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quarta-feira, 28 de setembro de 2022

A indispensável Política da Dignidade - Fabrício Maciel

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A indispensável Política da Dignidade **


Fabrício Maciel***


Mais um ano eleitoral está em curso e este é sem dúvida um dos momentos mais complicados da história recente do Brasil. Todas as pesquisas apontam para a polarização definida entre Lula e Bolsonaro, o que já deixa claro que um segundo turno sangrento nos espera. A despeito de alguns posicionamentos otimistas de setores da esquerda, há muitos motivos para preocupação e o primeiro deles é que Bolsonaro vem crescendo nas pesquisas. Em tempos de política líquida, adaptando aqui o conhecido conceito de modernidade líquida do grande Zygmunt Bauman, nos quais tudo se decide quase em tempo real, podemos aguardar grandes novidades até as vésperas da eleição. O vale-tudo está apenas começando.


Entretanto, se não quisermos ficar presos ao que costumo chamar de ilusões da conjuntura, provocadas pela dinâmica da política líquida, precisamos reconstruir os cenários estruturais de ordem maior que nos trouxeram até aqui – até para projetar algum futuro menos desesperador. Para tanto, temos que escapar da novelização da política, tarefa para a qual a grande mídia se especializou nos últimos tempos. É claro que a compreensão dos fatos atuais no campo político é relevante para a tentativa de projeção de algum futuro. Entretanto, não podemos ficar presos à romantização dos atores políticos, que esconde sistematicamente a ação do campo econômico e seus efeitos na vida real como um todo.


Com isso, o desafio consiste em saber como chegamos até aqui e para onde podemos ir. Para tanto, precisamos resgatar o que eu gostaria de definir aqui como uma política da dignidade para o Brasil contemporâneo. Tal política necessita da construção de um projeto real de transformação social, que seja encampado pela esquerda e levado a sério até a eleição e principalmente depois dela. O início deste esforço teórico e político precisa necessariamente reconstruir e compreender o que seria o seu oposto, ou seja, o que chamarei aqui de política da indignidade, aquela que vigora no Brasil atual, levada a cabo e aperfeiçoada pelo governo Bolsonaro, chancelada pela moralidade bolsonarista que o mesmo representa.


A política da indignidade tem sido facilmente descrita, mas nem sempre compreendida em sua profundidade. A noção de dignidade, que consta na Constituição brasileira e em outras várias ao redor do mundo, nos remete ao mínimo que uma pessoa precisa para garantir sua integridade física e moral. Ao longo de minhas pesquisas acadêmicas, procurei desenvolver a ideia de trabalho indigno, com o intuito de tematizar aquele tipo de trabalho que, mais do que precário, nos remete a condições humilhantes para a sua realização. Trata-se do trabalho realizado pela ralé brasileira, que vaga entre o desemprego completo e as ocupações humilhantes. Este tipo de trabalho não garante o mínimo de proteção ao corpo e ao espírito, exigido de todas as pessoas na vida moderna.


A política da indignidade no Brasil atual inicia-se com o golpe de 2016 e a chegada ilegítima e imoral de Michel Temer ao poder. Não por acaso, uma das principais marcas de seu governo é a implantação da reforma trabalhista. Essencialmente, ela desarma totalmente os trabalhadores diante dos empregadores, ou seja, trata-se da institucionalização da política da indignidade. Precisamos definir dessa maneira, pois é exatamente o que ela faz, ou seja, a indignidade passa a ser um horizonte real para um número cada vez maior de brasileiras e brasileiros. A indignidade aqui significa o risco efetivo de, a qualquer momento, cair na situação de não se ter o mínimo material e consequentemente moral para a existência de uma pessoa.


A política da indignidade, neste sentido, é um resultado imediato da maximização dos princípios do mercado e da atualização da moralidade meritocrática. Não por acaso, Jair Bolsonaro é o representante ideal dessa moralidade, basta observar atentamente seu discurso de posse e vários outros ao longo de seu governo. Ele é o advogado do novo capitalismo digital e de seu novo espírito, no qual o elogio da livre iniciativa, direcionado especialmente para as classes populares, se torna uma das grandes novidades. Para a constatação dessa afirmativa, basta observar a forma como seu governo se apropria da pauta trabalhista ao longo da pandemia, deixando a esquerda atônita diante do roubo de sua principal bandeira do passado, que atualmente ainda precisa disputar ofegante e cambaleante com a pauta identitária o seu lugar ao sol.


