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quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Notas sobre o antifascismo à brasileira – parte I

Fonte: UOL Notícias (aqui).

Notas sobre o antifascismo à brasileira – parte I

 

“Nada mais parecido com um fascista que um pequeno burguês assustado” – Bertold Brecht.

 

Paulo Sérgio Ribeiro

 

Na expressão fascismo, há uma tessitura histórica a recomendar cautela ao observador contemporâneo, pois é grande o risco de se perder em sua labiríntica polissemia. Por sua vez, se o antifascismo se insinua como um front em meio ao descalabro que é o Governo Bolsonaro, é fortuito esboçar sua análise conceitual sem deixar de lado a matéria viva na qual ela se faz possível, a saber, a situação concreta na qual estamos metidos até o pescoço em busca de uma direção consequente.

 

Primeira observação: evocar o antifascismo como forma de opor-se a Jair Bolsonaro e a tudo que sua trajetória pública implica – sobretudo, quando vomita o revisionismo histórico de 1964 – não é algo nascido no calor das últimas horas. Lembremos, para ficar num só exemplo, a proibição, por parte do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ), de uma faixa antifascista no pórtico da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), em outubro de 2018[1], para não subestimarmos o caráter disruptivo que a denúncia do fascismo mantém após décadas de sua gênese na Itália dos anos 1920, liderada por Benito Mussolini, o Duce, até os estertores da Segunda Guerra Mundial.

 

Mesmo sem pretensão de realizar uma exegese do fascismo italiano, convém indagar como aquela experiência serve de diagnóstico àqueles(as) que vislumbrem no antifascismo um horizonte comum das lutas sociais impulsionadas pela irresponsabilidade do Executivo Federal na gestão da crise econômica e da pandemia da Covid-19. Desde já, livremo-nos de uma exigência tola de formalismo metodológico: provavelmente, a maioria das pessoas que replicam em suas redes virtuais o símbolo antifascista não tem a menor ideia do que foi o fascismo em solo europeu e isso, em si, não chega a ser um problema para quem almeje a revitalização da esfera pública. Se o pensamento político nada mais é do que um movimento de pensamento, não serei eu a exigir duas cópias autenticadas no cartório oficial da cultura erudita para quem queira fazer do antifascismo sua causa.

 

Para tatear as pegadas deste monstro secular, recorro à interlocução de Eric Hobsbawn em seu “Era dos Extremos”[2]. Tal escolha, por certo, não o toma por obra definitiva sobre o fascismo[3], mas tão somente como uma referência oportuna para desatar alguns nós górdios do que venha a ser o seu contraponto entre nós, brasileiros(as), diante da agenda de reformas que se desenrola sob o bolsonarismo sem, todavia, estar reduzida a ele. O monstro a que aludimos releva-se, em chave psicanalítica, como a irracionalidade humana latente que engendra um movimento cíclico de repressão-rebelião-restauração que, em cada época, adquire fisionomia própria.

 

Na época focalizada por Hobsbawn, as três primeiras décadas do século XX, malgrado o mundo já ter testemunhado sua Primeira Grande Guerra, a “civilização liberal” ainda parecia um futuro promissor para um seleto grupo de Estados independentes organizados em torno de valores antitéticos aos regimes de força. Mais do que um arranjo institucional, tratava-se de uma cultura política herdeira do Iluminismo, na medida em que seus principais atributos – governo constitucional com representantes livremente eleitos e submetidos ao domínio da lei; e liberdades civis asseguradas aos cidadãos enquanto um conjunto de direitos sustentado pelo aprendizado coletivo sobre a dignidade da “pessoa humana” – eram tributários de uma noção difusa de melhoria do gênero humano – o reluzente progresso – a ser informada cada vez mais pelo debate público mediado pela educação e pela ciência.  

 

Desnecessário dizer que a antessala desse (frágil) triunfo da civilização burguesa correspondia à existência de domínios coloniais, sem, claro, esquecermos de alguns poucos Estados que consistiam em verdadeiras autocracias. Contudo, no Ocidente, um vendaval autoritário destronaria as crenças coletivas da modernidade oitocentista que mostrava ainda vigor sob aquele verniz civilizatório: se, como aponta Hobsbawn[4], antes da Marcha sobre Roma (1922), contavam-se mais de 60 Estados independentes nos continentes europeu e americano que, com maior ou menor consistência, poder-se-iam chamar de democracias liberais, em 1944, pouco mais de dez Estados persistiriam com tais regimes políticos.

