terça-feira, 25 de julho de 2023

No Pasarán! Eleições Espanholas de 2023 - André Kaysel

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No Pasarán! Eleições Espanholas de 2023**

André Kaysel***

Em que pese ter sido o mais votado, o direitista Partido Popular (PP) muito dificilmente governará a Espanha. A legenda liderada pelo galego Alberto Nuñez Feijó obteve 136 cadeiras no parlamento espanhol (33% dos votos), contra 122 do Partido Socialista Obrero Español (PSOE), do atual Presidente (Primeiro-Ministro), Pedro Sãnchez, com mais de 31%.

Para formar governo, uma coalizão necessita de 176 deputados, 50% mais 1 dos 350 acentos da Câmara. O problema para o PP é que seus sócios da extrema-direita, o Vox de Santiago Abascal - muito próximo de Bolsonaro - obtiveram 33 cadeiras, 19 a menos do que nas eleições de 2019. Já a plataforma de esquerda Sumar, da atual Vice-Presidenta Yolanda Díaz, que engloba a antiga Unidas-PODEMOS, obteve 31 cadeiras, praticamente impatando com a ultra-direita em percentual de votos, cerca de 12% cada.

Pois bem, o bloco da direita obteve 169 acentos, enquanto a esquerda alcançou 153, portanto, nenhum dos dois conseguirá sozinho formar governo.

E as 28 cadeiras restantes? A maioria pertencem a partidos regionais e nacionalistas, sobretudo no País Basco e na Catalunha. Alguns estão mais à direita, como o PNV e Junts, outros mais à esquerda, como Eh Bildu e ERC. Porém, nenhum partido nacionalista basco ou catalão irá formar um governo com PP e Vox, representantes do nacionalismo castelhano, monárquico, católico e neofranquista.

Assim, a tarefa de Feijó é como a quadratura do círculo. Sua única chance seria que essas forças minoritárias se abstivessem na votação da investidura, permitindo que ele formasse um governo de minoria, o que é pouco provável.

Assim, Sánchez, embora tenha ficado em 2o. lugar, tem mais chance de chegar a um acordo com Sumar e os nacionalistas bascos e catalães e continuar no Palácio de La Moncloa. Outra possibilidade bem plausível é de um bloqueio total, que obrigue à convocação de novas eleições em breve.

Seja como for, a vitória do PP parece ter sido uma vitória de Pirro, sobretudo pela derrota de seus aliados de extrema-direita, com os quais pretendiam formar o governo mais reacionário da Espanha desde a redemocratização no final dos anos 1970. Como bem disse Yolanda Díaz em seu discurso, a Espanha e a Europa irão dormir mais tranquilas. Pelo menos dessa vez, valeu pelo voto o lema da Passionaria Dolores Ibarruy: "! No Pasarán!".

* Massacre in Korea, Pablo Picasso. Disponível em: https://fineartamerica.com/featured/massacre-in-korea-by-pablo-picasso-1951-pablo-picasso.html, acesso em 25 de julho de 2023.

** Publicado originalmente no perfil de Facebook do prof. André Kaysel em 24 de julho de 2023. Reproduzimos aqui com a autorização do autor.

*** André Kaysel é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp. Kaysel é atualmente diretor do CEMARX, o Centro de Estudos Marxistas da Unicamp, e autor, dentre outros trabalhos, de "Entre a nação e a revolução: marxismo e nacionalismo no Peru e no Brasil (1928-1964)" publicado pela Alameda Editorial.

domingo, 2 de julho de 2023

Mídia brasileira: tragédia e farsa em um blockbuster hollywoodiano

 Por Jefferson Nascimento*

              (Foto: Shutterstock)