Diante deste trágico cenário, é preciso reconstruir a pauta trabalhista, considerando a nova realidade das classes populares, imposta pelo novo capitalismo de plataformas e sua moralidade ultra-meritocrática. Esta é a principal tarefa de uma política da dignidade, urgente para o Brasil atual.


A tentativa de construção de uma política da dignidade foi um dos maiores esforços da política progressista, não necessariamente de esquerda, ao longo do século XX, em vários países do mundo. Aqui, temos um grande aprendizado a por em prática. No período da Grande Depressão norte-americana, por exemplo, posterior à crise de 1929, entre 1933 e 1937, Franklin Roosevelt implementou o New Deal, ou seja, uma série de programas econômicos e sociais para resgatar a economia nacional e seu povo dos estragos da crise. Trata-se nada menos do que de uma política da dignidade. Não se trata aqui naturalmente de defender os países capitalistas centrais que, obviamente, tiveram condições históricas favoráveis para tanto, mas sim de reconhecer políticas eficazes contra a desigualdade, diante do fracasso do socialismo real do outro lado.


No período posterior à II Guerra mundial, algumas das principais economias do Atlântico Norte como Alemanha, Inglaterra e França vão presenciar os seus Trinta anos gloriosos, entre 1945 e 1975. Trata-se da fase áurea do capitalismo moderno, na qual o Welfare state quase vai nos convencer de que o capitalismo seria a melhor forma de economia e de vida que a humanidade poderia ter. Mais uma vez, diante do fracasso do socialismo real nas mãos do stalinismo, é o que tivemos no momento. O grande aprendizado é que a intervenção consciente e orientada do Estado na vida econômica de toda a nação pode impor regras ao mercado e garantir minimamente a dignidade para a maioria da população. Não é outra a constatação que será feita por grandes pensadores do capitalismo como Karl Polanyi, que hoje influencia com justiça toda uma geração de estudiosos sobre o tema.


Na definição de Robert Castel, um dos principais analistas deste período, que ele define com sociedade salarial, o Estado de bem estar significou a garantia do quase pleno emprego, segurança e seguridade social, o que por consequência assegura a quase cidadania plena para estes países. Não se trata aqui de idealizar os países centrais e ignorar o histórico de imperialismo e colonialismo que possibilitou seu acúmulo de riquezas. Trata-se, mais uma vez, de buscar o aprendizado histórico diante de experiências concretas que possam construir, senão um socialismo utópico ainda distante, apenas um capitalismo social minimamente digno.


Na história moderna do Brasil, que começa com Vargas, nunca conseguimos implantar uma política da dignidade semelhante aos Estados Unidos ou à Europa, por razões históricas de nossa desigualdade estrutural. A dimensão do problema é grande e nada simples. Entretanto, tivermos esforços realistas, dentro do possível, que começam com o próprio Vargas, no sentido de buscar uma política da dignidade. Com efeito, a sociedade do trabalho no Brasil inicia-se com Vargas, quando este tenta equalizar as exigências do capitalismo industrial que chegava ao Brasil, com nossa força produtiva interna. Sem a garantia de um patamar mínimo de dignidade para a classe trabalhadora, que ao mesmo tempo será produtora e consumidora do novo sistema, essa tarefa seria impossível. Aqui, o mínimo de direitos trabalhistas e de respeito – leia-se reconhecimento – foi necessário, como se sabe. Em outros termos, é inviável, indesejável e imoral a permissão de um capitalismo totalmente selvagem e sem regras, sem nenhum respeito ao valor básico da vida humana. O Estado pode e deve agir com eficácia e legitimidade em defesa da dignidade de sua população.


Em nossa história recente, após a reabertura democrática, a experiência do PT na presidência pode dividir opiniões, mas não pode ser ignorada em sua tentativa de implantar sistematicamente uma política da dignidade. Aqui, não se trata simplesmente da defesa de um partido ou grupo político, mas sim de uma análise serena que considere os esforços possíveis do campo político diante dos imperativos econômicos e morais de um capitalismo global que eu caracterizo como indigno. Trata-se, em termos simples, de um sistema perverso que tem como principal marca a naturalização do desvalor humano, ou seja, a naturalização da indignidade de milhões de pessoas.


Como já ficou claro com a experiência histórica de inúmeros países, a única maneira de frear esta máquina global de produção da indignidade é uma política da dignidade por parte do Estado, o que exige uma condução consciente e planejada por parte de grupos progressistas e bem orientados. O governo negacionista de extrema direita de Jair Bolsonaro é exatamente o contrário disso e, diante da compreensão deste fato, a esquerda precisa urgentemente de um projeto de dignidade nacional.