 

O declínio do liberalismo ocorria pari passu com o ensaio geral de uma nova conflagração entre potências imperialistas. Não obstante, salienta Hobsbawn[5], a ameaça às instituições que o espelhavam vinha apenas da direita política. A contar com as teses estapafúrdias (e nem por isso menos eficazes na “guerra híbrida” em que estamos) de uma extrema-direita hiperativa nas redes virtuais, não surpreende que a regressão operada por forças políticas de variado matiz conservador seja atribuída, pasmem, mais uma vez ao espantalho do comunismo. Eleger o último como o álibi da violência estrutural do capitalismo sempre foi um ardil irresistível em um sistema socioeconômico cuja incapacidade de produzir solidariedade social nada mais faz do que devolver àquela violência estrutural sua nudez e crueza nos períodos de agudização das crises de acumulação capitalista.

 

Na presente década (2011-2020), mal passado o crash de 2008, tornou-se um dado sensível para a geopolítica a rearticulação de uma direita internacional com virulência equivalente à sua congênere que flertou com o fascismo no entreguerras. Todavia, tal aggiornamento reacionário não parece, até prova em contrário, uma ameaça imediata aos regimes democráticos. Ao menos, é o que sugere um insuspeito periódico liberal, The Economist[6], ao divulgar (adotando critérios teóricos e metodológicos que não discutiremos aqui) um ranking de países segundo a eficiência ou debilidade do desempenho de suas instituições democráticas. Nele, o Brasil seria classificável como uma “democracia imperfeita”. Sim, eu sei, soa um tanto eufemístico para quem sobreviveu até aqui em solo brasileiro.

 

Perdoem o argumento de autoridade, mas se o maior liberista que o Brasil foi capaz de oferecer ao mundo, José Guilherme Merquior (1941-1991), admite que nem todas as conquistas democráticas no Ocidente podem ser tributadas às forças explicitamente liberais[7], não haveria por que ignorar o que está em jogo na reiteração de falácias sobre aquela que viria o grande rival delas: a revolução social, como máxima expressão da crítica ao capital e, não menos, como veio narrativo das tradições de esquerda em disputa por uma consciência possível.

 

Na longa guerra civil europeia (1914-1945), os comunistas propriamente ditos sempre foram minoria nos movimentos trabalhistas da maioria dos países e, quando se mostravam suficientemente fortes e coesos, foram ou estariam na iminência de serem massacrados. O medo de uma revolução anticapitalista era real, porém seus potenciais agentes não estavam incondicionalmente comprometidos com esse fim: na Rússia soviética, o movimento revolucionário além fronteiras recuaria depois da Primeira Guerra e os movimentos social-democratas (de orientação marxista) aceitavam sem maiores senões a democracia representativa, convertendo-se meramente em partidos da ordem [8].

 

Se houve uma segunda onda revolucionária durante e após a Segunda Guerra, ressalva Hobsbawn, o “perigo vinha exclusivamente da direita”[9] quanto à derrubada de governos constitucionais. Guardados os condicionantes inerentes à “Era da Catástrofe” em face da falência do programa neoliberal no século XXI, é razoável indagar sobre o “perigo” da nova articulação global de uma direita tentada a dobrar a aposta diante da crise de legitimação do capital, pois, tal como no aludido cenário de guerra total, é desaconselhável esquecer que o “rótulo ‘fascismo’ é ao mesmo tempo insuficiente mas não inteiramente irrelevante”[10].


Se tal advertência procede, na sequência, buscarei sumariar como Hobsbawn tipifica as forças que punham abaixo os regimes liberal-democráticos e, por conseguinte, contextualizar tais dinâmicas no que concerne ao antifascismo no Brasil de Bolsonaro.



[1][1] UOL. TRE tira faixa antifascista da UFF e fiscais vão à UERJ; OAB acusa censura, edição de 26/10/2018. Disponível (aqui)

[2] Cf. HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos. O breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

[3] George Gomes Coutinho faz um excelente cotejo de outras referências igualmente relevantes em texto derivado de sua participação, a convite do Cineclube Marighela, como debatedor do filme “A Onda”, intitulado “Reflexões sobre o Fascismo” (aqui).

[4] Op. cit., p.114-115.

[5] Idem.

