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segunda-feira, 25 de março de 2019

Padrões de beleza, violência simbólica, cabelos e representatividade


Publicado originalmente em Prensa de Babel (aqui).

Padrões de beleza, violência simbólica, cabelos e representatividade

Por Renata de Souza Francisco*

Como a maioria das meninas negras que nasceram na década de 80, fui apresentada desde muito nova aos vários métodos de tortura capilar. Tortura sim! Porque hoje entendo tudo que estava por trás daqueles alisantes infernais que queimavam meu coro cabeludo, ardiam meus olhos e era motivo de choro e sofrimento em minha casa a cada 2 ou 3 meses. A hora de cuidar do cabelo era o momento mais traumático do meu dia.

Cresci odiando pentear os cabelos. Achava que um dia meus olhos se assemelhariam a de uma oriental. A força e os rabos de cavalo feitos em meus cabelos eram extremamente apertados. Tudo em nome de não deixar nenhum fio se rebelar e mostrar que de fato eu não tinha cabelos lisos. Meu cabelo era quase assunto do Código Penal, como costumavam dizer popularmente. Era o cabelo bandido: ou estava preso ou armado. Logo, era perigoso em qualquer das suas formas de apresentação.

À medida que fui crescendo, incorporei o argumento irrefletido, do senso comum, de que o cabelo alisado se justificava por ser mais fácil de cuidar e uma alternativa “legal” ao cabelo bandido, afinal meu cabelo era classificado como o cabelo ruim, o cabelo de pico, o cabelo duro e outras coisas do gênero.

Há mais ou menos dois anos atrás, resolvi não mais alisar meus cabelos. E, junto com essa decisão, veio uma enxurrada de questionamentos e uma leve crise existencial. Além de questões existenciais, tive uma profunda crise de representatividade. Onde estão as mulheres negras de cabelo natural bem-sucedidas? Quais atrizes negras fazem papel de destaque? Quantas jornalistas negras vejo na TV?

Comecei a perceber que não faltavam apenas mulheres negras com seus black power na mídia, faltavam pessoas negras como um todo, com cabelo liso ou natural. Não via pessoas negras em posição de destaque, em profissões bem remuneradas. Faltava representatividade. Infelizmente, ainda sou a única negra a frequentar alguns espaços de poder em uma condição “privilegiada”, o que me levou a mais questionamentos.

Aos olhos de quem não é negra ou é negra e nunca questionou seu cabelo alisado, minhas inquietações poderão parecer algo menor. Só que, atrás de um cabelo alisado, existe um campo de disputas por narrativas e poderes. Narrativas ideológicas em que o padrão eurocêntrico se estabelece às custas da autoestima e do sacrifício das muitas mulheres negras, que eram e ainda são “submetidas”, como disse no início, a um verdadeiro ritual de tortura.

Que fique nítido: não quero dizer que todo mundo tenha de fazer uma transição capilar ou queimar as chapinhas e os alisantes em praça pública. Se quiser continuar alisando o cabelo, ok! Não penso que o cabelo alisado, por várias questões que apontarei abaixo, deslegitime o discurso engajado e consciente. Tenho consciência de que a posição de alisar ou deixar de alisar é imposição. Não podemos sair de uma e cair em outra.

Alguns me dirão: “Que exagero! O alisante não pula na cabeça de ninguém”. Sim! Concordo. A colonização do pensamento e as necessidades espelhadas no paradigma eurocêntrico criaram amarras, ou melhor, alisantes para uniformizar os cabelos e os pensamentos. Nós, mulheres negras, para sermos aceitas no mercado de trabalho, na escola e no mercado matrimonial, fomos obrigadas, durante muitos anos, a alisarmos nossos cabelos. Ou seja, sofremos uma violência silenciosa, do tipo que a sociedade naturaliza e ninguém questiona.

Um tipo de violência branda, uma violência que usa artifícios sutis para que as regras impostas pelos que dominam sejam até desejadas. O sociólogo francês Pierre Bourdieu cunhou o conceito de “violência simbólica”, que tomo a liberdade de usá-lo aqui, para pensar a colonização e a normatização de nossos corpos. Afinal, o corpo da mulher sempre foi um campo de disputas, não ficaria o cabelo da mulher negra fora dessa seara.

A violência simbólica “consiste em uma forma de aceitação de crenças, regras partilhadas como se as mesmas fossem normais e naturais”. A ideia do amor materno, a crença de que é papel da mulher cuidar da casa e dos filhos sozinha, de que homens não sentem medo e não podem chorar, dentre outras. Com o alisamento do cabelo é assim, já está estabelecido há muito tempo que alisar o cabelo era uma etapa considerada “normal” na vida de uma menina negra.

