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sexta-feira, 10 de maio de 2024

Com todo respeito e solidariedade aos gaúchos, não podemos esquecer os fundamentos econômicos, sociais e políticos desta tragédia

Fonte: postagem no Instagram dos perfis midianinja e designativista.

Jefferson Nascimento*

 

A memória individual possui sua singularidade a partir do processo histórico de vida do indivíduo que, a partir de sua inserção nas relações sociais e sua posição social, realiza a evocação de lembranças que estão em sua consciência virtual. Tanto as lembranças quanto os mecanismos de evocação são de caráter social [...] A memória social das classes e grupos sociais é seletiva, da mesma forma que a memória individual e os mecanismos de ativação, tal como já colocamos, também são os mesmos [...] existe uma luta pela memória e os principais agentes desta luta são as classes sociais e os seus representantes   intelectuais.   Tanto   na   esfera das representações cotidianas (“senso comum”) quanto na do pensamento complexo, esta luta se faz presente. Tal como colocou certa vez Adorno, o esquecimento facilita a reprodução [...] A luta pela memória é, portanto, simultaneamente, teórica e prática (Nildo Viana, 2006).[i] 

 

O argumento de que não é hora de procurar culpados para não politizar as enchentes do Rio Grande do Sul é, em si, um posicionamento político. Uma das mais eficazes formas de fazer política é ocultar os conteúdos político, econômico e social de uma dada situação, naturalizando-a. Naturalizar fatos sócio-históricos é uma estratégia para esvaziar o debate e proteger o status quo e suas posições hegemônicas.

Respeitando todas as crenças, não se trata de pessoas abandonadas pelas graças ou castigadas pela fúria divina e, sim, da desgraça produzida pela submissão das necessidades humanas aos interesses dos agentes do “mercado”. As consequências de uma catástrofe causada por forças da natureza não são apenas uma questão natural e nem podem ser resumidos como infortúnios oriundos de fatores transcendentais. O desmatamento, a queima de combustíveis fósseis, as diversas formas de poluição, a ocupação e os usos do solo ocorrem em um processo histórico movido por fatores econômicos e políticos. Logo, nessas catástrofes as pessoas são mais ou menos afetadas por efeitos que podem ser minimizados ou maximizados politicamente.

Portanto, não se pode politizar o que já é político. O ponto central é como e para quê o debate e a disputa de versões vão ser mobilizados. Ele visa compreender os processos políticos que foram realizados e/ou negligenciados piorando o drama das pessoas? Visa obter apoio para interesses específicos? Sua interdição visa obscurecer ocorrências sociais, econômicas e políticas que definiram os contornos da catástrofe? É claro que outras perguntas podem ser feitas, mas estas são exemplos do esforço para compreender o que está por trás de certas posições e discursos

É indispensável discutir vários elementos não-naturais sobre a grave situação do Rio Grande do Sul. Desde fatores globais e estruturais (a relação entre o modo de produção capitalista e as mudanças climáticas) aos fatores nacionais, regionais e locais (necessidade e rigidez dos licenciamentos ambientais, disponibilização de recursos públicos para manutenção de barragens, investimento em Defesas Civis e Corpo de Bombeiros e produção de políticas públicas com base em evidências científicas).

Este último, depende de um pacto social contra o negacionismo, que se apresenta por meio de diversos movimentos (antivacinas, terraplanismo, negação da emergência climática, etc.) e amplia sucessivamente seu alcance com a cumplicidade das corporações proprietárias das redes sociais, produzindo cada vez mais mortes. Desafortunadamente, tais movimentos negacionistas não se restringem à sociedade civil e orientam a ação de diversas autoridades públicas, por adesão ideológica, aceno ao mercado ou à determinada base eleitoral.

Entretanto, o crescente alcance do negacionismo não é um acidente histórico. Em 2021, tratei em parceria com Leonardo Sacramento da relação de reforço mútuo e de convergência ativa entre negacionismo e racionalidade neoliberal – texto publicado neste blog e no site A Terra é Redonda. Como dissemos no referido artigo: “[...] o neoliberal precisa negar a História e o saber científico contextualizado porque seus fundamentos não resistem à análise séria dos fatos.” Os componentes da racionalidade neoliberal dependem de uma base a-histórica, da negação de verdades sistêmicas e da manipulação das noções de razão, identidade e objetividade. Caso contrário, não seria possível sustentar o neoliberalismo como doutrina. Hayek[ii] teoriza que há uma esfera natural, uma esfera artificial produzida pela iniciativa humana e ambas são intermediadas por uma ordem espontânea (nem natural nem artificial) oriunda de ação humana livre de desígnio. O mercado, parte dessa ordem espontânea, teria sido instituído independente de vontade ou intencionalidade e atuaria como instância reguladora capaz de corrigir problemas sociais.