Hoje, 02 de julho, uma das manchetes em destaque no portal Globo.com recebeu o título “Com intensa agenda internacional, Lula recupera espaço do país na política externa, mas patina sobre a guerra na Ucrânia, avaliam especialistas[i]. Essa matéria não é isolada, chama a atenção o ativismo da imprensa nacional em relação ao conflito na Ucrânia com um viés convergente com a posição dos Estados Unidos. Ao ler a matéria, qual não é a surpresa: apenas um dos especialistas falou sobre a guerra, o ex-diplomata Paulo Roberto de Almeida, que se tornou diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri) no governo Temer e foi exonerado no governo Bolsonaro.  Almeida, em entrevista ao canal MyNews em 2021, comentou a demissão de Ernesto Araújo e justificou o anonimato dos diplomatas na carta de repúdio à Araújo pelo risco de represálias que atrapalhariam a carreira no Itamaraty, ilustrando com exemplos pessoais: teria sido censurado em “governos tucanos” e colocado nas “escadas e corredores nos tempos lulo-petistas”. O mesmo diplomata, apesar de ter sido demitido na gestão Bolsonaro e ter se tornado crítico à Ernesto Araújo e Olavo de Carvalho, participou de eventos do Brasil Paralelo, como o Webinário 2018 Brasil e é autor do livro O Homem que pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos[ii]. Como se vê, uma escolha a dedo para manter o viés pró-Estados Unidos. O ex-diplomata faz afirmações como: “O que Lula está fazendo é absolutamente inócuo, ninguém apoiou esse clube da paz [...]” e “A gente vê o antiamericanismo da velha esquerda [...]”. Pela volta do tema à tona, resgato um texto de minha autoria publicado no Jornal A Vanguarda. O texto resgata fatos e reflete sobre causas do conflito, saindo desse simplismo de forjar um único agressor para encaixar na máxima reverberada por Almeida de que “quando você tem um agressor, o dever de todos os estados membros é vir em socorro e apoio à parte agredida”.[iii] Segue o texto.

Uma polêmica tomou conta dos noticiários: a posição de Lula em afirmar que a Rússia não era a única responsável pelo conflito. O foco foi a frase: “Decisão da guerra foi tomada por dois países”. Não pretendo defender Lula. Meu ponto é direto: problematizar a militância da imprensa na posição pró-EUA omitindo fatos e acontecimentos indispensáveis para compreensão do conflito. O ápice foi um veículo de comunicação dar status de escândalo a uma fake news iniciada por um secretário do governo estadual paulista afirmando que a estatal ucraniana Antonov, mesmo em crise financeira, faria investimentos de US$ 50 bilhões no estado de São Paulo, cancelados após a posição de Lula sobre a guerra. A empresa desmentiu e negou ter representantes no Brasil. A emissora se defendeu dizendo que era necessário “apurar”, pois “a reunião existiu”. Ora, não sei o que é mais grave: um secretário de governo mentir ou ser incapaz de checar com uma empresa a identidade de seus representantes. Sobre a reincidente emissora, não é preciso novos comentários.

Essa militância obstinada nega fatos que ultrapassam e antecedem qualquer fala de Lula ou posição do Ministério das Relações Exteriores. Sendo direto: afirmar que EUA e União Europeia, por meio da OTAN, e a Ucrânia têm parcela de responsabilidade na guerra não retira a responsabilidade russa e nem torna Putin um herói. Diferente de filmes e novelas, a realidade é multifacetada.

Esse adendo fiz em fevereiro de 2022 no texto “Rússia, Ucrânia e OTAN: a história sempre importa”[iv]. O texto sintetiza fatos públicos não sendo um “furo”. Na apresentação afirmei: “Elencar os fatos recentes decisivos para esse conflito não é o mesmo que identificar um ‘mocinho’ nesse trágico evento” e concluí:

[...] ainda que o imperialismo russo mova Putin a reconhecer a soberania das províncias rebeldes pró-Rússia e a avançar militarmente sobre o vizinho, não se pode ocultar que o outro imperialismo avançou militarmente ali e progride em todo mundo, seja pela força das armas ou pela desestabilização interna de países considerados estratégicos. A condenação à invasão russa na Ucrânia não pode ser feita sem considerar a ação da outra potência que, vez ou outra, culmina num humorista ou num boçal submisso na presidência dessas áreas de interesse.