[6] UOL. Brasil cai em índice que mede democracias no mundo. Edição de 22/01/2020. Disponível (aqui)

[7] Cf. MERQUIOR, José Guilherme. O liberalismo – antigo e moderno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p.18.

[8] Cf. HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos. O breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 116.

[9] Ibid. ibidem.

[10] Idem.

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Feliz Ano Velho



Feliz Ano Velho

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Ser colaborador em um blog proporciona experiências fascinantes tais como a sintonia do que publicamos. Eis o que me aconteceu ao ler o texto inaugural deste 2019 escrito por Márcio Malta, o nosso Nico. Apesar de professarmos a Sociologia como responsabilidade pública, com todos os tributos que por vezes rendemos ao estilo de redação científico, é bom lembrar que o formato do blog se presta essencialmente à função expressiva da língua, o que nos devolve à singularidade de “todo aquele que nos empresta sua testa”, para reverenciar um dos versos do atemporal Chico Buarque.

Se assim o é, aproveito a oportunidade para iniciar os meus trabalhos por aqui com um tom mais “pessoal” do que de costume.

Gostaria de falar da travessia que começamos a partir de hoje como bem sintetizou Nico em “O que representa o governo Bolsonaro?”, tendo por enfoque o que exigirá de nós, partícipes do campo progressista da política brasileira, um senso tático e, talvez, um esforço sobre-humano: conviver com quem nos é declaradamente hostil sob o governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro. Sobreviver para resistir e resistir para sobreviver. Antes fosse só um jogo de palavras...

Os “bolsonaros” estão soltos por aí. Têm de todo tipo. A fauna é variada, sabemos. Divirto-me especialmente com aqueles(as) que nos enviam mensagens de paz nas festividades de fim de ano. É como se dissessem: “Gozamos com o terror institucionalizado, mas temos bom coração”. De minha parte, pergunto: de que nos valeria transigir com um simulacro de democracia? O ensaio de “pax armada” que marcou o rito de posse do presidente eleito aí está para quem quiser ver. Uma grotesca mostra da continuidade de um governo ilegítimo que se instaurou em 2016, considerando os seus alinhamentos programáticos com a agenda ultraliberal de Michel Temer.

Ora, alguém poderia contra-argumentar: gostemos ou não, é o que a vontade coletiva decidiu e qualquer objeção a isso seria antidemocrático. Em tese, não haveria por que discordar de uma ponderação desse tipo. No entanto, nunca é demais lembrar os não poucos sinais de que será mínimo o espaço democrático para a oposição ao governo federal e aos seus símiles estaduais, pois, concordando com a psicóloga Eni Gonçalves de Fraga[1], estamos sob a iminência de uma ditadura civil-militar em que, ironicamente, os líderes da autocracia burguesa não precisam fazer nada mais do que “seguir” os seus liderados.

É uma ditadura às avessas. É uma ditadura que vem das ruas. Dessa vez não é de cima pra baixo. É de baixo pra cima. Os bolsonaros saíram à luz do dia para impor uma nova (antiga) ordem, elegendo o seu maior representante, que teve a audácia de colocar a cara no sol, porque sabia que estava em consonância com o coletivo. Ele apareceu com segurança e tranquilidade. Porque o trabalho e o esforço não é dele. É do povo. Ele não precisa sequer fazer discurso, debater, argumentar. Porque não é disso que se trata. Não é isso que determina a sua eleição[2].

Se os “odiadores da política” aderem em massa àqueles que continuam a fazer política profissional lhes incitando a regressão dos costumes em um círculo vicioso, quais opções nos restam sem, necessariamente, abrir mão da via institucional? Admito não ter resposta pronta e acabada para isso. Apego-me apenas ao “paradoxo da tolerância” do qual nos fala Karl Popper. Para o filósofo da ciência austríaco, seria risível (se trágico não fosse) certos chavões dos bolsonaristas de plantão como “É preciso esperar o que vai acontecer” ou “Torcer contra de nada adianta”. Repeti-los seria o mesmo que combinar com um canibal aonde ir depois do jantar...

Falando sério, por que o paradoxo que Popper esculpiu no imediato pós-guerra se mostra à prova do tempo? Basicamente, porque a política, como construção provisória de consensos, requer de cada um(a) enxergar a si mesmo(a) como membro de um todo que assim se constitui pela liberdade de todos os indivíduos em particular. Ora, diria Popper, tolerar os intolerantes põe em risco a própria tolerância, na medida em que não é possível detê-los pela força da argumentação lógica; pelo contrário, eles redobram a sua força justamente pela rejeição a quaisquer argumentos. 

