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terça-feira, 3 de agosto de 2021

Pandemia, Crise Política e Crise do Conhecimento?

 

Pandemia, Crise Política e Crise do Conhecimento?[1]

 


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José Colaço e Roberto Kant de Lima[2]

 

O discurso científico foi uma das primeiras coisas atacadas por autoridades políticas nacionais e importantes personalidades públicas brasileiras, desde o início da pandemia e pelas mais variadas razões. Esta atitude, como sabemos, foi designada como “negacionismo”, uma vez que ela mobiliza a negação, a não aceitação ou a rejeição de evidências basilares que até mesmo a ciência não precisa de muito esforço para tentar explicar. Como, por exemplo, que temos um novo e desconhecido vírus que se transmite pelo ar circulando por aí e precisamos nos mobilizar, de alguma forma, para conter isso.   

Nas etnografias que realizamos sobre conhecimentos naturalísticos, ou seja, sobre os conhecimentos que grupos sociais que estabelecem uma relação direta, biográfica e umbilical com o meio ambiente natural possuem sobre diversos os aspectos que o compõem, ficou evidente que estes conhecimentos quase nunca adquirem status de conhecimento com “C” maiúsculo para pesquisadores e/ou agentes de políticas públicas das áreas de oceanografia, biologia marinha, geologia, agronomia, etc., o que implica obstaculizar seu reconhecimento oficial, por parte do Estado, ou mesmo sua incorporação na implementação de políticas de conservação ambiental, planos de manejo de áreas protegidas etc. 

Por isso mesmo, se por um lado, tornou-se incômodo o ataque e a defesa incondicional da ciência na atual conjuntura,  por outro incomodou também a forma como a classe média esclarecida começou a se relacionar com ciência neste contexto. Com um discurso abertamente crítico ao atual Governo Federal, sobretudo no que diz respeito à condução da maior crise sanitária que já vivemos, parte considerável da grande mídia nacional iniciou uma campanha sem precedentes, a favor da ciência e tudo aquilo que dela pode ser derivado, como a vacina, os materiais de proteção, os protocolos sanitários, as pesquisas, os especialistas, as tabelas, os números, as estatísticas e por aí vai. A verdade é que não há um só dia que esta mesma mídia não exiba a fala de um especialista, ou seja, de um cientista, ou de um médico, sobre o modo através do qual a pandemia tem sido mal conduzida no Brasil. Nos expomos às elaborações de vários especialistas, como se todos eles tivessem um conhecimento uniforme sobre o vírus, o que misturou em sua maioria médicos – que têm a perspectiva do tratamento da “doença” – com aqueles que procuram estudar e conhecer o vírus – especialmente os virologistas e aqueles que têm suas especialidades na lida com as epidemias e a saúde pública. Todas essas perspectivas diferenciadas de abordagens de uma mesma pandemia produziu uma cacofonia de opiniões, aparentemente discordantes, se não se distingue de onde elas partem.

A voraz defesa da ciência, ou do pensamento científico, parece encenar uma espécie de “iluminismo tardio”, anacrônico e superficial, em plena segunda década do século XXI. Uma cruzada da racionalidade contra as trevas e o obscurantismo que, nesta edição contemporânea, ganhou o nome, acertadamente, de negacionismo. Essa narrativa do “iluminismo tardio” peca, no entanto, em não conseguir se comunicar com um considerável estrato da população que nunca acreditou ou vem sendo secular e sistematicamente excluída, por vários motivos, inclusive educacionais, sobre a eficácia das práticas científicas. Tal narrativa soa, por vezes, arrogante, e parece reificar a ciência como, ao fim e ao cabo, a única forma de razoável “estar no mundo” castigado pela pandemia. 

