com isso a população pobre e trabalhadora à mercê dos empregos,
nem que isso custe a morte supostamente dos mais velhos.
Portanto, ao fim do
vídeo, como fiel cavaleiro de Bolsonaro, retira a reponsabilidade do Executivo
ao frisar: “estamos numa escolha de
Sofia: o que é pior, coronavírus ou caso social? Eu garanto que é caos social.
Vai morrer gente, vai... lamentamos profundamente. Meu desejo é que ninguém
morra, mas só um dado para vocês, a gripe influenza, no Brasil, em 2009, matou
mais de 2 mil pessoas e mais de 58 mil ficaram infectados (...) a minha oração
é que Deus guarde pessoas idosas, as pessoas que têm deficiência em seu
organismo e que são vulneráveis a isso”. Assim, o pastor segue a linha de
‘permissão de mortes’, contudo, deixa nas entrelinhas que as mortes são
inevitáveis para o país seguir (Mbembe, 2014).
Terceiro
momento
No terceiro momento,
destaco como ele, no meio do apocalipse da pandemia, desenvolve uma leitura
bíblica Para isso, o vídeo “Decida! Em
tempo de coronavírus, medo ou coragem?” do dia 17 de abril, quando retoma
algumas reflexões que já vinha desenvolvendo entre março e abril. Abre a
mensagem dizendo que “o medo tem o poder
de inibir seu potencial, travar o presente, e estragar o futuro. A coragem, não
é ausência de medo. O corajoso resiste ao medo, controla o medo”. Nos dias
de hoje apela a dicotomia “coragem” / “medo” quando a doença se alastra no
país. Fundamenta com o texto de Josué: “Deus
vai dar um conselho para ele quando ele estava tremendamente apavorado (...)
Deus dá uma palavra para ele, Josué capitulo 1, três vezes (...) Josué: Sê
forte e corajoso (...) isto é, controle o medo, domine o medo, não fique
desanimado”. Ora, no meio do aumento do número de mortes, Malafaia fala de
coragem contra o medo. Quase sugerindo que as pessoas enfrentem a epidemia e
não deixem de trabalhar.
Na sequência, afirma “que a mente resolve acreditar no que
repetidamente é informado. Então se você só está alimentando sua mente com
desgraça, com morte, com tudo que é ruim, a sua mente vai decidir ter medo”.
Força uma linha, sugerindo que o medo é uma questão de opção, quando a pessoa
opta em assistir “coisas ruins”. Para
isso, sinaliza “para você a colocar
coisas boas diante dos seus olhos (...) Veja coisas boas, ouça coisas boas
(...) Porque o sábio Salomão diz uma coisa interessante: se te mostrareis
frouxo no dia da angústia, a sua força será pequena”. Diante da situação
trágica que o país passa, diz que cada uma deve fazer opção por coisas boas,
pois assim não será “frouxo no dia da
angústia”. O cavaleiro de Bolsonaro assume seu discurso: “Coragem! Vem tempo melhores para você, para
sua casa, para o Brasil! No nome de Jesus, um abraço a todos.
Quarto
momento
O cavaleiro do
apocalipse cristofascistas, em praticamente todas as pautas, concordou com
Bolsonaro. Todavia, na crise política que ocasionou a demissão de Moro, não. A
divergência não se referiu às denúncias do ex-ministro da Justiça, mas ao
momento em que ocorreu a demissão, no contexto de pandemia. Na sequência,
produziu vários vídeos, um a cada acontecimento que afligia a presidência:
sobre Moro, sobre a Globo, sobre o STF. Contudo, gostaria de destacar o vídeo do dia três de abril, produzido após o
segundo ato em favor Bolsonaro contra o STF e o Congresso, no próprio domingo,
dia três (figura 3, 4, e 5), com o título Vergonha!
O jornalismo inescrupuloso da Globo Lixo”. Nele, afirma que a Globo pratica
um jornalismo politizado contra o presidente. Irascível, diz: “É uma
vergonha! Esse jornalismo inescrupuloso e parcial. Quer dizer que a
manifestação de hoje, domingo dia 03 é antidemocrática?! É antidemocrática
porque rejeita o STF, porque rejeita o Moro?! Só seria democrática se a
manifestação fosse para bater, malhar e ser contra o presidente?”. Malafaia,
defende a manifestação, mesmo no momento controverso como da pandemia, onde o
presidente falou ao lado da filha (fotos 3, 4 e 5), e lotado de faixas contra o
STF, contra Rodrigo Maia e pedindo a intervenção militar.
