sexta-feira, 22 de maio de 2020

Novo Normal?*




Atualmente somos bombardeados semanalmente por novos termos e expressões. A durabilidade de cada um varia, mas o tormento de ouvir a mesma expressão repetidas vezes parece ser algo que se renova a intervalos cada vez mais curtos. Não faz muito tempo, escutei pela primeira vez alguém falar em “novo normal”. De imediato, não entendi e, por questões de autopreservação, adotei a medida da sabedoria: ignorei. Todavia, não tinha como fugir e a expressão começou a brotar por todos os lados. Chegou ao ponto em que vi um debate sobre o termo utilizado na capa da revista Vogue, onde aparecia a top model Gisele Bündchen e, abaixo dela se lia: “Novo Normal: Simplificar a vida e se concentrar no essencial são os caminhos para um futuro mais ético e saudável”. A Vogue destacava, assim, uma tendência da expressão: algo relacionado à espiritualidade e ao consumo sustentável. Depois disso, passei a observar que havia um apelo à dimensão ética e ambiental na expressão. Fui me informar melhor e descobri que o “novo normal” era uma expressão para abordar o mundo pós Covid-19, algo do tipo: “agora que tudo deu errado, vamos nos reformular e buscar novos caminhos”. Fiquei incomodado, mas acreditei que não valia o esforço.

Dias depois, por acaso, li um artigo de opinião da Lilia Schwarcz intitulado “De perto ninguém é normal (ou o ‘novo normal)”, onde a antropóloga demonstrava um incômodo semelhante ao meu diante da expressão. Segundo ela:  


A expressão “novo normal” tem sido muito utilizada nos últimos meses, quando se percebeu que o coronavírus há de acarretar mudanças para todo o planeta. Isto é, que os efeitos da Covid-19 não se limitarão ao dia em que a pandemia for dada por terminada. E é certo: a história mostra que não se sai de crises como essa da mesma maneira que se entrou. “Novo normal” não é, porém, um termo recente; tampouco se sabe a origem dele. No entanto, tem sido crescentemente associado a momentos da história em que toda a sociedade é obrigada a se reinventar diante de períodos de crises de ordem política, militar, econômica ou sanitária”.

Essa ideia de reinvenção diante da crise foi o que chamou minha atenção no “novo normal” – e que passou a incomodar, mesmo, depois da capa da Vogue. Por que a capa da Vogue é importante? Bem, porque ali fica explícito que a ideia de “normalidade” é muito variável. Ou você acha que a sua normalidade é igual à da Gisele Bündchen? Pois enquanto a celebridade se preocupa em “simplificar a vida e se concentrar no essencial”, há muita gente que vive a normalidade de não saber se vai conseguir a próxima refeição. Independente do extremo dos exemplos, o que quero frisar é que aquilo que é normal para a senhora Bündchen seria um sonho para cerca de 99% da população mundial - e que aquilo que se tornou normal para 40 milhões de brasileiros – sofrer nas filas para obter os R$600 de auxílio do governo – seria algo absolutamente anormal para ela. O conceito de “normalidade”, portanto, é relativo e contextual.

Boa parte das Ciências Sociais dos séculos XIX e XX estiveram preocupadas com a normalidade. Para ser mais específico: a Sociologia nasceu com o propósito de ser uma engenharia social capaz de trabalhar pela manutenção da ordem. As formas de “representação”, as categorias classificatórias e as “estruturas sociais” foram temas centrais na história das Ciências Sociais. Após a Segunda Grande Guerra Mundial – com o mundo sacudido por um evento que criava um “novo normal” da época -, ficou claro que era importante entender as formas de transformação da vida social. Um grupo de antropólogos, sob a liderança do sul-africano Max Gluckman, ficou conhecido como “Escola de Manchester” e teve suas pesquisas marcadas por uma ênfase na mudança social. Para tanto, uma forte preocupação foi direcionada aos conflitos sociais – que deixaram de ser vistos como algo de menor importância. A vida era marcada por conflitos e neles estaria a força motriz das transformações das diferentes sociedades do mundo.

Nesse grupo de pesquisadores, destacou-se um escocês, chamado Victor Turner, que formulou o conceito de “drama social”. De modo sintético, podemos dizer que os dramas sociais são rupturas do cotidiano “normal”. Quando algo acontece que tira as pessoas dos seus fluxos “normais”, então temos o início de um drama social. Isso significa que existem dramas sociais de pequena e de larga escala: dramas de pequenos grupos ou dramas de cidades, regiões ou países. Podemos encontrar expressões de dramas sociais em traições, conflitos armados, rupturas políticas, desastres “naturais” etc. Os dramas sociais podem se envolver uns nos outros - quando um drama familiar se insere em um drama nacional, por exemplo. A importância do drama social reside na ênfase que dá aos conflitos sociais, pois o “cotidiano” ou a “normalidade” tendem a esmaecer as tensões e as oposições – expressas ou latentes – que caracterizam a vida social. Assim, as ocasiões dramáticas teriam, para os antropólogos, a capacidade de descortinar as divergências dos grupos sociais, destacando valores e resistências a esses valores, ou mesmo valores em oposição. Em outras palavras: os dramas sociais são reveladores, pois os conflitos expõem os axiomas sociais.