Tornamo-nos pesquisadores em antropologia num período em que a disciplina já tinha “ido para o divã”, em diversas ocasiões, para rever seu passado etnocentrista, racista, colonial, machista, racionalista, hiper ocidentalizado etc. Isso não significa que ela não seja isso, ou parte disso, ainda hoje. O que queremos destacar aqui, no entanto, é que há uma atitude fundamental para o exercício, não apenas da antropologia, mas da prática científica em geral. Estamos nos referindo ao ceticismo. Na antropologia ficou charmoso, pelo menos no Brasil, chamar ceticismo de “estranhamento”. Sem isso não há ciência, pois sem ceticismo não há experimentação nem especulação. 

Experimentação e especulação são características apenas do chamado “pensamento científico”? A ciência antropológica nos chamou a atenção de que todas as formas de pensamento humano partem de um mesmo princípio que combina, entre outras operações, a experimentação das coisas que habitam o mundo, sejam elas seres invisíveis aos olhos humanos, tais como micro organismos ou espíritos, e especulação sobre causas ou efeitos de fenômenos das mais diversas naturezas. Basta que lembremos de um desses textos, a “Ciência do Concreto”, capítulo do livro “O Pensamento Selvagem” de Claude Lévi-Strauss.  

Há outro componente que deveríamos destacar brevemente aqui, que escapa a isso que estamos chamando de reificação da ciência ou iluminismo tardio: a crença. A identificação com a ciência está muito mais relacionada ao ajustamento a um projeto de sociedade, com componentes morais, valorativos e práticos do que a sua real capacidade de resolver nossos problemas enquanto sociedade. “Acreditamos” na ciência e na tecnologia menos por seus resultados e mais, porque, naquilo que os sociólogos chamam (ou chamavam) de modernidade, parte considerável da sociedade sucumbiu aos chamados Sistemas Peritos, como tentou definir, já há alguns anos, Anthony Giddens. Sempre que pensamos em nossa relação com a ciência e com a técnica, é interessante lembrar exemplo do avião: não precisamos conhecer como um avião funciona, não precisamos entender de engenharia aeronáutica, não precisamos saber pilotar um avião, não precisamos saber em detalhes as condições atmosféricas durante um voo para sabermos que o avião é o meio de transporte mais seguro que a humanidade já produziu e, ao mesmo tempo, não aceitar esta condição e ter “medo de avião” é considerado, geralmente, algo infantil ou irracional. 

Se a noção de Sistemas Peritos aqui grosseiramente resumida é controversa na teoria social de hoje, de todo modo podemos admitir que a ciência, além de uma expressão do pensamento, de um conjunto metódico e bem arranjado de procedimentos e de uma linguagem é, também, uma crença, e por isso recorremos a esta noção num momento em que observamos construções de narrativas midiáticas e o uso exagerado e irresponsável das redes sociais (com vinculações de informações parciais, superficiais ou mesmo, claro, as agora conhecidas Fake News). 

Assim, a reificação, ou sacralização da ciência nos soa estranha quando o pensamento científico parece surgir como o “grande salvador da humanidade”. Claro que em relação ao combate ao vírus e à pandemia, bem como para outras tantas situações, pensamos que a humanidade não criou opções muito melhores. Nos preocupa, no entanto, a brecha que, por conta da crise humanitária que atravessamos, pode ser aberta para intensificar algo que já existe e para o qual a ciência foi muitas vezes utilizada sem parcimônia: sua capacidade de produzir hierarquias entre as áreas do conhecimento, mesmo entre aquelas consideradas científicas, como os contrastes que desigualam em status as “ciências do espírito” e as “ciências da natureza”, ou definindo o que é útil ou não para ser pesquisado. 