Foto 3
Foto 4
Foto 5
O cavaleiro de Bolsonaro
desconsidera que a manifestação é antidemocrática porque tem cartazes, falas
contra os demais poderes que, conjuntamente, mantêm a democracia brasileira.
Além disso, acrescenta-se que, na manifestação, um jornalista foi atacado pelos
manifestantes. Sobre isso, ameniza com as seguintes palavras: “Botar um monte de ministro do STF para falar
porque jornalista foi agredido?”. Desta forma, Malafaia apoia a limitação
da liberdade de imprensa, algo que, diante do que vem ocorrendo com o
presidente, é aceitável. Fala abertamente que “não concordo com jornalista ser agredido não! Mas a paciência do povo
está esgotada! Com o jornalismo parcial, da imprensa brasileira”. Portanto,
defende a violência contra a liberdade de expressão, indo absolutamente na
mesma linha de Bolsonaro. Ou seja, contra os divergentes, a violência é
caminho. Mesmo sendo pastor, assume a radicalização como tática, bem como o “processo de linchamento moral dos
divergentes”. Tal como agora, os setores bolsonaristas produzem ira contra
seu ex-super ministro Sergio Moro. Portanto, o ódio é a amálgama que dá sentido à
gestão cristofascistas brasileira de Bolsonaro, que é envelopado com seu pastor
carregado por ódio.
O fim,
porvir...
Além do ódio e das violências que
salpicam no discurso conta os diferentes, Malafaia, com a Bíblia na mão, busca
consolar a base social cristã imaginando um futuro diante do presente
pandêmico. Assim, na mensagem do dia 28 de abril de 2020, (https://www.youtube.com/watch?v=BV3zicvmSJ4) fez a oração com
sua mulher: “escuta nosso clamor, nosso
pai, (...) Jeová fará, o senhor da saúde, esteja na sua vida, na sua casa, nós
repreendemos o mal, as enfermidades, sê curado agora! (...) Viveremos dias de
prosperidade após esses, eu creio! Sejam envergonhados profetas do caos! O
Brasil é do Senhor Jesus!”. É que diante do horror dos “últimos dias”,
Malafaia, de forma semelhante aos apocalipses, trata a esperança de um novo
tempo, de novos dias. Utiliza o mesmo recurso dos judeus e cristãos do primeiro
século, imaginando a vida além das guerras e mortes ante o Império Romano. Eles
pensaram em novos dias, de “novo céu e
novas terras”, diante da fome e das guerras. Agora, é uma pena que nem em
algo tão simbólico e singelo, Silas Malafaia não abra mão da lógica
mercadológica. Repete a ladainha da prosperidade. Sim, é uma forma dele, e do
secto, buscarem manter a lógica que causou a pandemia. Não codificaram que a
lógica mudou, e que as relações religiosas devem ser revistas. Faço voto de que
as igrejas digam menos de prosperidade e falem mais da vida em abundância que
se tem ao repartir o pão com irmãos e irmãs.
Bibliografia:
BENJAMIN, Walter. “Teses sobre o conceito de história”, 1940.
LOWY,
Michael. A guerra dos deuses, Petrópolis: Vozes 2000.
MBEMBE, A. Crítica da razão negra. São Paulo: Antigona,
2014.
MESTERS, C. A esperança de um povo
que luta. São Paulo: Paulus, 2013.
PY, Fábio. A cristologia cristofascista de Jair Bolsonaro,
São Paulo: Carta Maior, 2019. Acessado em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/a-cristologia-cristofascista-de-jair-bolsonaro/.
PY, Fábio. Cristofascismo de Bolsonaro em 7atos. São Paulo:
The Intercept, 2020. Acessado em: https://theintercept.com/2020/05/01/cristofascismo-bolsonaro-pascoa/.
RANCIERÉ,
Jacques. Ódio a democracia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.
SOLLE, Dorothee. Beyond Mere Obedience: Reflections on a Christian Ethic for the Future, Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1970.
SOLLE, Dorothee. Beyond Mere Obedience: Reflections on a Christian Ethic for the Future, Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1970.
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