Neste sentido, precisamos vencer um último inimigo teórico e político. Trata-se do antipetismo e de tudo o que ele criou. Desde as primeiras críticas ao primeiro governo Lula, a única linguagem política desenvolvida no Brasil foi o antipetismo, derivada do incômodo de nossas classes dominantes diante da pequena, porém significativa, mudança em nossa desigualdade estrutural encaminhada pela política da dignidade implementada pelo PT. Neste sentido, nós não desenvolvemos uma terceira via progressista de fato, que não se resuma à confusão e dificuldade de articulação de seus protagonistas. Também não desenvolvemos uma direita liberal lúcida e civilizada, que tivesse algum projeto de nação. Presenciamos apenas o germe do bolsonarismo, resultado imediato do antipetismo. Nada mais.


Diante desta nossa grave dificuldade recente, a política da dignidade, pautada por um projeto de dignidade nacional para os mais necessitados, se faz urgente. O caminho pode ficar claro, se olharmos com atenção para a experiência histórica, tanto interna quanto externa ao Brasil. Um Estado nacional que tenha a dignidade como política central é o primeiro passo. Depois, a tarefa consiste na restauração do direito ao trabalho digno e do direito ao mínimo necessário para a garantia da integridade física e moral de todos. Para tanto, é preciso convencer a população, neste exato momento, de que a realização deste projeto é plenamente possível através de um Estado democrático de direito, e não pela via da barbárie do mercado, sustentada pelo bolsonarismo. Se esta for a nossa pauta do dia nos próximos meses, teremos alguma chance de construir um futuro melhor.


* Suffering, quadro de Paula Heffel. Disponível em: https://fineartamerica.com/featured/suffering-paula-smith-heffel.html, acesso em 28 de set. de 2022.


** Texto publicado originalmente no sítio Outras Palavras em 13 de abril de 2022. Disponível em: https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/a-indispensavel-politica-da-dignidade/, acesso em 28 de set. de 2022. Reproduzido aqui com a autorização do autor.


*** Fabrício Maciel é Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFF-Campos e do PPG em Sociologia Política da UENF. Atualmente, professor visitante na Universidade de Jena, Alemanha. Bolsista de produtividade do CNPq e Jovem Cientista do Nosso Estado, FAPERJ.

domingo, 20 de novembro de 2016

Economia e política no Rio de Janeiro

Economia e política no Rio de Janeiro*

George Gomes Coutinho **

O título deste artigo é somente provocativo. Trata-se de uma óbvia alusão aos últimos acontecimentos da política fluminense. As prisões de Anthony Garotinho e Sérgio Cabral, ambos ex-governadores do Rio de Janeiro, colocam o estado em evidência nas páginas político-policiais  (ultimamente quase um sinônimo). Contudo, advirto ao leitor que a conexão entre economia e política não é algo exclusivo do Rio de Janeiro. Na verdade, a relação entre estas duas esferas fundamentais da vida social ocorre em todos os outros estados e países.

Políticos são agentes de um determinado sistema. Empresários operam em outra esfera, a econômica. Políticos operam com o poder formal, onde lidam com processos de tomada de decisão e o “poder de veto” propriamente. O empresariado, no sistema econômico, produz indubitavelmente inovação e outros efeitos sociais palpáveis diversos sendo estes efeitos perversos ou benéficos. Mas, o objetivo, salvo se encontrarmos um híbrido improvável entre George Soros e Francisco de Assis, é inegavelmente acumular, enriquecer.  Neste ínterim há o Estado, o aparato estatal, que materializa o maior agente econômico em toda e qualquer nação. As demandas objetivas do Estado, envolvendo infra-estrutura por exemplo, tornam os negócios estatais profundamente atraentes para os agentes do sistema econômico. De outro lado, o poder normativo do Estado é atraente para lobbies de toda ordem. Por fim, ainda há a mera razão econômica interferindo e distorcendo decisões eleitorais no caso de compra de votos.

Agentes dos dois sistemas se encontraram, se encontram e se encontrarão. As interferências, distorções e outras tantas ressonâncias são parte do cotidiano de sociedades complexas.

Na última semana vimos demonstrações diferentes da relação entre economia e política. No caso Cabral o contexto histórico de grandes eventos internacionais explica o assédio de políticos a empresários, sendo a recíproca libidinosamente verdadeira, na disputa por executar obras de grande monta. Não há inocentes. Com Garotinho há a interferência do argumento econômico na decisão do voto em uma sociedade desigual. Só que a margem de escolha da população empobrecida é muito menor. São reféns. Empreiteiros, por outro lado, são beneficiários.