Mas a hierarquização dos conhecimentos não reside apenas dentro da ciência. Na verdade, o que mais tem chamado atenção é a produção de hierarquias na relação entre a ciência e outras formas de pensamento consideradas “não científicas”, “não acadêmicas” ou “não formais”. Nos referimos, portanto, ao que acontece “fora” dos muros dos laboratórios ou institutos de pesquisa que, como a antropologia sobretudo tem tentado mostrar, apenas atualiza uma hierarquia que é de ordem moral e social se pensarmos, por exemplo, quem são os detentores do conhecimento científico e quem são os detentores dos conhecimentos naturalísticos ou tradicionais. No caso de sociedades desiguais como a brasileira, infelizmente, como temos acompanhado em nossas pesquisas e etnografias sobre as políticas de reconhecimento de povos ou comunidades tradicionais, ou seja, grupos indígenas, quilombolas, extrativistas, pescadores artesanais, por exemplo – detentores dos tais conhecimentos “não científicos” – a tendência tem sido além do aprofundamento das desigualdades não só no que diz respeito ao status dos conhecimentos naturalísticos que elas detêm, mas também à sua exclusão ao acesso a direitos sociais básicos, além de outras violências e silenciamentos.

O que nós, cientistas ou não, não podemos fazer, é atualizar a falsa ideia, tanto positivista como iluminista, de que há algo como uma “evolução do pensamento humano”, de uma fase mais simples e tosca, para uma fase mais elaborada e sofisticada, de modo que as outras formas de pensamento serão dirimidas, assimiladas ou simplesmente, desaparecerão, como chegou-se a afirmar em séculos passados do suposto duelo entre Ciência e Religião.   

A despeito destas elaborações, estranhamentos e críticas não temos dúvida que devemos defender a ciência contra qualquer tipo de ataque que tente difamá-la, caluniá-la ou desacreditá-la em prol de um projeto de “produção de mundo” que tem como base a aniquilação da diferença, das controvérsias e da vida. Não devemos esquecer que praticar ciência também é um ato político do qual, nós cientistas, não podemos nos esquivar. A ciência não é neutra nunca e nem é objetiva sempre. Nós cientistas, não devemos ter medo de reconhecer estas características tão marcantes em nosso ofício. Cada vez que conseguimos reconhecer isso, estaremos dando passos importantes, como a antropologia tem tentado realizar, para o reconhecimento da pluralidade do pensamento humano expresso na diversidade de modos de vida ou de se “estar no mundo”. 

* El Hombre, controlador del universo - Diego Rivera - Disponível em: https://i2.wp.com/arteref.com/wp-content/uploads/2019/12/Diego-Rivera-El-hombre-controlador-del-universo.jpg?w=800&ssl=1  



[1] Texto originalmente publicado no Blog Ciência & Matemática do Jornal O Globo, republicado aqui com a autorização dos autores. Post original disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/pandemia-crise-politica-e-crise-do-conhecimento.html, acesso em 03 de ago. de 2021.


[2] José Colaço e Roberto Kant de Lima são, respectivamente, pesquisador e coordenador  do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC - www.ineac.uff.br).

 

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Débora volta às aulas*

 

Na noite da última quinta-feira, o site do Jornal Folha da Manhã noticiou a retomada das aulas presenciais em Campos dos Goytacazes. O secretário de Educação, Ciência e Tecnologia, Marcelo Feres, anunciou a retomada das aulas, em regime híbrido, “de 30% dos alunos em, no mínimo, 10% das escolas de educação infantil das redes municipal e privada a partir de 8 de março”. A proposta sugere ainda o retorno “presencial de 50% dos estudantes no final de março e o restante do alunado em abril”. O Sindicato dos Profissionais da Educação foi peremptoriamente contra a retomada e também foi peremptoriamente desconsiderado na tomada da decisão, afinal, “o município estaria embasado no aval da Secretaria Municipal de Saúde”.