Veja que depois de fevereiro de 2022 sanções, envios de armas e outras ações envolveram ainda mais a OTAN, EUA e a UE. A Primeira Guerra Mundial já mostrou que não se resolve um conflito complexo escolhendo bodes expiatórios. Ademais, a reunião com o ministro russo Sergey Lavrov terminou com o Brasil defendendo o fim imediato da guerra e a Rússia pedindo um acordo que "resolva de forma duradoura o conflito". Posições diferentes, não é?

É preciso reconhecer que a polêmica é facilitada pela comunicação catastrófica do governo brasileiro. Em diversos momentos, Lula e os ministros falam sem uma articulação com a equipe de comunicação caindo em armadilhas, muitas vezes, por falta de clareza e objetividade.

No entanto, a posição dura dos EUA não é gratuita. Desde a Lava Jato, o Brasil foi colocado novamente numa posição frágil submisso aos interesses de Washington. A posição de Biden em reconhecer Lula desde o primeiro momento também não viria de graça. Cabe ao Brasil comunicar melhor suas posições. O chanceler Mauro Vieira faz, Lula insiste em falar dentro e fora do país como se estivesse em 2003.

A conjuntura mudou e vários países passaram por desestabilização política desde fora, sob formas diversas de golpes (lawfare, revoluções coloridas, revoltas supostamente populares e outros) e em seus lugares governos alinhados aos interesses estadunidenses, destacados pela fragilidade ou autoritarismo, tocaram um processo antipolítico, antipovo, antinacional sob a aparência da representatividade exaltada na democracia liberal. Prática que deu notoriedade a figuras reles como Juán Guaidó na Venezuela e influenciou manifestações até em Cuba em 2021. Retomo outra passagem de 2022:

Zelensky também negociou com Trump quando o ex-presidente dos EUA queria a investigação de Hunter Biden e sua empresa Burisma, sediada na Ucrânia. A investigação ganhou oposição do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos. Segunda consta, Alexander Vindman, membro do conselho especialista em Ucrânia, teria alertado para o risco de a investigação ser considerada “jogada partidária”. Vindman justificou “Sou patriota, é meu dever sagrado e minha honra defender o país”.

É isso mesmo: um membro do Conselho de Segurança, nomeado por Trump, não considerou adequada essa investigação para “defender o país”. Afinal, de Obama à Trump, passando por McCain e Biden, a Ucrânia é um projeto de Estado e o apoio dos Estados Unidos à chamada Revolução Maidan não é um empenho no combate à corrupção e muito menos uma ode à soberania nacional. O ano era 2014 e esse apoio não estava fora do contexto da Primavera Árabe e nem das think tanks que se projetaram no Brasil durante e após as Jornadas de Julho.

Após a desestabilização política, o roteiro incluiu líderes que desacreditassem as chamadas instituições democráticas e as colocasse à serviço do entreguismo e do ataque ao povo e seus direitos – Zelensky, Bolsonaro e projetos malsucedidos como Guaidó e Sérgio Moro se encontram nesse pastelão. A degeneração do caráter representativo para uma explícita concertação para o lobby de interesses alheios aos populares têm sido o mote desde a Primavera Árabe.  É nesse contexto e desse lugar que a imprensa brasileira faz essa celeuma sobre declarações que destaquem o caráter multifacetado da guerra em vez de uma farsa hollywoodiana com vilões e mocinhos.


Jefferson Nascimento é Doutor em Ciência Política, Professor do IFSP - Campus Sertãozinho, membro do Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-Americanos (NEPPLA).