Sendo assim, insistir em relativizar manifestações de intolerância do governo Bolsonaro e dos seus “seguidores” é perder de vista aquilo que é a última garantia da luta por autoconservação: a desobediência civil. Se esta for mesmo a tarefa do momento, quais práticas e saberes políticos seremos capazes de mobilizar para resistir ao autoritarismo? 

Temos um ano inteiro para descobrir.



[1] https://jornalggn.com.br/fora-pauta/um-olhar-da-psicologia-sobre-o-fenomeno-coiso-por-eni-goncalves-de-fraga
[2] Ibid. ibidem.

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

A agenda econômica de Jair Bolsonaro: um salto no escuro



A agenda econômica de Jair Bolsonaro: um salto no escuro

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Definidos os candidatos ao cargo de Presidente da República: Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT).

Segundo turno a pleno vapor.

A esta altura, muitos devem estar exaustos com uma disputa eleitoral cujas solicitações são alucinantes nas redes sociais. Outros tantos, mais do que exaustos, estão enfadados com uma eleição que mais parece um “terceiro turno” ampliado. O que está posto? A ruptura institucional de 2016 como limite que as classes dominantes (sim, uso o termo) impuseram à ampliação da democracia social e da soberania nacional (marco regulatório original do Pré-Sal e realinhamento geopolítico com a formação dos BRICS) perseguida pelos governos do PT com os seus acertos e erros. Em seu lugar, observou-se desde então uma luta nua e crua entre os interesses corporativos da alta burocracia do Estado (Judiciário, Ministério Público, Polícia Federal, Forças Armadas entre outros) e experimentos inviáveis no médio e longo prazos como a Reforma Trabalhista e a Emenda Constitucional nº 95.

Passados mais de dois anos daquele ano que não terminou, ninguém anteciparia com exatidão um cenário tão aterrador como a onda de violência política dos seguidores de Bolsonaro[1] que desfigura o espaço público a ponto de intimidar até mesmo quem investiu no antipetismo como linha demarcatória de um projeto de poder. Concordo com Luís Felipe Miguel que a direita derrotada nas quatro últimas eleições nem liberal o é, uma vez que seus melhores quadros se mostraram dúbios diante do manejo das pautas morais como balizador da luta política que sufoca as liberdades individuais. Tais pautas são o mote preferencial da produção de conteúdo a ser difundido no ambiente virtual, mobilizando afetos primários – “eu odeio porque odeio!” - que nivelam por baixo o debate programático.

Contudo, os programas de governo são efetivos, ainda que o eleitor médio não tenha por hábito avaliá-los. Os seguidores de Bolsonaro talvez parassem na página 2 se lhes fossem dado ler mais do que correntes anônimas no WhatsApp. Em respeito aos mesmos, dei-me ao trabalho de olhar de perto o programa do candidato da extrema-direita[2], que se inicia com uma frase de teor aparentemente ufanista - “Brasil acima de tudo” -, mas que, em verdade, é uma apropriação do slogan “Alemanha acima de tudo” (Deutschland über alles) adotado por Adolf Hitler no regime totalitário que comandou na Segunda Guerra Mundial.

O que esse programa de inspiração nazista revela sobre uma das principais controvérsias de sua corrida presidencial (ou louca cavalgada, diriam alguns), a saber, economia? Na seção dedicada ao tema “Liberalismo econômico”, Bolsonaro expõe uma visão de Brasil bem ao gosto dos editorialistas de nossa imprensa tradicional:

Corruptos e populistas nos legaram um déficit primário elevado, uma situação fiscal explosiva, com baixo crescimento e elevado desemprego. Precisamos atingir um superávit primário já em 2020.

Na Câmara dos Deputados, Bolsonaro votou a favor da Emenda Constitucional nº 95[3], que limita os gastos primários do governo federal por 20 anos. Por gastos primários, compreende-se o investimento público orientado para necessidades sociais (educação, saúde, cultura, segurança pública, entre outras) que, numa sociedade complexa como a brasileira, são um universo em constante expansão. A EC 95, porém, deixa de lado os chamados gastos financeiros - pagamento do principal da dívida pública, juros da dívida e debentures –, equivalentes a mais da metade do orçamento anual.