Achei tudo muito interessante, sobretudo porque li essas notícias pouco depois de conversar com uma amiga sobre a retomada das atividades escolares. Na Antropologia valorizamos muito as histórias, pois é através delas que os eventos e fenômenos são registrados, transmitidos e interpretados. Como diria Wilhelm Schapp, estamos sempre envolvidos em histórias. E a história de Débora pode nos ajudar a pensar o retorno do ensino presencial. Ela é professora do ensino fundamental, em uma escola particular de classe média de uma cidade onde as escolas já estão funcionando em regime híbrido. Débora tem pouco mais de 30 anos e, como muita gente, sofreu de diferentes maneiras com os efeitos da pandemia. No carnaval, ela não buscou as aglomerações, mas acabou por marcar um encontro com sua amiga Daniele. Elas não se viam há tempos e aquele encontro era importante para que elas renovassem as energias. Elas iniciaram a cerimonia buscando preservar os “protocolos de segurança”, mas esses foram sendo paulatinamente abandonados à medida em que os copos de cerveja eram esvaziados. Ao final do sábado de carnaval, as duas já estavam dançando abraçadas no êxtase do reencontro.

Quis o destino que, poucos dias após aquele encontro, Daniele tropeçasse em uma calçada, lesionando o tornozelo. Ela procurou auxílio médico e ouviu que precisaria de uma cirurgia. De acordo com os protocolos hospitalares atuais, para a internação, Daniele precisou realizar exames para detectar se estava contaminada pelo coronavírus. O resultado foi positivo. Assintomática, Daniele telefonou para Débora para contar a história. Débora, por sua vez, achou de bom tom informar à Direção de sua escola que teve contato com pessoa que testou positivo para covid-19. A Diretora disse que não liberaria Débora das atividades presenciais se ela não apresentasse um exame com resultado positivo – e não disponibilizou o exame à professora. Débora, que não tem plano de saúde e não estava preparada para investir recursos próprios para custear o exame, retornará para o cuidado dos pequenos na próxima segunda, “seguindo todos os protocolos de segurança sanitária”.

É claro que é apenas uma história e que não podemos generalizar, não é mesmo? No entanto, quando pensamos no que foi narrado e na situação das escolas de Campos, muitas perguntas surgem. O retorno das atividades presenciais se dá em função do controle da pandemia ou de uma certa pressão das escolas particulares para reduzir suas perdas econômicas? Será que a Secretaria de Saúde possui legitimidade para impor sua opinião aos profissionais da Educação que conhecem o cotidiano e os bastidores das escolas da cidade? As condições arquitetônicas das escolas, sejam elas públicas ou particulares, garantem uma boa circulação do ar? Aqui vale destacar que parte substantiva das escolas de Campos funciona em casas que foram adaptadas para transformar quartos de dormir em salas de aula. Também me pergunto: como se dará a testagem dos atores envolvidos? Teremos testes para professores, estudantes e funcionários? Diária, semanal, mensal ou “nuncamente”? O que acontecerá quando um aluno tossir no fundo da sala? E se o porteiro testar positivo? Partiremos para o “novo normal” com a mesma estrutura do velho anormal, com aquele sistema de transporte baseado em vans, com as escolas sucateadas e com a segurança trazida pelos 10 leitos que a Prefeitura de Duque de Caxias nos emprestou?

É claro que o anúncio da retomada das atividades presenciais pode ter sido apenas um gesto para acalmar os ânimos de quem deseja/precisa que as aulas voltem ao normal; ou não. Muita água ainda vai passar debaixo das pontes do Rio Paraíba do Sul. Todavia, fica a impressão de que as decisões estão sendo tomadas por algo que difere da análise sistemática do contexto sanitário que vivemos. Destarte, “no ar que se respira, nos gestos mais banais”, as necessidades econômicas fazem seu trottoir.

 

 

Carlos Valpassos

Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.