[ii] Roberto Campos, que era apelidado de Bob Fields pelo seu norteamericanismo, foi se alinhando ao neoliberalismo ao longo dos anos 1970 e 1980, inclusive defendendo entusiasticamente as políticas de Margareth Thatcher. O livro de Almeida é uma ode a Campos, que foi ministro do Planejamento na gestão Castelo Branco, durante a Ditadura Militar, e cujo neto é o atual presidente do Banco Central, nomeado na gestão Bolsonaro. O próprio Almeida ingressou no Itamaraty durante a Ditadura, em 1977.

[iii] As frases atribuídas à Paulo Roberto de Almeida constam na matéria do Globo.com citada no início do parágrafo e acessível pelo link disponível na primeira nota.

sábado, 1 de julho de 2023

Uma milonga para Helinho Coelho - George Coutinho

 

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Uma milonga para Helinho Coelho**

George Gomes Coutinho***

Conheci Helinho quando eu tinha 19 anos. Eu fui seu aluno. Ele tentou me convencer das virtudes de Gramsci na época. Não curti. Achei Gramsci moderado demais e eu estava mais sintonizado com a nitroglicerina de gente como Bakunin.

Muitos anos se passaram e Gramsci estava lá muito presente em minha tese. Helinho venceu.

Entre graduação e tese nos encontramos em diferentes ocasiões. No antigo Terapia´s Bar, ainda perto do Liceu, quando um intrépido e troncudo Helinho (sim, ele era forte) chega pilotando uma Caloi 10 tão magrinha que desafiava a física newtoniana. Papo vai, papo vem.. política, música, cultura e um engradado de cerveja são consumidos.. E lá se foi ele na mesma Caloi 10 em que tinha chegado.

Teve aquele dia improvável também. Em coordenada não rastreável por GPS, alguma coisa ali esquecida “nos fundos de Chapéu de Sol”, o reencontro. Era um trailer, ou o que restava de um, com pessoas reunidas ouvindo o violão dele.. Na mesa um scotch circulava generosamente. Eu, pato novo naquela lagoa, fiquei ali curtindo o papo, a viola e o céu estrelado só na cervejinha. Saí meio trôpego com o céu escuro. Mas, pelo que vi, Helinho estava com pique para amanhecer ali com seu repertório.

Ainda Helinho era macho pra caralho. Em 2018, quando a UFF Campos foi violada por um juiz eleitoral e seus brutamontes, ocasião em que a porta do DACOM foi arrombada para apreenderem, vejam só, um punhado de panfletos que deitavam inertes no fundo de um armário trancado dos estudantes, Helinho peitou defendendo a instituição. Foi ameaçado de prisão. Eu sei que não foi a primeira vez e pode nem ter sido a última.

Helinho era muita coisa. Músico, professor, político (foi vereador na cidade), advogado, historiador, poeta, agitador cultural.... e, como se não bastasse, gente boa! Como era gente boa!

Nos esbarramos uns 10 dias atrás em uma calçada da Pelinca. Estava especialmente elegante! “Tá mal intencionado hein?”, assim eu disse. Ele deu aquele sorriso meio maroto que todos nós curtíamos.

Rest in Power Helinho. Você dizia: “Essa cana, é sacana!”, em uma crítica à brutalidade de nosso canavial. Por sua saída tão abrupta eu digo que por vezes a vida também é sacana meu camarada....

* Helinho em 2018 em sala de aula da UFF-Campos, instituição pela qual se aposentou em dezembro de 2022. Foto de Johnatan França de Assis.

** Hélio Coelho, ou simplesmente Helinho como era carinhosamente conhecido, foi uma das figuras mais ativas da vida intelectual campista nos últimos 50 anos. Ele foi advogado, historiador prático, escritor, violonista, cantor, poeta, analista político e agitador cultural. Foi vereador e Presidente da Câmara Municipal durante a Ditadura e um dos líderes do Movimento pelas Liberdades Democráticas. Também foi membro da Academia Campista de Letras, associação que presidiu neste século XXI. O querido Helinho nos deixou na última quinta-feira aos 75 anos.

*** Professor da área de ciência política no Departamento de Ciências Sociais da UFF-Campos.