O que gerou anos de inflexão da mulher negra sobre seus cabelos. E não as culpo ou, melhor, não me culpo. Pensar no cabelo é pensar em autoestima, é pensar nossa relação com o mundo. Pensar o cabelo das mulheres negras alisado é pensar em não sofrer bullying na escola, é não ter sua capacidade posta em dúvida porque usa seu cabelo natural. Alisar seu cabelo é ter certeza de que terá um par para dançar na festa junina, é a possibilidade de figurar na lista das garotas bonitas da sala quando se está na quinta série. Coisas que para uma mulher branca adulta pode parecer não ter muita importância, mas que para uma criança terá impactos reais para o resto de sua vida adulta.

À medida que comecei a ler mais e entender mais sobre minha condição de mulher e negra na sociedade brasileira, a vontade de não alisar mais meu cabelo só foi aumentando. Mas, como já disse, essa vontade vem cheia de dúvidas e de medos. A transição de uma vida inteira de cabelo alisado para um cabelo natural envolve uma série de etapas esteticamente não muito agradáveis. Adiei e sabotei o processo várias vezes. Quando via uma parte do meu cabelo natural contrastando com o restante alisado, sentia grande incômodo e infelicidade com minha autoimagem.

Conversando com um amigo sobre as dúvidas e medos que estava enfrentando em meu processo de transição capilar, ele me apresentou uma autora estadunidense negra chamada Bell Hooks, que escreveu um texto que me fortaleceu de uma forma que não tive mais dúvidas sobre minha decisão. O texto chama-se: “Alisando nosso cabelo”. Nesse texto, a autora faz uma reflexão sobre a impressão dela acerca do processo de alisar os cabelos com o extinto pente quente. Em um primeiro momento, esse cabelo alisado estava vinculado aos anseios de se tornar mulher, de proporcionar bem-estar e da criação de vínculos entre mulheres.

Hooks nos conta que, como viviam em um mundo segregado racialmente, não era evidente a ideia de que as mulheres negras estavam lutando para colocar em prática um padrão de beleza branco, ou seja, o fato de mulheres brancas serem consideradas um grupo feminino mais atrativo e as mulheres negras de cabelo liso serem mais aceitas do que as de cabelo crespos e encaracolados acabou estabelecendo um padrão de beleza.

Ela segue dizendo que no “patriarcalismo capitalista, essa postura representa uma imitação da aparência do grupo branco dominante e, com frequência, indica um racismo interiorizado, um ódio a si mesmo que pode ser somado a uma baixa autoestima”. Mais uma vez, não me sinto culpada por algum momento de minha vida ter tentado, assim como muitos e muitas ainda tentam, expurgar tudo que me identificasse como negra, porque ser negro(a) no Brasil não é legal, quase no sentido literal da palavra.

Infelizmente, o racismo que estrutura nossa sociedade nos faz ter ódio de nossa cor da pele, de nossos cabelos. Identificar-se como negro(a) no Brasil está além da autodeclaração. É uma questão política. E para alguns é uma questão de vida ou morte, porque nós negros(as) figuramos no topo das piores estatísticas neste país.

* Socióloga; Doutoranda em Sociologia Política (UENF); Professora da rede pública de ensino do Estado do Rio de Janeiro.

segunda-feira, 18 de março de 2019

Escuta como ato político


Escuta como ato político

Dedico este texto a Kenya Gomes, Bruna Machel e Juliana Tavares.

Por Paulo Sérgio Ribeiro

No calendário de lutas estabelecido em março, um mês muito significativo paras mulheres que, em alto e bom som, afirmam a dignidade da pessoa humana em todas as latitudes do globo, participarei como mediador da aula pública "A luta pela vida das mulheres no Brasil pós-eleições", que ocorrerá nesta quarta-feira, no Bandejão da UENF, às 12h (aqui). 

Confesso que o convite muito me honrou devido ao crédito que fora depositado em um homem cujas catalogações (branco, hétero, cis...), quase sempre, confirmam marcadores de opressão nas relações de gênero. 

Poder mediar tais falas e aprender com cada uma delas será um privilégio e, talvez, seja uma das raras oportunidades em que reconhecer-se privilegiado não me coloque em confronto comigo mesmo. 

Convenhamos: será mesmo tão pacífico assim? Se o confronto com o "velho homem" que habita em nós é inevitável, como se sair vencedor sem o sacrifício de outro alguém na jornada para chegar a esta desejável conquista íntima? 

A meu ver, uma maneira bastante generosa seria visitar a obra seminal da filósofa Djamila Ribeiro - "O que é lugar de fala?"[1] -, uma provocação que, até hoje, rende-lhe berros histéricos da extrema-direita e, não menos, um dar de ombros de certa esquerda pouco familiarizada com a agenda pública do(s) feminismo(s). 