 

* Publicado originalmente em 19 de Fevereiro de 2021 em http://www.folha1.com.br/artigos/2021/02/1270100-carlos-valpassos-debora-volta-as-aulas.html 

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

De máscara no queixo*

 

Janeiro de 2021 se encerra e nada indica que teremos um retorno à normalidade. Novas cepas do vírus já foram identificadas e uma delas, aparentemente oriunda de Manaus, parece querer nos mostrar os efeitos imediatos de ignorar o vírus e adotar um comportamento de normalidade. Não bastaram as mortes e as histórias trágicas derivadas do colapso do sistema de saúde manauara, ainda tivemos como efeito do descaso uma nova variante do coronavírus. Em função disso, diversos países fecharam suas fronteiras para viajantes brasileiros - e o governo brasileiro parece não se preocupar muito com isso.

As vacinas continuam a representar a única esperança de um lento retorno à normalidade, mas, dada a confusão promovida pelo Ministério da Saúde e por nossa diplomacia conflituosa, mesmo elas navegam em um oceano de incertezas. O que deveria ser uma vacinação em massa, anunciada pelo ministro da saúde como “a maior campanha de vacinação do mundo”, parece se arrastar na lentidão de um conta gotas. Todavia, a vacina existe e isso parece ser o suficiente para manter a esperança e negligenciar que o problema continua o mesmo – ou pior.

            Enquanto não voltamos ao normal, fingimos que tudo está normal – só que de máscara no queixo. A necessidade de preservar o funcionamento econômico associada ao desejo de negar a pandemia parece ter gerado efeitos deletérios. Em Campos, o vice-prefeito declarou que o sistema de saúde quase entrou em colapso. A informação não foi divulgada no calor do momento, mas serviu para fundamentar o fechamento do comércio da cidade por uma semana. Na sexta-feira daquela semana, um médico da Santa Casa de Misericórdia gravou um vídeo, que circulou por diferentes mídias sociais, em que ressaltava a sobrecarga de trabalho de sua equipe e a saturação do sistema e dos profissionais da saúde em Campos. Nada disso freou o ímpeto da Câmara dos Dirigentes Lojistas - que ignorou a OMS, o médico da Santa Casa, o sistema de transporte em vans da cidade, a arquitetura destituída de ventilação de inúmeras lojas e muitas outras coisas mais – para pressionar pela reabertura do comércio. Aquilo que deveria ser um intervalo de 7 dias, passou a ser um intervalo de 6 dias e explicitou a dificuldade na adoção de medidas de contenção da epidemia. É preciso frisar que, nesse ínterim, Campos passou a contar com mais 10 leitos de UTI, cedidos pela prefeitura de Duque de Caxias, e isso reduziu a porcentagem de ocupação dos leitos. Todavia, fica a pergunta: até quando isso será suficiente?

            Na escalada da crise pandêmica, notamos um discurso de negação dos fatos que chega a ser chocante. O efeito das notícias falsas propagadas por aplicativos de mensagem é sentido na contabilidade diária das vítimas de covid-19 e no desprezo pelas orientações de caráter científico. O presidente do Brasil já desprezou inúmeras vezes a capacidade destrutiva do vírus e até mesmo a eficácia da vacina. E diante disso é preciso simplificar a questão: quem é o presidente nessa fila do pão? Eu mesmo posso responder: um ex-militar mal sucedido na carreira, expulso por indisciplina e outras coisas mais; fez um curso de manutenção de máquinas de lavar roupas, mas ninguém nunca teve uma máquina consertada por ele – e mesmo assim ainda chegou a dizer que se trabalhasse com isso ganharia mais de dez mil reais mensais -; atuou por quase 30 anos como deputado, mas só aprovou dois projetos de leis. Resumidamente: nosso presidente é o tipo de pessoa que nunca bateu um prego em uma barra de sabão e que pode até ter ouvido o galo cantar, mas não sabe onde! É justamente esse sujeito, desprovido de conhecimento, de experiência e de qualquer tipo de formação técnica/científica que desqualifica o conhecimento científico e incentiva que as pessoas não adotem o distanciamento social.  E há quem ainda o chame de mito, mesmo depois de tudo que já se sabe, de tudo que ele já disse enquanto presidente, tudo que fez e tudo o que não fez.

