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sexta-feira, 20 de novembro de 2020

João Alberto Silveira Freitas

Fonte: G1 (aqui).

João Alberto Silveira Freitas


Paulo Sérgio Ribeiro

Se branco fosse, vivo estaria. Simplismo? Não. Apenas uma mórbida confirmação do genocídio negro perpetrado por brasileiros(as) às vésperas do Dia Nacional da Consciência Negra. O fato: João Alberto Silveira Freitas, um homem negro de 40 anos, foi espancado ontem, sem chance de defesa, até a morte por seguranças privados de uma corporação francesa – Carrefour – em um dos seus estabelecimentos comerciais em Porto Alegre/RS, dando um nome e um rosto ao velho “normal” descrito pelo Anuário Brasileiro da Segurança Pública[1]. Em sua edição mais recente (2020), tendo por referência o ano de 2019, dois dados saltam aos olhos: das vítimas de violência letal no Brasil, 74,4% atingem negros e, no tocante à vitimização decorrente de intervenções policiais, 79,1% lhes acomete[2].

Ante a constância da vulnerabilidade social de homens e mulheres negros(as) à violência em suas múltiplas manifestações racistas, temos de indagar sobre as razões possíveis da arbitrariedade sobre os seus corpos aqui e alhures. Em “Contra-história do liberalismo”[3], Domenico Losurdo sugere apontamentos tão perturbadores quanto as imagens do brutal assassinato do senhor João Alberto.

Ao focalizar a construção do pensamento liberal nos dois lados do Atlântico a separar o império inglês de suas colônias no hemisfério norte até o século XVIII, Losurdo revela em detalhe as incongruências de uma visão de mundo que encontraria na escravidão racial seu anteparo em um emergente capitalismo cuja lógica desumanizante não daria margem a veleidades iluministas.

Losurdo é incisivo: o que é o liberalismo? A resposta, feita com suficiente fôlego empírico em sua obra, poderia assim ser contextualizada: filósofos, como John Locke entre tantos outros expoentes daquela tradição de pensamento, que elegeram a liberdade como o alfa e o ômega de um concepção de boa vida, justificariam o poder absoluto sobre homens e mulheres tornados bens semoventes sob o escravismo colonial como prova de coerência de sua luta contra qualquer poder despótico que interviesse na propriedade privada entendida como um direito natural. Tratar-se-ia, em sua forma e conteúdo, de assegurar vida longa ao mito fundador de uma sociedade nacional politicamente emancipada (EUA), mas comprometida (eternamente?) com o seu complexo de colono:


Se a honra da metrópole como lugar privilegiado da liberdade estava salva, não obstante a permanência da escravidão na sua extrema periferia, para os colonos, essa visão cometia o erro de confundir e assimilar ingleses livres, escória carcerária e povos de cor.

[...]

Independentemente até do problema da representação, a delimitação espacial da comunidade dos livres é percebida como uma exclusão intolerável. Por outro lado os colonos, ao reivindicar a igualdade com a classe dominante inglesa, aprofundam o abismo que os separa dos negros e dos peles-vermelhas. Se em Londres se faz a distinção entre a área da civilização e a área da barbárie, entre o espaço sagrado e o profano, contrapondo em primeiro lugar a metrópole às colônias, os colonos americanos são levados por sua vez a localizar a linha de separação em primeiro lugar no pertencimento étnico e na cor da pele: em base ao Naturalization Act de 1790, só os brancos podem ser tornar cidadãos dos Estados Unidos[4].


EUA e Brasil diferem quanto às vicissitudes do seu racismo institucionalizado, mas olhar para a contradição insolúvel do ideário de liberdade que caracteriza a autoconsciência dos(as) estadunidenses e o preço de levá-la adiante, caso não subestimemos o movimento “Black Lives Matter” detonado pelo assassinato igualmente brutal de um homem negro – George Floyd – por agentes policiais, coloca-nos diante do nosso próprio complexo de colono. Ora, não estaríamos diante dos impasses trágicos da delimitação, por exclusão, de uma “comunidade dos livres” entre nós?

