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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Não vejo saída pela Porta dos Fundos


Não vejo saída pela Porta dos Fundos

 

Esther de Souza Alferino*

 

Sempre que participo de alguma discussão, uma pergunta aparece: como você acha que nós, pessoas de esquerda, podemos nos aproximar dos evangélicos?


Mas antes de chegar a isso, eu preciso dizer que não sou uma pessoa dada a programas de humor, de modo que preciso começar esse emaranhado de ideias, que espero que faça algum sentido, dizendo que não dou risada com basicamente nada do que o Porta dos Fundos faz, assim como não dou risada do Zorra, dos humoristas youtubers ou dos filmes do Adam Sandler. Meu senso de humor está mais para “Chaves” e “Um maluco no pedaço”. Duvidoso? Provavelmente, mas não estou exatamente preocupada em apurar ou refinar meu gosto pessoal pelas comédias. Por minha iniciativa, jamais assistirei a qualquer especial de natal de humor, seja com ou sem pretensões críticas.


Eu até entendo que na carência de referências em que vivemos, esse movimento em busca de possíveis representantes se acirre, mas também acredito que devemos, enquanto pessoas que se pretendem de esquerda e progressistas, sermos menos emocionados na ânsia de encontrar nossa voz ecoando nos espaços. O “Porta dos Fundos” não é a esquerda (e aqui sem levar em conta as mil complexidades existentes dentro desse termo-balaio), mas muitas das esquerdas (contidas no termo-balaio) se apressam em etiquetá-lo como vozes dissonantes e efusivas em meio a tanto obscurantismo. Eu gostaria de dizer a todos nós: vamos com calma.


Ali naquele elenco existe uma grande diversidade de pessoas e pensamentos e fazer algumas esquetes que ironizam o que existe de mais evidente sobre questões sociais não torna o humorístico necessariamente um porta-voz dos movimentos sociais; inclusive, daquele povo todo ali, quem teve alguma formação de base em movimentos sociais? Quem tem alguma formação política desenvolvida fora do twitter? Ali tem global, tem liberal, tem o pé esquerdo do sapatênis com sobrenome que é nome de rua, tem gente da Record. De onde tiramos que essa gente representa a esquerda?


Dito tudo isso, vou reafirmar o quanto acho sem graça uma reunião de obviedades ditas como grandes descobertas, grandes sacadas, e, claro, polêmicas.


Porque sem polêmica não há audiência que se sustente e até quem se pretende desconstruído não sobrevive sem uma. Ou várias.


Fazer piada da religião alheia é uma polêmica antiga, manjada, uma obviedade, como muita coisa que aquela galera faz, mas ainda assim rende. Com ou sem qualidade crítica – e aqui não farei nenhum julgamento de valor de tal qualidade, simplesmente porque seria incapaz de fazer. Bate recorde de audiência, pode ter boicote puxado pela igreja, não adianta, nem que seja para falar mal, todo mundo quer ver.


Eu não posso e não vou dizer a ninguém do que elas devem rir, do que elas devem fazer piada, qual deve ser o tema dos programas a que elas assistem ou produzem. Mas quando me fazem aquela pergunta de sempre, por tudo que vejo no campo desde que me dedico a estudar os pentecostais, eu só posso dizer que ridicularizar alguém é uma péssima abordagem.


Recentemente, Igor Santos[1] escreveu sobre como a “lacração” com a imagem de Jesus afasta os trabalhadores e dividiu opiniões. Guardo diversas divergências com o texto de Santos, mas também tendo a concordar com muitas questões levantadas por ele. Perdemos eleições por muitos motivos, mas também porque estamos perdendo (e perdendo feio) na disputa de narrativa e na disputa pelas consciências dos trabalhadores brasileiros. Descolamo-nos da realidade das pessoas, alienamo-nos em nossas bolhas pseudo-eruditas em que damos risada de humor medíocre enquanto chamamos pessoas de alienadas. Dizemos que pessoas sofreram lavagem cerebral e são massa de manobra, desconsiderando que os sujeitos são agentes da própria história, são sujeitos com anseios, ambições, e que há quem lhes ofereça o repertório discursivo que negamos quando os infantilizamos e os menosprezamos no que há de mais humano neles: seus desejos.


O crente, aquele crente pobre, que entrou no mercado de consumo na Era Lula, que hoje amarga a volta à pobreza, aquele que dá o dízimo do quase nada que tem, e que por isso é chamado de manipulado por quem paga caro em pedras dizendo que são cristais energéticos; porque, sim, no fantástico mundo da lacração, as pessoas gostam da espiritualidade, não podem ver um “Prem Baba” abusador, que gastam muito dinheiro para ver tudo que ele faz; aquele crente não vai ouvir nenhuma voz arrogante e cheia de tutela, descolada da realidade prática.


Condeno todo e qualquer tipo de censura ou tentativa de silenciamento do grupo de humor aqui mencionado. Não se trata de querer calar a voz deles. Para mim, trata-se de voltar a ser capaz de dialogar com quem tem mais com o que se importar do que gênero neutro na gramática.

 

* Cientista Social, Mestra em Sociologia Política.



[1] Diário do Centro do Mundo. Lacrar com imagem de Jesus cansou e só tem um efeito: colocar trabalhadores contra a esquerda. Por Igor Santos. Edição de 26 de dezembro de 2020. Acessível (aqui).