            Vale lembrar que, em caso de contágio e internação, as pessoas não serão tratadas pelo “mito”. Ele não virá de Brasília ou da Barra da Tijuca para tratar alguém – ele não apenas não sabe fazer isso como também não se importa com tal tarefa. Caso o cidadão campista se contamine no comércio, ele não será atendido por ninguém da Câmara dos Dirigentes Lojistas, nem pelo Prefeito, muito menos pelo “mito”. Há grande chance de que ele seja atendido e tratado pelo médico cansado, de jaleco verde, que há uma semana gravava um vídeo pedindo para que a população permanecesse em casa, praticando o isolamento social. Não apenas aquele médico, mas muitos outros, assim como as diversas equipes de enfermagem. E a pior parte é que, enquanto essas pessoas exercem seu ofício no tratamento da saúde da população, elas podem se contaminar, adoecer e morrer; ou levar a doença para seus familiares ou amigos.

Todavia, pedir qualquer grau de solidariedade que demande algum nível de sacrifício, no Brasil, é coisa de esquerdista, não é mesmo? Aqui, o nacionalismo é para inglês ver, pois basta a primeira demanda para que ele se desmanche no ar. Temos mais de 220 mil pessoas mortas e continuamos a negar os efeitos da pandemia. Não procuramos soluções novas para enfrentar o problema, agimos como se ele não existisse, aceitamos as notícias que distorcem a realidade para justificar a manutenção de nossas rotinas e ambições. Seguimos. Seguimos sabe-se lá para onde, desdenhando a Ciência, ignorando o médico da Santa Casa, adiando o colapso da saúde com o empréstimo de 10 leitos e fazendo de conta que está tudo normal.

            Não se trata de ignorar as necessidades das pessoas ou de fazer alarde sobre um problema que não é tão grande assim. O que estou defendendo é que não sejamos cínicos e que não aceitemos discursos hipócritas. Nós enfrentamos a pior crise humanitária em mais de um século e, ao invés de pensarmos em alternativas, em soluções ou inovações, estamos aceitando a farsa do retorno à normalidade, ignorando que isso não resolverá o problema e que poderá, mais cedo ou mais tarde, atingir, direta ou indiretamente, cada um de nós.

 

           

 

Carlos Valpassos

Antropólogo – Universidade Federal Fluminense

 

* Publicado originalmente no Jornal Folha da Manhã, de Campos dos Goytacazes, em 30 de Janeiro de 2021.

 

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

2021: EUA, Brasil e Campos*

 

Processos sociais e fenômenos biológicos, como o coronavírus, podem até ser influenciados pelos calendários definidos pelos humanos, mas certamente a virada de um ano para outro não representa o arquivamento do que estava em andamento. Assim que o novo ano se apresentou, os desdobramentos de 2020 não tardaram a se manifestar. Nos Estados Unidos, em menos de uma semana em 2021, tivemos o evento que ficou conhecido como “Invasão do Capitólio” - quando apoiadores de Donald Trump entraram no Congresso estadunidense para contestar a derrota de seu líder nas eleições presidenciais. Cabe recordar que um discurso de Trump incitou o ato e que, além das cenas de balbúrdia em pleno templo da democracia, 5 pessoas morreram. Os desdobramentos disso ainda estão em curso, com a possibilidade de impeachment de Trump e de novos tumultos antes da posse do presidente eleito Joe Biden, marcada para o próximo dia 20. Todavia, já é certo afirmar que os eventos de 06 de janeiro entraram para História como uma mácula para o sistema democrático dos Estados Unidos e que os discursos e as posturas de Trump ali manifestaram um pouco de seu potencial destrutivo – poderia ter sido ainda mais grave.