Ora, como fazer crer que o déficit público possa diminuir sem intervir no principal fator de endividamento? Manutenção de taxas de juros elevadas para conter a inflação (como meio usual de garantir a ferro e fogo o superávit primário) pode perfeitamente conviver com uma curva crescente de gastos financeiros, castrando, assim, as chances de um ciclo econômico sustentável. Mas Bolsonaro não se abala. Para o “capitão”, o liberalismo com “L” maiúsculo seria uma vara de condão a resolver todos os males:

As economias de mercado são historicamente o maior instrumento de geração de renda, emprego, prosperidade e inclusão social. Graças ao Liberalismo, bilhões de pessoas estão sendo salvas da miséria em todo o mundo.

A crença no mercado livre e autorregulado é simplesmente um ato de fé. Ora, se é plausível admitir que o indivíduo moderno conheceu oportunidades de realização pessoal inauditas no capitalismo em comparação com o modo de produção feudal e o mercantilismo, também é forçoso reconhecer que esse sistema econômico nunca gerou solidariedade social suficiente para distribuir de forma justa a riqueza nele produzida. Nesse sistema, que esculpiu o mundo à sua imagem e semelhança com sucessivas crises de acumulação capitalista, desenvolveu-se um mercado financeiro cuja dinâmica destronou a ideologia do lasseiz-faire, tornando-se o expediente da concentração de capital mediante cartéis e monopólios.

Ora, se nunca existiu uma economia de mercado realmente livre, a defesa da ausência de regulamentação do Estado seria, no mínimo, uma inconsequência em face dos desafios que envolvem a busca de equilíbrio entre as relações de mercado e a garantia de direitos sociais previstos constitucionalmente. Voltando à famigerada EC 95, à qual Bolsonaro deu o seu voto de aprovação na Câmara, o que nos é oferecido? Poderíamos resumir na forma de um “modelinho” de causa e efeito: o governo paga uma taxa de juros alta (1); o mercado financeiro acomoda-se à taxa básica de juros aumentando as suas taxas para o crédito ao consumidor e às empresas (2); o crédito caro reduz a demanda das pessoas e as empresas reagem reduzindo o investimento (3); demanda menor implica, tendencialmente, queda da inflação (4); esta é alcançada assumindo-se, todavia, a queda do crescimento econômico e o aumento da taxa de desemprego sob o estresse da manutenção do pagamento do principal e dos juros da dívida (5). Daí, fecha-se um círculo vicioso no debate econômico, reduzindo este ao discurso de austeridade fiscal (“não cabem todos no orçamento”) que oculta a submissão do interesse nacional ao rentismo financeiro (“o país honra os seus contratos”).

Bolsonaro seria exceção à regra? Apoiando-se na retórica do “Estado mínimo”, o presidenciável retoma o ideário das “privatizações e concessões” enquanto instrumentos de gestão que “deverão ser obrigatoriamente utilizados para o pagamento da dívida pública”. Uma vez mais, verifica-se a postulação de um mercado livre que, entregue a si mesmo, consumaria à perfeição o sonho liberal:

[...] devemos ressaltar que a linha mestra de nosso processo de privatizações terá como norte o aumento na competição entre empresas. Afinal, com mais empresas concorrendo no mercado a situação do consumidor melhora e ele passa a ter acesso a mais opções, de melhor qualidade e a um preço mais barato.

Quais seriam os critérios para delimitar interesses estratégicos nessa proposta (ameaça?) de uma política agressiva de alienação dos ativos nacionais? O programa de Bolsonaro talvez ofereça alguma pista ao tropegar pelo tema do comércio internacional. Aqui, no entanto, topamos com premissas temerárias. Inicia-se com um pretenso diagnóstico: seríamos um dos países menos abertos ao comércio internacional e, portanto, estaríamos menos aptos a competir em mercados de alta tecnologia. O remédio? Lançarmo-nos de peito aberto à competição internacional com a redução de alíquotas de importação e de barreiras não-tarifárias e, não menos, com a instituição de novos acordos bilaterais. Para o “capitão”, o comércio internacional lograria um “choque tecnológico positivo”, caracterizando a senha para os ganhos de produtividade e o crescimento econômico. Nos termos propostos, a fusão (em andamento) da Embraer com a Boeing seria um salto qualitativo para nossa aviação comercial...