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Damares, doutrinação, “kit gay” e o lugar da ciência após o transe eleitoral


Damares, doutrinação, “kit gay” e o lugar da ciência após o transe eleitoral

Por Luciane Soares da Silva*

Não há dúvida de que o termo mais correto para definir as eleições de 2018 é “boato”. Sabemos que boatos não são novidade na política nacional, já fizeram estrago em eleições anteriores e têm a capacidade de espalhar-se como fogo no milharal. Creio que a novidade consiste no uso do boato como ferramenta ativa de campanha. E como podemos perceber, com êxito diante da interpretação do Tribunal Superior Eleitoral de que tudo transcorreu na mais perfeita normalidade. Com um militar dando entrevista, com tudo.

Normalidade... primeiro afasta-se uma presidente eleita, posteriormente se reconhece a fragilidade do processo, mas com apoio popular a uma campanha anti-corrupção prende-se o principal candidato ao cargo. Entre manchetes espetaculares e patos desfilando na Avenida Paulista, surge um tipo histriônico, despreparado, capaz de incitar ódio em doses cavalares e atacar em um único dia, mulheres, negros, gays e todo o resto que se aproxime de uma classificação “à esquerda”.

Passada a eleição, gostaria de conversar com seus eleitores sobre a pauta moral. Há uma concepção profundamente equivocada em retirar da escola a discussão de temas sobre sexualidade, gênero, direitos humanos.

Não vou desenvolver aqui um ataque ao projeto “Escola Sem Partido” por compreender que em princípio ele é indefensável e impossível de ser efetivado. Nem colocarão mordaças nos professores nem terão meios de punir ou mesmo fiscalizar as escolas em um território como o nosso.

Mas há uma questão importante e ela diz respeito a explicação que alguns religiosos, pais e profissionais da área de educação, pretendem dar para sobrepor a família à escola em assuntos como sexualidade. Em minhas aulas sobre fato social, tenho utilizado não o exemplo do suicídio para explicar o conceito. Tenho discutido em aula os massacres em escolas nos Estados Unidos. E tenho feito isto contra um discurso muito sedutor de que os meninos de Columbine eram “doentes”, comprometidos psiquicamente. Fui estudar os casos. Milhares de livros e psicólogos descrevendo as características de um serial killer. Sem tocar com responsabilidade no tema das armas, na estruturação das escolas e na competição que instaura o estigma de “loser” em crianças de 13 anos. Por serem gordas, tímidas, pobres, lentas, seja lá a razão.

Minha defesa da importância da pesquisa em sociologia é dizer que não, estes adolescentes que a cada ano buscam superar o massacre do ano anterior, não são doentes nem psicologicamente comprometidos. Não podemos explicar estes massacres com Lombroso ou teorias de degenerescência individual. Elas já serviram para justificar o racismo, como Nina Rodrigues e outros no Brasil. Mas não, o problema não é o indivíduo.

A escola é uma das principais instituições modernas. Ela reflete a possibilidade de educarmos uns aos outros. Sobre arte, sobre matemática, sobre amor, sobre sexualidade. Não há limite para o que podemos aprender. Mas a escola é também uma instituição de reprodução de lugares sociais e preconceitos. Esta é a disputa vivida. De qualquer forma, aqueles que tiverem ouvidos abertos, verão dados inegáveis sobre abuso infantil: a maior parte destas crianças sobre abuso em casa ou em seu bairro.

Nos anos 2000, trabalhamos em uma equipe para reconhecer como estas crianças, muitas delas com 6 anos ou menos, expressavam o abuso. Fizemos uma imersão com palestras, conversamos com profissionais, vimos os desenhos que demonstravam padrões, como órgãos sexuais em tamanho disforme, pessoas deformadas, a criança em tamanho muito menor diante de um parente. Ouvimos de como tocavam seu corpo, de problemas para ir ao banheiro. Ou crianças com extrema tristeza, crises de choro ou demonstrações de sexualização precoce. O resultado da pesquisa em escolas e creches de Porto Alegre confirmaria tudo que tínhamos aprendido naqueles poucos dias. Em um dois bairros, nossa equipe foi expulsa e os questionários confiscados.  Mesmo estudando violência, nunca consegui retornar ao tema. E tenho profunda admiração pelos professores, profissionais de saúde, assistentes sociais, religiosos e demais pessoas que se envolvem em uma área que considero a mais pesada do trabalho social.

Abusadores não são monstros, não são “tarados” como tivemos de aceitar enquanto forma de normalização até décadas recentes. Abusadores sabem o que podem e com quem podem exercer seu abuso. Sabem até onde podem ir entre uma mão nas partes íntimas de um menino e o estupro de uma menina de 10 anos. Abusadores não são demônios entre nós como podem querer afirmar algumas igrejas que têm em seus quadros lobos eloquentes.

E só existe uma forma de combate – e todos somos responsáveis por isto – a denúncia e a proteção de infância e da adolescência. A família não pode seguir como uma instituição do século XVIII na qual o patriarca tem poder de vida e morte sobre mulheres, mesas, bois, tudo ao redor.

Se esta eleição, que separou famílias, teve alguma utilidade, foi escancarar esta hipocrisia moral. Ela não terá mais lugar. E agora que sabemos disto, nos resta defender todos aqueles que trabalham por uma educação realmente crítica e construtora de respeito a infância. E dizer a verdade sobre o corpo, sobre nossas necessidades e desejos, nada tem de errado.

Perversão é ganhar uma eleição com uma pauta moral sórdida e mentirosa.

* Socióloga. Professora Associada à Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), Chefe do Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do Estado (LESCE/CCH/UENF) e Presidenta da Associação de Docentes da UENF (ADUENF).