            Enquanto a loucura vivenciada nos Estados Unidos era observada com pavor por quase todo o mundo, no Brasil tudo caminhava como em 2020, de tal modo que os eventos do Capitólio, se fossem aqui, poderiam ser confundidos com mais uma das aglomerações causadas por nosso presidente Bolsonaro – que, não por acaso, já foi chamado de “Trump dos trópicos”. Sem manifestar repúdio aos acontecimentos, o presidente limitou-se a declarar que, em 2022, algo ainda pior pode acontecer no Brasil caso não seja implementado um sistema de votos impressos. Obviamente que, tal como em 2020, o presidente continuou flutuando a 5 metros do solo da realidade e desconsiderou que as suspeitas de fraude nos EUA ocorreram justamente em um sistema eleitoral que faz uso de votos impressos.

            O recrudescimento do contágio pelo coronavírus, previsto e anunciado por inúmeros profissionais de epidemiologia como efeito das festas de final de ano, se confirmou. A cidade de Manaus, um dos locais mais intensamente atingidos durante a primeira onda, que chegou a ser considerada como um exemplo da suposta imunidade de rebanho, voltou a sofrer drasticamente com os efeitos da combinação entre pandemia e incompetência governamental. E nos últimos dias não faltaram relatos sobre hospitais superlotados, falta de leitos de UTI e, por fim, falta de cilindros de oxigênio. Enquanto isso, o presidente continua a insistir na cloroquina e a questionar as vacinas, afastando-se de qualquer responsabilidade.

            Em Campos, 2021 trouxe Wladimir Garotinho como prefeito. Depois de afirmar em campanha que os problemas da cidade eram decorrentes da falta de gestão de Rafael Diniz, pois havia dinheiro, Wladimir não demorou para declarar estado de calamidade pública, confirmando o que Rafael Diniz passou quatro anos repetindo. Em um ato prático e repleto de simbolismo, a gestão de Wladimir começou por realizar mutirões de limpeza, retirando toneladas de entulho da cidade. E se podemos dizer que Rafael Diniz passou parte substantiva de seu mandato tentando, sem êxito, resolver o problema do transporte público, podemos afirmar que ao menos as lotadas ilegais estavam controladas. Com Wladimir, em menos de 15 dias de governo, o problema do transporte público ainda não apresenta respostas e as lotadas voltaram como se nada tivesse acontecido. Enquanto isso, o Prefeito repete a fórmula de Rafael Diniz: culpa a antiga gestão por todos os problemas. A diferença é que, agora, a tomada de empréstimos está no horizonte. E mesmo que a sabedoria popular ensine que “ninguém tem uma segunda chance de causar uma primeira boa impressão”, ainda estamos em meados de janeiro e pode ser cedo para afirmar que “de onde menos se espera, daí é que não sai nada”.

 

 

Carlos Valpassos

Antropólogo – Universidade Federal Fluminense. 

 

* Texto originalmente Publicado no Jornal Folha da Manhã em 16 de Janeiro de 2021. Também publicado no Blog Opiniões do Jornal Folha da Manhã: https://opinioes.folha1.com.br/2021/01/17/abraao-eua-de-trump-brasil-de-bolsonaro-e-campos-de-wladimir/

terça-feira, 28 de julho de 2020

A encruzilhada imposta pelo bolsonarismo


A encruzilhada imposta pelo bolsonarismo[1]


Rodrigo Monteiro[2]


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Em novembro de 2018, ao término das eleições, já não era possível falar, como Dumbledore, em Harry Potter, que ‘tempos difíceis se aproximam’. Já estávamos nele desde 2015, 2016. Os céus só ficaram mais sombrios, dominados por comensais da morte, dementadores e com o país sendo ‘governado’ por “You Know Who”, ou “Aquele que não se deve dizer o nome”.


Sua eleição não é um fenômeno isolado nem simples, mas representou, entre outras, a ascensão de uma parcela da sociedade brasileira que sempre existiu e circulou entre nós e que foi duramente combatida até que se tornasse vitoriosa nesse tão distante ano de 2018.