* Texto publicado no Jornal Folha da Manhã em 19 de novembro de 2016


** Professor de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Excelente entrevista do Bauman - "seus netos continuarão pagando os 30 anos da orgia consumista"

Zygmunt Baumann, mais conhecido entre nós por sua "série líquida" (amor líquido, modernidade líquida, etc..), concedeu uma excelente entrevista no final de agosto deste ano para o Monitor Mercantil. 

Penso, inclusive, que esta entrevista interessa particularmente ao leitor brasileiro. Nestes tempos exageradamente trevosos, onde o pânico disseminado pela Grande Mídia faz produzir a sensação de que chegamos ao fundo do poço, leituras lúcidas de realidade sempre são importantes. Até mesmo para atacar crenças coaguladas e percepções que podem gerar profecias auto-realizáveis pelos próprios agentes. Ou seja, interpretações e análises podem ter mais alcance fático do que imaginamos, trazendo consequências que nem de longe são desejáveis. Só por isso a entrevista cumpre, desde já, um papel importante. 

Dentre outros pontos, dado que o foco central das questões transitava sobre a crise econômico-social no Velho Continente, Bauman nos brinda com algumas pérolas que confrontam diretamente o senso comum. Dada a abrangência, visto que a crise para qualquer analista que compreende a sutil relação partes/todo, o polonês dialoga com as diferentes camadas da realidade social selecionando novidades e continuidades entre os planos micro e macro-estrutural. Destaco algumas questões:

- o sociólogo, que atualmente é o vice-reitor da London School of Economics (LSE), embora cético, mantém um tom relativamente otimista quanto ao médio/longo prazos. Não se fixa de forma obsessiva na atual conjuntura. Em verdade compreende que o atual modelo societário, pautado pelo corrosivo binômio de financeirização e consumismo insustentável, apresenta sinais de profundo esgotamento. Inclusive, para asseverar este juízo, nota as revoluções moleculares que vão se multiplicando, mesmo que a passos muy lentos, ao redor do globo e nas sociedades ocidentais. Ou seja, há um facho de luz, mesmo que tímido, no final do túnel.;

- alerta quanto ao distanciamento da relação entre poder e política institucional. Isto não é exatamente uma novidade na literatura, seja sociológica, econômica ou filosófica: há um robusto distanciamento dos interesses vinculados ao capital "virtual" da especulação financeira e o restante da humanidade. Porém, algo que nos interessa especificamente acerca do funcionamento da política institucional nestes tempos, Bauman é claro ao afirmar sobre os limites das estruturas modernas formais. Partidos, parlamentos, ministérios, a despeito de sua vinculação entre esquerda ou direita do espectro ideológico, tem uma margem de atuação francamente limitada ante as pressões dos grandes agentes financeiros. Neste ponto o que resta é a impossibilidade factual da execução plena e ipsis litteris de promessas de campanha eleitoral nas nações ocidentais. Este é um ponto trágico para a imaginação política contemporânea... A sensação de um certo "estelionato eleitoral" talvez não seja a nossa jabuticaba afinal...

Em suma, recomendo vivamente a leitura que pode ser acessada aqui.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Mal-estar cotidiano e a ausência de projetos estruturais na (semi)periferia

Mal-estar cotidiano e a ausência de projetos estruturais na (semi)periferia



            Nos dias que correm no Brasil é compartilhado um mal estar coletivo palpável. Não que este sentimento seja exatamente uma novidade na modernidade. Sigmund Freud em seu “Mal-estar da civilização”, texto datado de 1929, apontava o caráter paradoxal do progresso material, embora desigualmente distribuído pela própria estrutura inerente da sociedade, e uma sensação de fastio, melancolia, desamparo, etc.. Porém, nos cabe calibrar esta questão em termos históricos e contextuais.  Freud escrevia na Europa central, nos arredores da falência financeira desencadeada pelo colapso da Bolsa de Nova Yorque, um tanto perplexo com a convivência concreta do avanço da ciência e o que Jürgen Habermas chamaria posteriormente no final do mesmo século de “promessas não cumpridas do iluminismo”[i]. Em verdade, o que o chamado “pai da psicanálise” assinalou foi a constatação de que novos modos de viver produzem novas formas de sofrimento, dado que o objeto de análise  freudiana era nada menos que a falência da sociedade tradicional e a substituição desta por uma modernidade sempre a se construir. O sofrimento de Sísifo se atualizaria historicamente na chave menos ensolarada da interpretação da sociedade, tal como Adorno e Horkheimer procuraram igualmente demonstrar[ii].