A ortodoxia como orientação da política econômica é sustentada pela crença na capacidade do mercado resolver as grandes questões humanas, cabendo ao Estado conferir previsibilidade aos agentes e definir com clareza os parâmetros garantidores da liberdade econômica. Com isso, as políticas públicas passam a ser focalizadas e os investimentos públicos limitados nas áreas sociais pelo temor do déficit. Logo, a submissão das necessidades humanas aos interesses econômicos, preconizada pela doutrina neoliberal, deve estar no centro das discussões para compreender a gravidade de tragédias relacionadas a fenômenos naturais.

O Governo Dilma Rousseff (2011-2016), desde a tragédia na Região Serrana do Rio de Janeiro (2011), estimulou pesquisas e aumentou investimentos em prevenção e reação às tragédias climáticas, resultando na modernização dos sistemas de Defesa Civil no Brasil. O mesmo governo financiou uma série de estudos para projetar os impactos das mudanças climáticas no Brasil. Era o programa Brasil 2040, iniciado em 2013, cujas pesquisas custaram R$3,5 milhões e identificaram a tendência de chuvas acima do normal na região Sul e escassez no Norte do país. No entanto, o início do segundo mandato de Dilma marcou a capitulação total à ortodoxia neoliberal de Joaquim Levy, levando ao abandono do programa em 2015.[iii] O Ministério do Meio Ambiente atual, liderado por Marina Silva, demonstrou a intenção de retomar o programa.

Passamos pelos governos Temer e Bolsonaro, convivendo com eventos que demonstraram a gravidade das mudanças climáticas, sem qualquer projeto ou programa preventivo. Ainda mais grave é que os recursos federais para a prevenção de enchentes encolheram 80% desde 2015, quando a ortodoxia neoliberal retomou a hegemonia sobre a política econômica sem oposição. Para ser mais direto, o orçamento para esta finalidade foi R$6,8 bilhões em 2014, com o neoliberal Levy caiu para R$2,9 bilhões. Chegando a R$1,6 em 2019 e R$1,3 bilhões em 2021 e 2022 sob Guedes/Bolsonaro. O orçamento executado em 2023, enviado ao Congresso por Guedes/Bolsonaro, previu R$1,4 bilhões para 2023. O atual governo elevou para R$2,6 bilhões o orçamento para prevenção de enchentes de 2024.[iv] Ainda assim, muito longe do patamar de 2014. Ou seja, a fúria do clima é agravada pela sanha do mercado financeiro sobre o orçamento público com a conivência de governos que aceitam que as necessidades humanas sejam submetidas aos interesses rentistas.

Não ficam atrás os governos estaduais e as prefeituras gaúchas. Eduardo Leite não só reduziu recursos para prevenção, como também retirou praticamente todo o orçamento para investimento nas Defesas Civis, enfraquecendo a capacidade de resposta em situações emergenciais como essa. Paradoxalmente, um ávido defensor do neoliberalismo justifica que a dívida do estado limita os recursos para prevenção de enchentes. Soa irônico que um neoliberal convicto reclame de um dos fundamentos da política econômica neoliberal. Ademais, Leite tenta desvincular a tragédia das alterações de 480 normas do Código Ambiental estadual feitas por sua gestão em 2019 e alinhadas à política ambiental federal de Ricardo Salles/Bolsonaro. Novamente, as necessidades humanas foram submetidas a interesses econômicos. Sobre isso:

O diretor científico e técnico da Agapan (Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural), Francisco Milanez, nega que a sociedade civil e entidades ambientalistas tenham participado da construção do novo código. Biólogo e pós-graduado em análise de impacto ambiental, ele afirma que as mudanças foram tomadas de forma unilateral, encabeçadas pelo governador [...] Milanez conta que o antigo Código Ambiental levou quase dez anos para ser elaborado e a primeira tentativa de mudança, a pedido de Leite, era em regime de urgência, mas foi impedida pela Justiça. O processo então ocorreu 75 dias depois com a aprovação da Assembleia Legislativa [...] A legislação original foi construída, segundo ele, em conjunto com as federações das indústrias e da agricultura, entidades ambientais e sociedade civil [...] Milanez critica também a sanção do governador, neste ano, de lei que flexibiliza a construção de barragens e outros reservatórios de água dentro de áreas de proteção permanente. De acordo com o ambientalista, essa medida é preocupante por poder afetar o fluxo natural da água, o que pode gerar cheias de rios e chuvas mais concentradas.[v]