A vitoriosa expressão máxima do “bandido bom é bandido morto”, “tá com pena, leva para casa”, “direitos humanos para humanos direitos” tinha, enfim, seu apogeu. Tolos e tolas acreditaram que o desprezo pela vida que “You Know Who” expressava ficaria contida aos pretos e pretas, aos pobres das periferias brasileiras, aos que não estavam na sua caixinha.


 Surpresos(?) descobriram e seguiram junto com seu inominável afirmando que ‘vai morrer quem tem que morrer’. O sentido da artilharia do mestre do terror não estava mais restrito aos de pele escura, ao público LGBTQ+ e tantos outros destinos de seu ódio e de seu projeto político de extermínio. O alvo agora se tornou difuso com os ‘que têm que morrer’. O alvo é universal, até que seja seu pai, sua mãe, seu filho, sua filha, seu tio, sua tia, ou mesmo você. Mas, como já disse Celso Rocha de Barros: ‘morto não vota’.


O projeto está claro e está em curso. A cada dia se torna mais insegura uma simples ida ao supermercado. A cada dia mais e mais pessoas estão portando um vírus ainda sem vacina, ainda sem curas farmacológicas, mas que poderia ser controlado, se o país adotasse, com razoabilidade, padrões e procedimentos que boa parte do mundo onde o genocídio não é a política pública em curso, acabaram por adotar e retornar com mais confiança às suas rotinas.


Ainda que de difícil detecção, sabe-se que um programa básico pode ser feito para controlar a disseminação da doença, reduzir mortes e fazer com que as atividades econômicas e sociais possam regressar com população mais segura para sentar em um bar ao fim da tarde para um chopp, um café, ou uma simples e essencial “conversa fora”.


Amigos e amigas podem ser portadores de algo que pode matar. “E daí?”. “Vai morrer quem tem que morrer”.


Nesse ritmo, turismo doméstico e internacional seguem comprometidos, bem como atividades educacionais, de lazer, cultura, entretenimento, enfim, toda a economia terá desempenhos débeis. Mas vai ‘morrer quem tem que morrer’. ‘E daí?’.


Negacionistas, bolsonaristas, dementadores e comensais da morte se espalham pelas cidades e junto com eles, vão um pequeno ser, tendo seu trabalho facilitado, espalhando doença, morte, medo, insegurança.


Nessa toada, estamos todos, e os ainda confinados, em uma profunda encruzilhada: resistir no distanciamento social às custas de saúde física e mental, ou correr riscos de entrar em um cômodo escuro com ratoeiras que podem custar vidas, saúde e planos futuros.


Aqueles que precisam da rua para o trabalho seguem expostos em cidades onde o vírus segue solto, fazendo seu trabalho e tendo parceiros raros de se ver pelo planeta.


O bolsonarismo e o negacionismo não são para amadores, colocam a todos sob risco de adoecer ou morrer, de fazer adoecer e de fazer morrer.


Nossa sociedade está oferecendo a resposta mais desumana, mais anti-sociedade que um coletivo humano pode oferecer a si mesmo: a morte de seus vulneráveis a um 'inimigo invisível'. O projeto de negação da sociedade se instala. Banalizamos e naturalizamos que três boeings 747 caiam por dia sob nossas cabeças.


Não há limites para o bolsonarismo e o negacionismo.


Ou há?





[1] Texto republicado com a autorização do autor. A publicação original pode ser conferida em: https://www.facebook.com/rodrigo.monteiro.5015/posts/10220839669214453, acesso em 28/07/2020.


[2] Dr. pelo Instituto de Medicina Social, UERJ. Professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da UFF-Campos, RJ e do PPGSP/IUPERJ. É autor, dentre outras produções, de “Torcer, lutar, ao inimigo massacrar: Raça Rubro Negra”, publicado pela editora da Fundação Getúlio Vargas.