Não devo iludir o(a) leitor(a): há não muito tempo, participava sem maiores questionamentos do segundo grupo. Mas, felizmente, a convivência política com mulheres as mais variadas tem imposto um cerco aos últimos focos de resistência do "velho homem" que, teimosamente, vez ou outra ainda sou. 

Com Djamila Ribeiro, entendi que os condicionamentos de uma cultura patriarcal e heteronormativa - embora confirmem à perfeição os atributos do "fato social" concebido pelo velho mestre Émile Durkheim - não me autorizam a abrir mão da responsabilidade ética face àquele "Outro" que se manifesta em tantos rostos, vozes e visões a partir da condição feminina. 

A filósofa e ativista negra delimita tal responsabilidade ética ao desfazer eventuais confusões nas quais muitos recaem quando sobrepõem a noção de "representatividade" àquela dimensão da luta política. Ambas andam lado a lado, por óbvio, mas devem ser distinguidas analiticamente para não sucumbirmos a categorias de acusação que satisfazem azedumes pessoais em prejuízo da intersubjetividade daqueles(as) que podem estar do mesmo lado da trincheira, por assim dizer.

Seguindo os passos de Djamila: é razoável uma mulher negra não se sentir representada por um homem branco, mas não por isso este deve deixar de tematizar a realidade dela a partir do seu senso de realidade. Ora, a não responsabilização daqueles que falam a partir do lugar do privilégio traduzir-se-ia no véu da ignorância com o qual se encobre a pretensão de salvo-conduto para vantagens sociais e econômicas que aquele lugar nos oferece.

As lutas por reconhecimento (ou por "representação") nada mais seriam, portanto, que trazer à luz a arbitrariedade dos espaços de privilégio por parte daqueles indivíduos e grupos segregados em lugares da invisibilidade social ou, noutros termos, em um não-lugar. Porém, lembra Djamila, refletir sobre o lugar de fala não é aceitar acriticamente que "somente os subalternos falem de suas localizações", pois, do contrário, aqueles que estão inseridos na "norma hegemônica" continuarão enxergando a si mesmos de um ponto de vista olímpico[2].

Uma perspectiva relacional, é "só" o que se propõe:

[...] entendemos que todas as pessoas possuem lugares de fala, pois estamos falando de localização social. E, a partir disso, é possível debater e refletir criticamente sobre os mais variados temas presentes na sociedade. O fundamental é que indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado em termos de locus social consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir desse lugar e como esse lugar impacta diretamente na constituição dos lugares de grupos subalternizados[3].

São muitos os ângulos pelos quais Djamila elabora sua perspectiva de análise: a história do feminismo e suas disputas internas; o alcance do feminismo negro no debate público; o diálogo entre feminismo negro e o pensamento decolonial; os dados recentes que confirmam a vulnerabilidade social das mulheres em correlação com as desigualdades abissais do nosso país entre outros. Seu livro, praticamente um manual de combate – melhor dizendo, do bom combate -, chama-me atenção para um aspecto: como não admitir que estamos a léguas de distância daquela perspectiva relacional no próprio modus operandi do campo científico? 

O texto da socióloga Luciane Soares da Silva publicado recentemente no blog (aqui), que desnuda os mecanismos da superseleção escolar à qual ela e tantos(as) outros(as) estudantes negros(as) foram submetidos(as) para esbarrar (como egressos dos cursos de pós-graduação) na falácia meritocrática dos concursos públicos para carreira docente de nível superior, vai ao encontro da interpretação que Djamila Ribeiro dedica ao universalismo na produção de conhecimento. 

Se dimensionarmos a hierarquia social dos objetos - o que faz algo ser ou não de interesse para a pesquisa -, observamos que o privilégio social de intelectuais brancos europeizados é, de fato, um privilégio epistêmico. O postulado de objetividade que diferentes ciências humanas tendem a seguir de perto, na prática, cristaliza-se em um regime de autoridade discursiva em torno de um suposto sujeito "universal" do conhecimento que, todavia, na sua autointitulada função de "Farol de Alexandria" deixa a desejar para tantos outros sujeitos os quais, efetivamente, teriam muito mais a dizer para a elucidação científica dos fatos. 

Ora, o que eu teria a dizer às mulheres que conduzirão a aula pública desta quarta-feira? Algo menos do que elas já possam falar por si mesmas. Nosce te ipsum[4]: o meu lugar de fala nada mais é do que um reflexo da minha capacidade de escuta. Aprimorá-la, assim espero, fará com que vislumbre outros marcos civilizatórios nas vozes dissonantes dessas mulheres e, quem sabe um dia, dará passagem a um "novo" homem. 


[1] RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.
[2] Op. cit., p. 86.
[3] Op. cit., p. 88.
[4] “Conhece-te a ti mesmo”.