Na mesma linha, o prefeito bolsonarista de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB-RS), e seu vice, que presta serviços para  a produtora negacionista Brasil Paralelo, zeraram os recursos para prevenção de enchentes em 2023. Melo justifica que, apesar do que consta no Portal da Transparência, os gastos para evitar enchentes são transversais e cita outras obras que teriam efeito preventivo realizados pelo Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE). Contudo, não explicou o impacto da redução de 47,6% na força de trabalho do setor (de 2.049 para 1.072 servidores). A precarização em um serviço público muitas vezes antecede um processo de privatização e, com menos servidores, menos recursos e pressão para superávit (embora não seja ainda uma empresa privada), o resultado é:

Pesquisadores confirmam que a falta de manutenção colocou o sistema de prevenção em risco. Parafusos, borrachas e trilhos se deterioraram ao longo da estrutura de proteção. “Não é uma crença, é uma constatação. Falta manutenção no sistema.” (Fernando Dornelles, professor e doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental da UFRGS).[vi]

Sem qualquer autocrítica, porta-vozes dos agentes do mercado financeiro na imprensa brasileira não deixaram de cobrar pela meta fiscal e de fazer prognósticos ameaçadores em caso de aumento do déficit.[vii] Novamente, segundo esses porta-vozes, os balizadores do conteúdo e da forma de socorro ao Rio Grande do Sul deveriam estar submetidos aos compromissos ortodoxos definidos pelos agentes financeiros. Que, aliás, estavam satisfeitos com a fidelidade de Eduardo Leite a esses compromissos, garantindo três anos de vigorosos superávits nas contas públicas estaduais: em 2021, foram R$2,54 bilhões; em 2022, R$3,34 bilhões; e R$3,61 em 2023.[viii] Esses bilhões foram alcançados por meio de reformas, privatização da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), adesão ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF) e muita restrição nos investimentos sociais - incluindo prevenção às enchentes e verbas de custeio e investimento à Defesa Civil, como vimos.

É necessário investigar os atos e omissões que ampliaram o drama da população. Além disso, é preciso compreender as razões para que a mobilização e a comoção em torno desse triste episódio tenham sido muito maiores que outras tragédias causadas pela chuva. Respeitosamente, é necessário entender o nível e os determinantes da comoção a despeito de tragédias serem sempre dramáticas, incomparáveis e não hierarquizáveis.

Voltando ao Rio Grande do Sul: até esse momento, foram 116 mortos, 756 feridos, 143 desaparecidos e mais de 400 mil pessoas fora de suas casas nas enchentes do Rio Grande do Sul. Em 2011, foram 900 mortos e mais de 35 mil desabrigados na Região Serrana do Rio de Janeiro. Em 1967, deslizamentos em Caraguatatuba (SP) mataram entre 450 e 500 pessoas. No mesmo ano, deslizamentos mataram 300 pessoas e feriram mais de 25 mil no Rio de Janeiro. Recentemente, foram 241 mortos em deslizamentos em Petrópolis (RJ) em 2022. Há, pelo menos, três especificidades que devem ser consideradas.

1) Duração. As tragédias com mais mortos foram eventos súbitos cuja destruição ocorreu de modo concentrado em um dia ou período de dia. A tragédia do Rio Grande do Sul é uma daquelas em que o drama se prolonga por dias e dias. Esse tipo de situação é menos comum, como os 129 mortos na região metropolitana do Recife e zona da mata de Pernambuco em maio de 2022 e os 74 mortos no estado de Minas Gerais em janeiro de 2020.

2) Extensão. A dimensão já impactada no Rio Grande do Sul é inédita, o que mais se aproxima é o acontecimento de Minas Gerais (2020). Na ocasião, mais de 256 cidades decretaram estado de emergência ou calamidade pública e 53 mil pessoas foram afetadas (desalojadas, desabrigadas e feridas). Até o momento, 437 dos 497 municípios gaúchos e mais de 1,9 milhões de pessoas foram afetados. Ou seja, quase todo estado está debaixo d’água e isso demanda muito mais mobilização externa (outros estados, governo federal e até países vizinhos) para enfrentar a situação.