            Retomando ao Brasil e particularizando este sofrimento, que não é um privilégio verde-amarelo e detém suas facetas singulares entre nossas fronteiras, é edificada a “sociedade de condomínio”, tão bem retratada por Christian Dunker[iii]. Esta sociedade de condomínio, falarei em termos bastante sumários, projeta uma forma de sociabilidade especial dotada, por um lado, na centralidade do consumo e uma (re)feudalização do espaço urbano.  O consumo como projeto de realização existencial, como se pode supor, não tem redundado em uma reflexividade mais robusta e avançada. De outro lado, a  (re)feudalização do espaço apenas torna mais aguda a separação dos desiguais envolvendo a apartação de formas de viver até fisicamente. Disto redundamos na ignorância mútua dos agentes e um empobrecimento discursivo/subjetivo importante, percepção somente amplificada pelo acompanhamento cotidiano das redes sociais.

            Nesse ínterim, tentando observar diretamente nossa conjuntura política nacional, a sensação de desconforto é persistente. Se por um lado não é injusto declarar que a esquerda não conseguiu construir um projeto interpretativo e programático suficientemente eficaz para os desafios de uma realidade (semi)periférica como a nossa[iv], por outro lado, a direita também aparentemente não tem conseguido fazê-lo. Em verdade, salvo soluções autoritárias de curtíssimo prazo, onde se produz uma sensação de segurança a partir do medo, a direita aparentemente fracassou entre nós em toda a nossa história. A esquerda, uma alternativa histórica suprimida por quase todo o século XX, falha miseravelmente em nossa conjuntura.

Neste vácuo de imaginação estrutural, até o presente momento parte dos debates que mais tem seduzido a chamada “opinião pública”, a despeito desta existir ou não[v], tem se centrado em “pautas de questão única”. Na literatura dos mecanismos de explicação dos gatilhos da ação coletiva, as chamadas “pautas de questão única”, envolvendo agentes específicos como o movimento LGBT, grupos étnicos e a “difusa agenda ambiental”, se tentam produzir avanços civilizatórios fundamentais, por outro lado, apenas de forma tangencial se defrontam com uma agenda estrutural. As vitórias neste sentido são vitórias de Pirro. Necessárias, decerto, porém insuficientes sem um projeto de sociedade que as torne sólidas e duradouras.

            Ainda, em nossa conjuntura, onde há um discurso combativo sistemático de enfrentamento das forças progressistas, seja criminalizando-as ou simplesmente tornando seu conteúdo reivindicatório objeto de ridicularização, soluções falseadas, não por acaso, tem pipocado e se alastrado mais que “chuchu na serra”. Justamente a pauta conservadora tem se construído a partir de “questões únicas”: a redução da maioridade penal como encaminhamento desejável e solução para a violência estrutural; o resfriamento dos avanços simbólicos e jurídicos que protegem agrupamentos étnicos ou LGBT; a destruição sem tréguas do Partido dos Trabalhadores como remédio para os males da política formal.

            Progressistas e conservadores, assim, armam seus grupos de forma mais similar do que pode supor nossa vã filosofia. Em paralelo, nosso projeto coletivo paradoxal  e realmente existente de “social rentismo” prossegue e preguiçosamente todos recusamos a pensar soluções complexas e estruturais para problemas que, em última instância, são da mesma natureza.  Talvez a reflexão de Marcos Nobre que nos convida a “Pensar o Brasil”[vi] faça todo sentido nos dias que correm. Ainda, intuitivamente arrisco afirmar que se não há “solução mágica”, o retorno das propostas estruturais, que envolvem modelar novos projetos de sociedade, se não elimina o mal-estar inerente, nos permite reabilitar uma esperança secularizada. Não mais e não menos.

George Gomes Coutinho




[i] HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. São Paulo, Martins Fontes, 2002.

[ii] ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

[iii] DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.

[iv] Neste sentido que interpreto o mote de Wanderley Guilherme dos Santos postado em seu blog: “CHEGA DE TRANSFORMAR O MUND0; É INDISPENSÁVEL INTERPRETÁ-LO!”. Disponível em: http://insightnet.com.br/segundaopiniao/?p=100

[v] Bourdieu em seu texto clássico “A opinião pública não existe”. O texto, ácido e implacável, encontra-se disponível em formato PDF. Eis aqui um dos possíveis links de acesso: http://pt.scribd.com/doc/72698331/A-opiniao-publica-nao-existe-Pierre-Bourdieu

[vi] http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-33002014000300097&script=sci_arttext