O que ignora por completo Bolsonaro et caterva? Na atual divisão internacional do trabalho, os verdadeiros saltos se dão pela acumulação técnico-científica feita em casa, na medida em que o progresso técnico se irradia através de produtos protegidos por patentes. Estas, por óbvio, tendem a cristalizar a diferença qualitativa no intercâmbio comercial de países industrialmente avançados com outros que, tais como o Brasil, não priorizam C&T, lembrando que enfrentamos um severo processo de desindustrialização, cenário no qual o aceno para o livre-cambismo feito por Bolsonaro pode intensificar a crise da receita pública.

Por fim, tive um trabalho adicional neste castigo que foi passar a limpo o programa do “capitão”: contar as ocorrências das palavras “privatizar”, “privatização” ou “privatizações”. Estas foram mencionadas nove vezes. Em contrapartida, a palavra “soberania” foi citada uma só vez.

Sob a enxurrada de notícias falsas e “memes”, uma agenda ultraliberal se impõe com demonstrações raivosas de adesão ao pretendente a führer tropical.

Ah!, sim, a bandeira deles é verde-amarela...




[1] http://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/brasil/53635/apoiadores-de-bolsonaro-realizaram-pelo-menos-50-ataques-em-todo-o-pais
[2] http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2018/propostas-de-candidatos
[3] https://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/10/os-366-deputados-que-aprovaram-pec-241-proposta-que-congela-investimentos.html

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Entre anjos e demônios


Entre anjos e demônios


Por Paulo Sérgio Ribeiro

Um evento insólito: Jair Bolsonaro esfaqueado à luz do dia. O atentado contra o presidenciável ocorrera em plena campanha no município mineiro de Juiz de Fora às vésperas do feriado nacional da Independência. De pronto, teorias conspiratórias pululam e toda sorte de oportunismo político se faz presente nas narrativas sobre suas possíveis causas e os prováveis desdobramentos para o pleito de 7 de outubro. Antecipar prognósticos neste momento é, no mínimo, arriscado, dada à opacidade dos acontecimentos numa eleição atípica em tantos aspectos.

Importa avaliar a agressão sofrida por Bolsonaro não como um ponto fora da curva senão como a "curva" em si e, aqui, tocamos na nervura de todas as tensões. A imoderação das paixões parece ter alcançado o seu ponto de inflexão quando um líder de extrema-direita se encontra com as consequências do imaginário em torno da violência política que o próprio personifica. Esta óbvia constatação não nos autoriza a subestimar o perigo da regressão dos costumes, isto é, a incapacidade de uma cultura e sociedade definirem acordos morais mínimos sobre o que seja “crime e castigo” contra um indivíduo ou grupo nas lutas por poder.

Mesmo admitindo que Bolsonaro desconhece barreiras éticas entre os discursos que profere e o decoro parlamentar enquanto deputado federal no sétimo mandato consecutivo, é forçoso indagar como eventuais mistificações sobre o atentado podem vir a caracterizá-lo como um “mártir” da democracia que sempre desprezou. Se isto procede, não é demais lembrar que, diante desta maré montante de irracionalidade, todos temos de fazer escolhas, tenhamos consciência disso ou não. Repudiar a agressão contra Bolsonaro é fortuito se, e somente se, consigamos, em nossa esfera de ação imediata (quem não tem um parente ou amigo reacionário hoje em dia?), devolver àqueles que o seguem sua condição de sujeito moral, isto é, restituir-lhes a capacidade de responsabilizar-se pelo que falam e sentem quanto à realização de fins legítimos.

Do contrário, a insegurança jurídica promovida por aqueles que custodiam na Justiça Federal a manutenção do golpe parlamentar contra uma Presidenta legitimamente eleita reduzirá a luta política a um embate de vida e morte entre machos-alfa pela comando autoritário da nação. 

Até o momento, os sinais são confusos no que toca à transposição desse cenário.

O debate público no Brasil foi colonizado por moralistas sem moral que fomentam medos e preconceitos em determinados segmentos da classe média tradicional contra os pobres em geral e as minorias em particular, impondo uma agenda antipopular e antidemocrática cujos efeitos se fazem cada vez mais dramáticos e que desafiam o campo progressista a atualizar seus acordos táticos neste 1º turno, caso o que esteja em jogo seja redesenhar um pacto social que reabilite direitos fundamentais e, não menos, valores civilizatórios.