Turner dividiu os dramas sociais em quatro etapas sequenciais. A primeira etapa foi chamada de “ruptura” e consiste na exposição pública de algum evento que signifique a quebra da normalidade: pode ser tanto a descoberta da violação de uma regra social quanto algum evento climático que altere o cotidiano drasticamente. A partir daí inicia-se a segunda etapa, que é conhecida como “escalada da crise”. Nesse momento, o problema originado na ruptura tende a se expandir envolvendo cada vez mais pessoas e grupos. É importante lembrar que Turner não escolhe o termo “crise” aleatoriamente, pois ele entende que as crises constituem momentos de aguda reflexividade, onde é necessário ponderar sobre passado, presente e futuro. Isso ganha força na terceira etapa, quando “ações de reparação” são adotadas para minimizar os efeitos da crise e tentar, assim, interromper sua escalada. Trata-se do momento mais “intelectual” do drama, na medida em que é aí que são discutidas as possibilidades de resolução das questões. Por fim, a quarta etapa: o cisma ou o retorno à estrutura. Aqui o argumento é que se a fissura no tecido social for irreparável, haverá uma divisão do grupo social – como em um casamento, quando não é possível reatar e o casal se divorcia. O retorno à estrutura seria algo como retorno à “normalidade” – mas é preciso enfatizar que Turner sinaliza que a “estrutura” já não é exatamente a mesma, pois ela carrega em si as marcas históricas dos eventos dramáticos.

Quando leio sobre o “novo normal”, lembro dos dramas sociais de Victor Turner. A transformação social é constante, mas ela não costuma ser abrupta. Mesmo os cismas, quando ocorridos, fundam-se sobre valores e modelos da estrutura social anterior. Do mesmo jeito, o retorno à estrutura representa uma transformação. Imagino que o drama social da Covid-19 não nos transformará radicalmente em pessoas solidárias e espiritualmente elevadas, preocupadas com a preservação ambiental e com o consumo consciente – tal como tem sido imaginado por inúmeras pessoas. Quando países europeus iniciaram a reabertura, filas enormes se formaram para comprar produtos da Apple e da Louis Vuitton. A Zara parecia estar com promoção de 90% de desconto – mas não estava. No que diz respeito ao consumo, as coisas não foram radicalmente alteradas e aquele consumo que ficou suspenso ao longo do isolamento social estava apenas esperando a oportunidade para sua satisfação.

Do mesmo modo, aqueles que pensam em um cenário distópico pós-Covid não devem esperar que o país se transforme em um “Mad Max” da noite pro dia. As transformações são dadas de passo em passo e o que virá será a continuidade de algo que já estava em andamento há muito tempo no Brasil. Seja um quadro de miséria extrema ou de um governo autoritário e ditatorial, não podemos dizer que isso se apresentou como consequência da pandemia, pois a pobreza e a desigualdade já estavam consolidadas em nossa sociedade há muito tempo; tal como certas inclinações autoritárias com fetiches por fardas e fuzis.

Seja como for, para além das especulações sobre o futuro, precisamos trabalhar com as questões fáticas. Vivemos em um país polarizado politicamente, sem compromisso com a educação e com o conhecimento científico, onde as desigualdades são naturalizadas e o racismo é estrutural. Nesse contexto, depois de anos em uma profunda crise econômica que se pretendia sanear por um modelo de pirotecnia neoliberal, presenciamos o coronavírus estagnar a economia e o desemprego aumentar acompanhando o número de mortes. Enquanto isso, o governo federal continua a gerar crises e a fracassar na apresentação de ações para reduzir os estragos pandêmicos. Ao final, pode até ser que uma parte das pessoas entre na mesma “onda” da Gisele Bündchen, simplificando a vida e focando no essencial enquanto buscam uma existência espiritualmente plena. No entanto, é preciso se lembrar que, enquanto isso, milhões de pessoas estarão em notável vulnerabilidade social, em um país em recessão, com crise política, intelectual e social de todas as ordens.


Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.


* Publicado originalmente em 19 de Maio de 2020 no Jornal Folha da Manhã  - http://www.folha1.com.br/_conteudo/2020/05/artigos/1261616-carlos-valpassos-novo-normal.html

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