O senhor João Alberto ousou ser livre ao acessar as dependências de um hipermercado e delas foi expulso como um corpo sem vida por dois homens brancos, agentes de segurança privada, sendo um deles também policial militar[5]. Excelsa realização de nossa subcidadania: Mercado e Estado personificados como uma só força contra alguém que não seja legatário de uma ordem capitalista cuja estrutura de poder se edifica sobre as bases duradouras do colonialismo.

O que advirá do holocausto negro testemunhado na capital gaúcha retirará o véu de nossas iniquidades neste 20 de novembro? Haverá sublevações populares como as que se seguiram à morte de George Floyd nos EUA? Não levanto tais questionamentos me fazendo incendiário. Só desconfio que, se sobrevierem atos de revolta antirracista como uma onda crescente nas ruas de nosso(?) país, apelar à ordem dirá muito sobre o lugar de fala e o lugar de escuta de cada um(a).



[1] Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2020). Acesso em 20/11/2020. Disponível (aqui).

[2] Idem, p. 12.

[3] CF. LOSURDO, Domenico. Contra-história do liberalismo. São Paulo: Editora Ideias & Letras, 2006.

[4] Op. cit., pp. 61-62.

[5] G1. “Era esperto, brincalhão”, diz amigo de infância sobre homem negro morto espancado em supermercado no RS. Edição de 20/11/2020. Disponível (aqui). 

sábado, 29 de fevereiro de 2020

Da Planície Goytacá ao Planalto Central: Sobre poderes, instituições e teorias políticas implícitas

Da Planície Goytacá ao Planalto Central: Sobre poderes, instituições e teorias políticas implícitas

George Gomes Coutinho

Não podemos dizer que está tudo bem em nossa conjuntura. Da Planície Goytacá ao Planalto Central os legislativos ganharam a atenção da opinião pública ao desafiar seus executivos dentro da ordem constitucional, com maior ou menor impacto e guardadas as devidas proporções. Até então essa não deveria ser questão a nos preocupar dado que momentos de atrito entre poderes estão previstos na arquitetura das instituições políticas modernas. O maior problema são as reações dos seus respectivos executivos.

Em Campos vimos a não aprovação da Lei Orçamentária Anual em rodada ordinária de votações, fazendo com que a LOA só fosse aprovada no início deste ano.

No âmbito federal temos instalado o que alguns chamam com bom humor de Maiamentarismo. Outros chamam simplesmente de “parlamentarismo branco”. Neste caso em particular muitas vezes as proposições vindas do executivo são repaginadas, rediscutidas, algumas rechaçadas e outras acatadas.

As reações dos executivos foram dramáticas nos dois casos. Em Campos o prefeito Rafael Diniz foi acusado de pressionar o legislativo[1] e naquele momento certo alarde foi feito na opinião pública nesta cidade onde parte da economia depende dramaticamente de recursos públicos. Embora a não aprovação da LOA não atingisse as despesas obrigatórias, vide salários de servidores e dívida pública, uma narrativa de crítica pesada ao legislativo local circulou. Contudo as críticas, inclusive as perpetradas por Diniz, se indicavam certo pendor autoritário, onde o legislativo por vezes é visto como uma espécie de correia de transmissão do executivo, estas não flertaram perigosamente com a ruptura institucional. Eram críticas duras onde a população “comprou” a interpretação de que o legislativo seria uma espécie de inimigo a ser combatido e refletem antes um sentimento autoritário endêmico que é um traço de nossa cultura política.

Esta desconfiança ante o legislativo não é uma novidade. Cabe lembrar Luiz Inácio Lula da Silva e a acusação de uma Câmara Federal formada por “300 picaretas com anel de doutor”.

O problema é onde esta narrativa pode nos levar. A satanização de um dos poderes, ou mais de um, ignora as recomendações da filosofia política moderna que encontramos em Montesquieu ou nos Federalist Papers. Não precisamos entrar aqui nos detalhes das obras desta tradição filosófica liberal. Basta lembrarmos que dividirmos a responsabilidade dos processos de tomada de decisão é uma possível prevenção contra arroubos tirânicos. Sim, estamos falando de tirania.

A história humana nos mostra que, contrariando Platão e seu Rei-Filósofo, Faróis da Alexandria tem pés de barro quando decantam na realidade. Sob a égide do “correto”, do “mais justo”, “do mais sábio”, etc., plenos poderes concentrados não costumam produzir bom resultado justamente quando reconhecemos a política enquanto é: humana, demasiado humana, escrava de paixões, caprichos e muitas vezes impenitente em seus erros.