3) Perfil Social. Até pela extensão, essa tragédia coloca todo e qualquer brasileiro à frente do espelho. Não se trata mais de impactos circunscritos às habitações em área de risco (margens e proximidades de rios, encostas de morro, etc.) que, quase sempre, concentram as vítimas em determinados grupos sociais empobrecidos e marginalizados. No Rio Grande do Sul, um dos técnicos de futebol mais bem pago do país precisou ser resgatado no hotel em que reside, jogadores de futebol de clubes da Série A (Grêmio, Internacional e Juventude) tiveram suas casas inundadas, deputado estadual negacionista fez vídeos mostrando que a rua de sua casa se tornou um rio, estádios de futebol, centro de treinamento, aeroporto, pontes e rodovias foram alagados e/ou destruídos pela força das águas.

Estamos, portanto, diante de um evento cuja duração já está entre as maiores e ainda não temos previsão de solução, a quantidade de municípios afetados é maior e atinge quase todo o estado e, dessa vez, as vítimas não se restringem quase exclusivamente aos pobres, cuja ineficiência das políticas públicas e a negligência das autoridades já foram normalizadas.

Dessa vez, todos fomos obrigados a olhar no espelho e, em tese, deveríamos nos sentir impelidos a refletir sobre a importância da ciência e os riscos da atual dinâmica da apropriação econômica. Tais análises sistêmicas ocorrerão minoritariamente, mas não devemos nos furtar de, pelo menos, elaborar uma questão mais imediata: depois da pandemia, de Mariana (MG) e de diversas tragédias relacionadas às chuvas, quantas cidades mais irão submergir e quantos corpos mais vamos procurar até compreender a inconsequência das políticas neoliberais que paralisam as funções sociais do Estado?

 

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*Jefferson Nascimento é Doutor em Ciência Política, professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), membro do Núcleo de Estudos dos Partidos Latino-Americanos (NEPPLA) e autor do livro “Ellen Wood: o resgate da classe e a luta pela democracia"


[i] Citação extraída do artigo “Memória e Sociedade: uma breve discussão teórica sobre memória social”, publicado na Revista Espaço Plural, disponível em: https://saber.unioeste.br/index.php/espacoplural/article/view/483/397

[ii] Livro O caminho da Servidão, lido na versão em espanhol: El camino de la servidumbre, Alianza Editorial, 2007.

terça-feira, 3 de agosto de 2021

Pandemia, Crise Política e Crise do Conhecimento?

 

Pandemia, Crise Política e Crise do Conhecimento?[1]

 


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José Colaço e Roberto Kant de Lima[2]

 

O discurso científico foi uma das primeiras coisas atacadas por autoridades políticas nacionais e importantes personalidades públicas brasileiras, desde o início da pandemia e pelas mais variadas razões. Esta atitude, como sabemos, foi designada como “negacionismo”, uma vez que ela mobiliza a negação, a não aceitação ou a rejeição de evidências basilares que até mesmo a ciência não precisa de muito esforço para tentar explicar. Como, por exemplo, que temos um novo e desconhecido vírus que se transmite pelo ar circulando por aí e precisamos nos mobilizar, de alguma forma, para conter isso.   

Nas etnografias que realizamos sobre conhecimentos naturalísticos, ou seja, sobre os conhecimentos que grupos sociais que estabelecem uma relação direta, biográfica e umbilical com o meio ambiente natural possuem sobre diversos os aspectos que o compõem, ficou evidente que estes conhecimentos quase nunca adquirem status de conhecimento com “C” maiúsculo para pesquisadores e/ou agentes de políticas públicas das áreas de oceanografia, biologia marinha, geologia, agronomia, etc., o que implica obstaculizar seu reconhecimento oficial, por parte do Estado, ou mesmo sua incorporação na implementação de políticas de conservação ambiental, planos de manejo de áreas protegidas etc. 

