Por Paulo Sérgio
Ribeiro
O Senado
Federal lançou a consulta pública sobre o fim do Estatuto do Desarmamento*. Pela
relevância da coleta de opiniões para o trabalho legislativo, impressiona a
disparidade do seu resultado: 90.026 pessoas declararam “sim” à
revogação do estatuto e 5.597, não. Tramitação da consulta encerrada. Topamos num
consenso irrefutável? As ciências sociais em geral, e a sociologia da violência
em particular, elencam tópicos variados que dialogam com o tema do desarmamento,
indo desde a consagrada definição weberiana de Estado como detentor do
monopólio legítimo da violência à própria comparação de matrizes do pensamento filosófico
acerca da possibilidade de limitação do poder como contrapartida da ideia de
autonomia. Ao manejar a literatura especializada, aprendemos que
abrir o flanco para simplificações moralistas sobre o fenômeno da violência vai
de encontro à fundamentação conceitual de questões que emergem ao sabor do
dissenso no debate público, tais como: a) ampliar ou restringir as franquias
legais à posse e ao porte de armas de fogo? b) ratificar ou relativizar a
liberdade individual em face da proteção à vida?
Em cada
cenário de época se produzem respostas provisórias àquelas questões conforme a
maturidade ou a incipiência da avaliação do modelo de segurança pública e de
justiça criminal em vigor e, não menos, da sua intersetorialidade com as
políticas de desenvolvimento, inteligência, direitos humanos, planejamento
urbano, entre outras. Sua margem de experimentação institucional é delimitada
pelo alcance de correntes de opinião que, não raro, refletem mais as distorções
do senso comum sobre violência e criminalidade do que um aprendizado coletivo sobre
a gestão de conflitos. Sendo assim, uma leitura apressada daquela consulta
pública pode, inadvertidamente, reforçar os nossos autoenganos sobre o drama da
violência, embora a tentativa de contextualizar o esmagador “sim” à revogação
do Estatuto do Desarmamento possa, também, evidenciar as vicissitudes de nossa cultura
política diante de mais um interregno democrático (1989-2016). Dentre elas, uma
salta aos olhos nos dias que correm: o avanço das posições autoritárias.
Esse
diagnóstico é sinalizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) com a
recente divulgação da pesquisa “Medo da violência e o apoio ao autoritarismo no
Brasil”. Adotando a perspectiva teórica de Theodor Adorno em estudo seminal nos anos
1950 sobre tendências proto-fascistas nos EUA, o FBSP elabora o “Índice de
Propensão ao apoio a Posições Autoritárias”. Para os pesquisadores do FBSP, outra
referência igualmente relevante é a obra do psicólogo José Leon Crochík, o qual também se valeu daquele enfoque em
pesquisa realizada junto a estudantes de Administração de Empresas e de
Psicologia no Brasil em início dos anos 2000. Nos seus traços gerais, essa
linhagem de pesquisa notabiliza-se pela mensuração de personalidades
autoritárias por meio de escalas psicométricas.
A “Escala F”
(fascismo) inaugurada por Adorno e seus colaboradores - psicólogos sociais
associados à Universidade de Berkeley - tomou corpo através de um formulário que
abrangia nove dimensões de análise: submissão à autoridade; agressividade
autoritária; convencionalismo; antiintrospecção; superstição e estereotipia;
poder e “dureza”; destrutividade e cinismo; projetividade; preocupação com o
sexo. Crochík, por sua vez, aclimatou a
“Escala F” ao selecionar 28 das suas 40 assertivas originais. Já no referido
trabalho do FBSP foram selecionadas 15 daquelas assertivas, com acréscimo de
duas novas com o intuito de “mensurar a eventual influência da religiosidade na
construção de representações sociais acerca da identidade dos policiais
brasileiros” (FBSP, 2017, p.11). Esse conjunto de 17 assertivas contemplou as três
principais dimensões do trabalho original de Adorno: submissão à autoridade,
agressividade autoritária e convencionalismo.
O Instituto Datafolha, parceiro na pesquisa
realizada pelo FBSP, aplicou 2.087 entrevistas, entre os dias 07 e 11 de março
de 2017, junto a pessoas de 16 anos de idade ou mais distribuídas em 130 municípios
brasileiros. Por meio de técnicas de abordagem pessoal, os entrevistados responderam
a um questionário que dispunha de seis níveis de concordância em relação às
assertivas: concorda totalmente, concorda, concorda parcialmente; discorda
parcialmente, discorda, e discorda totalmente. Colhidos os dados da amostra, os
resultados descritivos alicerçaram a criação do índice para o apoio a posições
autoritárias conforme um ranking de 1 a 10 pontos. Maior adesão a ideias
autoritárias, mais próximo de 10; menor adesão, mais próximo de 1. O apoio
a posições autoritárias aferido - 8,10 – indica um grau elevado de adesão ao
autoritarismo como modus vivendi do brasileiro médio. Destacam
os pesquisadores do FBSP que a dimensão mais acentuada no Brasil é a submissão
à autoridade. A seu ver, “a população brasileira necessita de figuras de
liderança que podem ser representadas pelo fortalecimento de grupos radicais e
de celebridades virtuais presentes em diversas plataformas e redes sociais”
(op. cit., p.14).
Em um Estado pós-democrático – para usarmos a feliz terminologia de Rubens Casara – flexibilizar as regras para a posse e o porte
de armas de fogo implica uma inflexão na política nacional de desarmamento em detrimento de uma divulgação mais abrangente dos resultados dessa política –
mortes efetivamente evitadas pelo maior controle, mesmo que insuficiente, de circulação de armas
de fogo no país a partir do Estatuto do Desarmamento (2003)** – para quem dela queira,
criticamente, tomar parte no processo legislativo. Pior: em uma ambiência política
na qual a aceitação da autoridade está longe de confirmar uma adesão racional a
normas, os pânicos morais e ódios inoculados podem ser o dedo no gatilho,
literalmente, para aqueles cuja obediência servil ao líder demagogo retroalimenta-se
na opressão de quaisquer indivíduos ou grupos que se mostrem divergentes do
convencionalismo de classe média que debita a tais pânicos e a ódios a sua autoimagem.
* Acesso: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=128456
** "Como era o Brasil quando as armas eram vendidas em shoppings e munição nas lojas de ferragem", reportagem do jornal El País.
Acesso: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/25/politica/1508939191_181548.html
** "Como era o Brasil quando as armas eram vendidas em shoppings e munição nas lojas de ferragem", reportagem do jornal El País.
Acesso: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/25/politica/1508939191_181548.html
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Obra consultada:
Medo da violência e o apoio ao autoritarismo no Brasil: índice de
propensão ao apoio a posições autoritárias.
Organizador: Fórum Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, 2017. 39p.
Acesso:
http://www.forumseguranca.org.br/publicacoes/medo-da-violencia-e-o-apoio-ao-autoritarismo-no-brasil/