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terça-feira, 7 de setembro de 2021

Religião, política e a dimensão espiritual da crise brasileira

 

Fonte: Neipes.

Religião, política e a dimensão espiritual da crise brasileira*

* Publicado originalmente em Folha 1.

Roberto Torres 

Muitos gostariam de abolir a presença das religiões na esfera pública e na política. São os que defendem que o Brasil busque construir um Estado laico inspirado na França. Esta tentativa foi feita com a constituição de 1891 e não teve êxito. Outros se dispõem a aceitar a religião pública desde que ela se oriente pelas ideologias políticas laicas como o liberalismo ou o socialismo, fornecendo apenas a efervescência coletiva que estas ideologias já não conseguem produzir por contra própria. As duas posições rechaçam a presença da fé e da busca da transcendência como algo que tenha contribuição própria para a construção do Estado e na nação. O sentido propriamente religioso do mundo, que podemos resumir com as noções de fé e transcendência, não teria nada a acrescentar ao sentido político da reconstrução nacional.

Discordo destas duas posições. Da primeira em razão de seu provincianismo caricato. Basta dizer que a França é exceção e não regra entre os modelos ocidentais de separação entre religião e Estado. A grande nação ocidental do século XX, os Estados Unidos, nunca confundiu separação entre Igreja e Estado com confinamento da religião na esfera privada. E nisso, como em outros aspectos, o Brasil (graças a Deus!) é muito mais parecido com os Estados Unidos do que com a França. Da segunda posição eu discordo pela falta de acuidade sociológica sobre o processo de construção nacional: todo projeto nacional de longo prazo precisa de um sentido de transcendência capaz de conferir no presente valor ao futuro desconhecido. O futuro precisa ser percebido como um horizonte de realização daquilo que não podemos ver inteiramente no presente, mas cujas primeiras manifestações já se mostrem como futuro adjacente, como sinal no presente de que a fé constrói o futuro. E em muitos casos, especialmente naqueles de colapso das ideologias políticas laicas, este sentido de transcendência do presente e de seus desesperos vem diretamente das religiões.

A contribuição própria que a religião pode trazer para a política é sua capacidade de construir no presente a fé no futuro. A disponibilidade desta fé é um recurso de valor insubstituível para a política. Não se trata de acreditar em um futuro inteiramente distante e inteiramente desconhecido, mas sim de criar um futuro adjacente e em alguma medida visível já no presente. O desafio de amplos segmentos das classes populares, que buscam manter a fé no futuro (“não deixar a peteca cair”) organizando em torno da religião estratégias concretas de reconstrução da vida familiar, econômica e comunitária, é semelhante ao desafio nacional: não se trata apenas de planejar o futuro da nação, mas de reconstruir e alimentar a própria crença de que a nação tem algum futuro. É preconceito iluminista não esclarecido supor que podemos dispensar a fé religiosa nesta grande batalha espiritual que o país precisa travar: não uma batalha contra algum inimigo inventado (“comunistas”, “chineses”, STF etc.) como faz Bolsonaro em sua “guerra cultural”, mas sim contra a desesperança, a dimensão propriamente espiritual da crise brasileira. Ideologias políticas e projetos nacionais dependem da crença compartilhada no futuro. A religião popular têm conseguido construir esta crença em diferentes esferas sociais, especialmente na vida familiar. Pode também contribuir para que isto seja feito na política. Não se trata de ignorar os riscos envolvidos na relação entre religião e política, mas sim de explorar as possibilidades desta relação. Pelos menos quatro possibilidades se colocam de início: o boicote recíproco entre religião e política, a colonização de uma pela outra, o fortalecimento recíproco e a indiferença. Nas últimas décadas, a colonização da religião pela política tem predominado no Brasil. No caso específico dos evangélicos, desde sua entrada efetiva na política pós Constituição de 1988, os presidentes buscaram se aproximar dos religiosos pela via da cooptação política a partir de acordos com figurões que dizem representar este segmento do público. Com Bolsonaro é um pouco diferente: ao mesmo tempo em que radicaliza a manipulação da religião pela política feita por seus antecessores, encena com a “guerra cultural” o controle religioso da política e da república como um todo. Politicamente, essa estratégia tem a vantagem de criar uma sensação de inclusão autêntica dos religiosos na política nacional, produzindo um contraste com quem pedia o voto mas não gostava de dividir o poder com os religiosos. Por isso, Bolsonaro desempenha com certo sucesso o papel de primeiro presidente evangélico do país (Arenari, 2020). Mas este sucesso só pode durar se Bolsonaro conseguir destruir o sentido de esperança e fé no futuro cultivado pelos evangélicos e cristãos em geral: um governo definido pela destruição precisa destruir também o sentido de futuro, pois a esperança no futuro é sempre construtiva. Ou então criar um sentido destrutivo de futuro, como vemos em seus apelos apocalípticos destinados ao rápido descrédito. Precisa destruir a religião para continuar usando a religião e fingindo que ela têm importância em sua obra de destruição nacional.