Retomando a nossa linha argumentativa factual, sim, legislativos contrariarem os seus respectivos executivos faz parte das regras do jogo na Democracia Representativa Liberal, nome completo disto que simplesmente chamamos de democracia. Diniz quando utilizou de retórica em disputa com seu legislativo rebelde, embora tenha carregado nas tintas e flertado com certo pendor autoritário, não atravessou o Rubicão. Apenas surfou a onda do traço autoritário subjacente que também é parte de nossa cultura política onde os legislativos são mais vilões do que mocinhos.

Outra coisa muito diferente e grave é o chefe do executivo divulgar vídeos de apoio a protestos em março próximo que afrontam as bases institucionais brasileiras vigentes.

Cabe notarmos que a convocatória dos protestos de 15 de março tiveram por estopim a fala do General Augusto Heleno onde o Congresso é acusado de chantagear o executivo. O General recomendou o “foda-se”. O 15 de março talvez seja uma forma de plasmar o “foda-se” clamado pelo General.

Não nos cabe discutir aqui crimes de responsabilidade, problema já debatido muitíssimo por juristas diversos na grande mídia. Mas, neste momento é fundamental assinalarmos que quando um membro importante do executivo sugere um “foda-se” em público a um dos poderes e este agente é demasiado próximo do presidente, a segurança e o respeito pelas instituições encontram-se no volume morto. Para além disso, denuncia que a teoria política subjacente ao que temos no poder no executivo federal é qualquer coisa... Mas, não merece de forma alguma o termo “liberal”. O alerta vermelho prossegue aceso e não dá sinais de que irá apagar tão cedo.




sábado, 16 de dezembro de 2017

Perigos da percepção

Perigos da percepção*

George Gomes Coutinho **

Desde Adam Smith, o fundamental economista escocês do século XVIII, os liberais mais conscientes jamais tiveram uma relação religiosa e dogmática com a “mão invisível”. Sabem que a tal “mão” do mercado não funciona enquanto entidade onipresente, onisciente e onipotente substituindo o Deus judaico-cristão. Há uma série de condições para que a racionalidade dos agentes tenha a possibilidade real de fazer intervenções de qualidade e que o mercado se auto-organize. Um destes elementos fundamentais envolve as informações que o sujeito detém ou não em uma transação. De outro modo as decisões humanas poderiam se contentar com conselhos de cartomantes, leitura da borra de café e outros métodos divinatórios.

Neste espírito é muitíssimo bem-vinda a pesquisa “Perils os Perception” (Perigos da Percepção) do Instituto Ipsos Moris divulgada na última semana. A pesquisa, realizada em 38 países centrais e “em desenvolvimento”, tenta mensurar a qualidade da percepção dos cidadãos comuns ante o real. Em outras edições a pesquisa tentou construir um “índice de ignorância” e agora optou-se pelo eufemismo “percepção distorcida”. Em suma, a pesquisa averigua o quanto o sujeito sabe de fato sobre os problemas e questões do seu país. O Brasil, dentre os 38, ficou no “vice-campeonato” dos que menos detém informações de qualidade sobre a realidade em que vivem. O primeiro lugar ficou com a África do Sul.

Este é mais um dos muitos alertas amarelos para o ano eleitoral de 2018. Afinal, o sistema de competição eleitoral, que mantém funcionamento análogo aos mercados, se pauta pela escolha dos eleitores diante de um leque de opções pré-determinado de candidatos e siglas. Tal como no mercado, sem informações de qualidade o eleitor tende a fazer escolhas “subótimas”. O problema é que os responsáveis por esse quadro de desinformação generalizada são muitos. Mídia impressa e televisiva, mercado, Estado e a própria sociedade. Como não é possível reverter a posição no “ranking da ignorância” no curto prazo, as agências e profissionais de “checagem de fatos” serão fundamentais para mitigar um cenário que já será bastante perverso. Afinal, não será raro votarem no que “acham que é”, embora de fato não o seja.

* Texto publicado em 16 de dezembro de 2017 no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes, RJ.