Por isso mesmo, se por um lado, tornou-se incômodo o ataque e a defesa incondicional da ciência na atual conjuntura,  por outro incomodou também a forma como a classe média esclarecida começou a se relacionar com ciência neste contexto. Com um discurso abertamente crítico ao atual Governo Federal, sobretudo no que diz respeito à condução da maior crise sanitária que já vivemos, parte considerável da grande mídia nacional iniciou uma campanha sem precedentes, a favor da ciência e tudo aquilo que dela pode ser derivado, como a vacina, os materiais de proteção, os protocolos sanitários, as pesquisas, os especialistas, as tabelas, os números, as estatísticas e por aí vai. A verdade é que não há um só dia que esta mesma mídia não exiba a fala de um especialista, ou seja, de um cientista, ou de um médico, sobre o modo através do qual a pandemia tem sido mal conduzida no Brasil. Nos expomos às elaborações de vários especialistas, como se todos eles tivessem um conhecimento uniforme sobre o vírus, o que misturou em sua maioria médicos – que têm a perspectiva do tratamento da “doença” – com aqueles que procuram estudar e conhecer o vírus – especialmente os virologistas e aqueles que têm suas especialidades na lida com as epidemias e a saúde pública. Todas essas perspectivas diferenciadas de abordagens de uma mesma pandemia produziu uma cacofonia de opiniões, aparentemente discordantes, se não se distingue de onde elas partem.

A voraz defesa da ciência, ou do pensamento científico, parece encenar uma espécie de “iluminismo tardio”, anacrônico e superficial, em plena segunda década do século XXI. Uma cruzada da racionalidade contra as trevas e o obscurantismo que, nesta edição contemporânea, ganhou o nome, acertadamente, de negacionismo. Essa narrativa do “iluminismo tardio” peca, no entanto, em não conseguir se comunicar com um considerável estrato da população que nunca acreditou ou vem sendo secular e sistematicamente excluída, por vários motivos, inclusive educacionais, sobre a eficácia das práticas científicas. Tal narrativa soa, por vezes, arrogante, e parece reificar a ciência como, ao fim e ao cabo, a única forma de razoável “estar no mundo” castigado pela pandemia. 

Tornamo-nos pesquisadores em antropologia num período em que a disciplina já tinha “ido para o divã”, em diversas ocasiões, para rever seu passado etnocentrista, racista, colonial, machista, racionalista, hiper ocidentalizado etc. Isso não significa que ela não seja isso, ou parte disso, ainda hoje. O que queremos destacar aqui, no entanto, é que há uma atitude fundamental para o exercício, não apenas da antropologia, mas da prática científica em geral. Estamos nos referindo ao ceticismo. Na antropologia ficou charmoso, pelo menos no Brasil, chamar ceticismo de “estranhamento”. Sem isso não há ciência, pois sem ceticismo não há experimentação nem especulação. 

Experimentação e especulação são características apenas do chamado “pensamento científico”? A ciência antropológica nos chamou a atenção de que todas as formas de pensamento humano partem de um mesmo princípio que combina, entre outras operações, a experimentação das coisas que habitam o mundo, sejam elas seres invisíveis aos olhos humanos, tais como micro organismos ou espíritos, e especulação sobre causas ou efeitos de fenômenos das mais diversas naturezas. Basta que lembremos de um desses textos, a “Ciência do Concreto”, capítulo do livro “O Pensamento Selvagem” de Claude Lévi-Strauss.  

Há outro componente que deveríamos destacar brevemente aqui, que escapa a isso que estamos chamando de reificação da ciência ou iluminismo tardio: a crença. A identificação com a ciência está muito mais relacionada ao ajustamento a um projeto de sociedade, com componentes morais, valorativos e práticos do que a sua real capacidade de resolver nossos problemas enquanto sociedade. “Acreditamos” na ciência e na tecnologia menos por seus resultados e mais, porque, naquilo que os sociólogos chamam (ou chamavam) de modernidade, parte considerável da sociedade sucumbiu aos chamados Sistemas Peritos, como tentou definir, já há alguns anos, Anthony Giddens. Sempre que pensamos em nossa relação com a ciência e com a técnica, é interessante lembrar exemplo do avião: não precisamos conhecer como um avião funciona, não precisamos entender de engenharia aeronáutica, não precisamos saber pilotar um avião, não precisamos saber em detalhes as condições atmosféricas durante um voo para sabermos que o avião é o meio de transporte mais seguro que a humanidade já produziu e, ao mesmo tempo, não aceitar esta condição e ter “medo de avião” é considerado, geralmente, algo infantil ou irracional. 