A obra de reconstrução nacional de que precisamos não requer substituir esta colonização destrutiva da religião pela política nem pela indiferença entre ambas, como querem os adeptos da laicidade francesa, nem por uma politização com outra cor ideológica, que trata a religião apenas como fonte de legitimação e energia para ideologias políticas seculares. Para enfrentar a dimensão espiritual da crise brasileira, precisamos construir uma relação de fortalecimento recíproco entre política e religião, combinando separação de esferas com influência construtiva entre elas. Não se trata de colocar a política no lugar da religião, nem a religião no lugar da política, mas sim de construir uma nova “religião civil” brasileira: uma nova cultura política inspirada não só em valores religiosos como superação e solidariedade, mas antes de tudo na fé no transcendente como traço próprio do sentido religioso do mundo que ultrapassa fronteiras ideológicas e sociais.

Na prática, isso significa adotar um caminho bem distinto daquele seguido por Bolsonaro e seus antecessores. Em vez de mobilizar politicamente a religião em torno de “guerras culturais” contra inimigos inventados, criando uma cultura política de destruição e fragmentação nacional (Bolsonaro), ou cooptar os conhecidos figurões com poder e audiência (antecessores), buscar aproximação com as obras sociais das igrejas que reconstroem famílias e vidas em nossas periferias urbanas. Em vez de buscar conchavos com esses figurões que dizem decidir pelo povo, se aproximar de lideranças novas, de sacerdotes que buscam o poder não como um fim em si mesmo, mas como meio indispensável para mudar e melhorar a realidade. Em vez de andar com quem promete trazer apenas o voto dos fiéis, unir forças com aquelas organizações e lideranças interessadas em amplificar, através da cooperação com o Estado, o trabalho social que já realizam. Missões que buscam reconstruir famílias e vidas ameaçadas pela pobreza e pela violência, como vemos no caso da missão Cristolândia de orientação batista, também reconstroem e alimentam diariamente o sentido de fé no futuro, em uma vida melhor para quem, como todos no inferno de Dante, é invocado pela realidade a perder todas as esperanças. Esta dimensão espiritual da crise brasileira – o desespero, a falta de fé no futuro – não será superada sem que a política consiga estabelecer relação construtiva com o único sistema social que tem conseguido fazer a grande maioria do povo acreditar no futuro e na vida: a religião. Mas para isso, a política não deve buscar a cooptação dos religiosos e a manipulação da fé, mas sim a cooperação em torno do trabalho social com religiosos que desejam influenciar as políticas públicas, mas não fundir organização religiosa com o poder político. É este tipo de relação que permite existir religião pública e ao mesmo tempo separação entre religião e política. Não basta exigir a separação entre religião e política. É preciso entender que esta separação só ocorre dentro de relações específicas entre estas duas esferas da sociedade e da vida.

Referências

ARENARI, Brand. “Bolsonaro, o primeiro presidente “evangélico” do Brasil”. In: TEXEIRA, Carlos Sávio & MONTEIRO, Geraldo Tadeu (orgs.) Bolsonarismo: teoria e prática.1 ed.Rio de Janeiro: Gramma editora, 2020, v.1, p. 281-308. 

domingo, 15 de dezembro de 2019

Relevem, leitores


Relevem, leitores

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Haverá algo mais batido do que escrever sobre a dificuldade de... escrever? Ou, dito de outro modo, artifício bem surrado esse de testemunhar o vazio existencial que, vez ou outra, assalta todo aquele que empresta sua testa para ofertar mal tracejadas linhas a quem interessar.

Fato é que estive um tempo fora como quem vai ali comprar cigarros. Definitivamente, isso não se faz.

Relevem, caros leitores (provavelmente, dois ou três) por tamanha negligência. Um saudoso e, não menos, cáustico cronista da blogsfera campista certa vez disse que era “bissexto” na periodicidade de minhas publicações. Vá lá, tivesse razão. Ainda assim, desculpas de nada valem sem, digamos, uma renovação de votos com o “trio” leitor que até então dedicava generosa atenção a este aprendiz de publicista.

Apesar do prazer incomunicável de escrever ser um leitmotiv do trabalho intelectual, há neste um estado de compromisso, caso reconheçamos que, antes de ser happening, trata-se de um estar no mundo inerente àquele que (teimosamente?) atribui às ciências sociais um sentido de missão pública.

Sem ilusões: a noção de “público” aqui é prenhe de consequências.

Na acepção “clássica” do termo que a filósofa alemã Hannah Arendt[1] sumariou em referência à pólis grega, domínio público constituía um espaço de relações entre homens que eram livres, na medida em que se associavam para disputar a excelência do melhor argumento sobre seu destino comum e, iguais, uma vez que assumia-se que a comunidade política assim estabelecida teria por fundamento a força da persuasão no lugar da violência pura e simples.

Desnecessário dizer que a persuasão nem sempre paga tributos à lógica interna de um argumento baseado em juízos de fato e, não menos, que não faltam acusações (nem sempre justas, a meu ver) à Arendt por uma suposta idealização da ágora ateniense em face do caráter restrito do status político dos seus partícipes: mulheres, escravos e estrangeiros não tinham voz nem vez na cidade-Estado.

De todo modo, vale reter do seu diagnóstico sobre a modernidade pós-Auschwitz aquilo que nos faculta de modo único uma condição humana: a capacidade de “governar a si mesmo” quando agimos na presença de outros.

Nem a privatividade do espaço doméstico – reino da necessidade, por excelência – nem o espaço público organizado para as trocas comerciais decorrentes daquela necessidade – que confirma o cativeiro que alimentar continuamente um corpo relega aos meros mortais – podem substituir, por completo, a liberdade passível de se viver no seio da esfera pública: não estar sujeito à pressão imediata pela sobrevivência, assim como não ser servo nem senhor de alguém.

Afinal, quem são meus pares? Procurá-los confirma-me que estou “condenado” a ser livre.

Se agir livremente não se realiza sem a companhia de outros, então admitimos que nossas volições tomam forma em um espaço intermediário, isto é, em um mundo que, apesar de comum a todos, tanto nos agrega quanto nos divide. Estimados três leitores, dar de cara com essa obviedade foi, para mim, um mergulhar no escuro que é mudar de cidade/região. Outras paisagens, outros códigos, outro horizonte ou, quiçá, a falta do mesmo, já que em Minas, assim diz um querido colega de trabalho, sempre há um morro a limitar nossa visão.

Sem recair aqui em determinismos geográficos, confesso que uma metáfora me compraz: sou um homem da planície e, como tal, sinto falta de olhar além do horizonte... Reabilitar um senso de realidade leva tempo e toma espaço. Por isso, quem sabe, tenha me retirado para dentro de mim mesmo em reverência à geografia da zona da mata mineira.

O que escrevemos para o público não nos pertence, mesmo que aparente ser uma motivação de foro íntimo.

Se escrever a partir das ciências sociais implica um senso de pertencimento à sua história, havemos de assegurar, através deste blog, uma porta aberta aos(às) interlocutores(as) que creditem à tarefa de pensar sociologicamente outras realidades possíveis que não sacrifiquem o domínio comum de nossas existências aos tantos oportunismos de ocasião que assolam a comunicação na dita “Era da Pós-Verdade”.

Compromisso assumido, tentarei ser mais regular nas publicações, ainda que 2020 seja um ano bissexto...

Saudações aos navegantes.

Obs.: O título inicial deste texto era "Escusas aos leitores", mas eis que mais de um amigo sinalizou que tal expressão é usada habitualmente por um certo juiz de Curitiba que sapateia em cima dos direitos fundamentais e assassina vez sim e outra também o Português. Sendo assim, peço desculpas mais uma vez.

[1] Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.