Se a noção de Sistemas Peritos aqui grosseiramente resumida é controversa na teoria social de hoje, de todo modo podemos admitir que a ciência, além de uma expressão do pensamento, de um conjunto metódico e bem arranjado de procedimentos e de uma linguagem é, também, uma crença, e por isso recorremos a esta noção num momento em que observamos construções de narrativas midiáticas e o uso exagerado e irresponsável das redes sociais (com vinculações de informações parciais, superficiais ou mesmo, claro, as agora conhecidas Fake News). 

Assim, a reificação, ou sacralização da ciência nos soa estranha quando o pensamento científico parece surgir como o “grande salvador da humanidade”. Claro que em relação ao combate ao vírus e à pandemia, bem como para outras tantas situações, pensamos que a humanidade não criou opções muito melhores. Nos preocupa, no entanto, a brecha que, por conta da crise humanitária que atravessamos, pode ser aberta para intensificar algo que já existe e para o qual a ciência foi muitas vezes utilizada sem parcimônia: sua capacidade de produzir hierarquias entre as áreas do conhecimento, mesmo entre aquelas consideradas científicas, como os contrastes que desigualam em status as “ciências do espírito” e as “ciências da natureza”, ou definindo o que é útil ou não para ser pesquisado. 

Mas a hierarquização dos conhecimentos não reside apenas dentro da ciência. Na verdade, o que mais tem chamado atenção é a produção de hierarquias na relação entre a ciência e outras formas de pensamento consideradas “não científicas”, “não acadêmicas” ou “não formais”. Nos referimos, portanto, ao que acontece “fora” dos muros dos laboratórios ou institutos de pesquisa que, como a antropologia sobretudo tem tentado mostrar, apenas atualiza uma hierarquia que é de ordem moral e social se pensarmos, por exemplo, quem são os detentores do conhecimento científico e quem são os detentores dos conhecimentos naturalísticos ou tradicionais. No caso de sociedades desiguais como a brasileira, infelizmente, como temos acompanhado em nossas pesquisas e etnografias sobre as políticas de reconhecimento de povos ou comunidades tradicionais, ou seja, grupos indígenas, quilombolas, extrativistas, pescadores artesanais, por exemplo – detentores dos tais conhecimentos “não científicos” – a tendência tem sido além do aprofundamento das desigualdades não só no que diz respeito ao status dos conhecimentos naturalísticos que elas detêm, mas também à sua exclusão ao acesso a direitos sociais básicos, além de outras violências e silenciamentos.

O que nós, cientistas ou não, não podemos fazer, é atualizar a falsa ideia, tanto positivista como iluminista, de que há algo como uma “evolução do pensamento humano”, de uma fase mais simples e tosca, para uma fase mais elaborada e sofisticada, de modo que as outras formas de pensamento serão dirimidas, assimiladas ou simplesmente, desaparecerão, como chegou-se a afirmar em séculos passados do suposto duelo entre Ciência e Religião.   

A despeito destas elaborações, estranhamentos e críticas não temos dúvida que devemos defender a ciência contra qualquer tipo de ataque que tente difamá-la, caluniá-la ou desacreditá-la em prol de um projeto de “produção de mundo” que tem como base a aniquilação da diferença, das controvérsias e da vida. Não devemos esquecer que praticar ciência também é um ato político do qual, nós cientistas, não podemos nos esquivar. A ciência não é neutra nunca e nem é objetiva sempre. Nós cientistas, não devemos ter medo de reconhecer estas características tão marcantes em nosso ofício. Cada vez que conseguimos reconhecer isso, estaremos dando passos importantes, como a antropologia tem tentado realizar, para o reconhecimento da pluralidade do pensamento humano expresso na diversidade de modos de vida ou de se “estar no mundo”. 

* El Hombre, controlador del universo - Diego Rivera - Disponível em: https://i2.wp.com/arteref.com/wp-content/uploads/2019/12/Diego-Rivera-El-hombre-controlador-del-universo.jpg?w=800&ssl=1  



[1] Texto originalmente publicado no Blog Ciência & Matemática do Jornal O Globo, republicado aqui com a autorização dos autores. Post original disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/pandemia-crise-politica-e-crise-do-conhecimento.html, acesso em 03 de ago. de 2021.


[2] José Colaço e Roberto Kant de Lima são, respectivamente, pesquisador e coordenador  do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC - www.ineac.uff.br).

 

terça-feira, 28 de julho de 2020

A encruzilhada imposta pelo bolsonarismo


A encruzilhada imposta pelo bolsonarismo[1]


Rodrigo Monteiro[2]


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Em novembro de 2018, ao término das eleições, já não era possível falar, como Dumbledore, em Harry Potter, que ‘tempos difíceis se aproximam’. Já estávamos nele desde 2015, 2016. Os céus só ficaram mais sombrios, dominados por comensais da morte, dementadores e com o país sendo ‘governado’ por “You Know Who”, ou “Aquele que não se deve dizer o nome”.


Sua eleição não é um fenômeno isolado nem simples, mas representou, entre outras, a ascensão de uma parcela da sociedade brasileira que sempre existiu e circulou entre nós e que foi duramente combatida até que se tornasse vitoriosa nesse tão distante ano de 2018.


A vitoriosa expressão máxima do “bandido bom é bandido morto”, “tá com pena, leva para casa”, “direitos humanos para humanos direitos” tinha, enfim, seu apogeu. Tolos e tolas acreditaram que o desprezo pela vida que “You Know Who” expressava ficaria contida aos pretos e pretas, aos pobres das periferias brasileiras, aos que não estavam na sua caixinha.


 Surpresos(?) descobriram e seguiram junto com seu inominável afirmando que ‘vai morrer quem tem que morrer’. O sentido da artilharia do mestre do terror não estava mais restrito aos de pele escura, ao público LGBTQ+ e tantos outros destinos de seu ódio e de seu projeto político de extermínio. O alvo agora se tornou difuso com os ‘que têm que morrer’. O alvo é universal, até que seja seu pai, sua mãe, seu filho, sua filha, seu tio, sua tia, ou mesmo você. Mas, como já disse Celso Rocha de Barros: ‘morto não vota’.


O projeto está claro e está em curso. A cada dia se torna mais insegura uma simples ida ao supermercado. A cada dia mais e mais pessoas estão portando um vírus ainda sem vacina, ainda sem curas farmacológicas, mas que poderia ser controlado, se o país adotasse, com razoabilidade, padrões e procedimentos que boa parte do mundo onde o genocídio não é a política pública em curso, acabaram por adotar e retornar com mais confiança às suas rotinas.


Ainda que de difícil detecção, sabe-se que um programa básico pode ser feito para controlar a disseminação da doença, reduzir mortes e fazer com que as atividades econômicas e sociais possam regressar com população mais segura para sentar em um bar ao fim da tarde para um chopp, um café, ou uma simples e essencial “conversa fora”.


Amigos e amigas podem ser portadores de algo que pode matar. “E daí?”. “Vai morrer quem tem que morrer”.


Nesse ritmo, turismo doméstico e internacional seguem comprometidos, bem como atividades educacionais, de lazer, cultura, entretenimento, enfim, toda a economia terá desempenhos débeis. Mas vai ‘morrer quem tem que morrer’. ‘E daí?’.


Negacionistas, bolsonaristas, dementadores e comensais da morte se espalham pelas cidades e junto com eles, vão um pequeno ser, tendo seu trabalho facilitado, espalhando doença, morte, medo, insegurança.


Nessa toada, estamos todos, e os ainda confinados, em uma profunda encruzilhada: resistir no distanciamento social às custas de saúde física e mental, ou correr riscos de entrar em um cômodo escuro com ratoeiras que podem custar vidas, saúde e planos futuros.


Aqueles que precisam da rua para o trabalho seguem expostos em cidades onde o vírus segue solto, fazendo seu trabalho e tendo parceiros raros de se ver pelo planeta.


O bolsonarismo e o negacionismo não são para amadores, colocam a todos sob risco de adoecer ou morrer, de fazer adoecer e de fazer morrer.


Nossa sociedade está oferecendo a resposta mais desumana, mais anti-sociedade que um coletivo humano pode oferecer a si mesmo: a morte de seus vulneráveis a um 'inimigo invisível'. O projeto de negação da sociedade se instala. Banalizamos e naturalizamos que três boeings 747 caiam por dia sob nossas cabeças.


Não há limites para o bolsonarismo e o negacionismo.


Ou há?





[1] Texto republicado com a autorização do autor. A publicação original pode ser conferida em: https://www.facebook.com/rodrigo.monteiro.5015/posts/10220839669214453, acesso em 28/07/2020.


[2] Dr. pelo Instituto de Medicina Social, UERJ. Professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da UFF-Campos, RJ e do PPGSP/IUPERJ. É autor, dentre outras produções, de “Torcer, lutar, ao inimigo massacrar: Raça Rubro Negra”, publicado pela editora da Fundação Getúlio Vargas.