terça-feira, 12 de outubro de 2021
terça-feira, 3 de agosto de 2021
Pandemia, Crise Política e Crise do Conhecimento?
Pandemia,
Crise Política e Crise do Conhecimento?[1]
José
Colaço e Roberto Kant de Lima[2]
O
discurso científico foi uma das primeiras coisas atacadas por autoridades
políticas nacionais e importantes personalidades públicas brasileiras, desde o
início da pandemia e pelas mais variadas razões. Esta atitude, como sabemos,
foi designada como “negacionismo”, uma vez que ela mobiliza a negação, a não
aceitação ou a rejeição de evidências basilares que até mesmo a ciência não
precisa de muito esforço para tentar explicar. Como, por exemplo, que temos um
novo e desconhecido vírus que se transmite pelo ar circulando por aí e
precisamos nos mobilizar, de alguma forma, para conter isso.
Nas
etnografias que realizamos sobre conhecimentos naturalísticos, ou seja, sobre
os conhecimentos que grupos sociais que estabelecem uma relação direta,
biográfica e umbilical com o meio ambiente natural possuem sobre diversos os
aspectos que o compõem, ficou evidente que estes conhecimentos quase nunca
adquirem status de conhecimento com “C” maiúsculo para pesquisadores
e/ou agentes de políticas públicas das áreas de oceanografia, biologia marinha,
geologia, agronomia, etc., o que implica obstaculizar seu reconhecimento
oficial, por parte do Estado, ou mesmo sua incorporação na implementação de
políticas de conservação ambiental, planos de manejo de áreas protegidas
etc.
Por
isso mesmo, se por um lado, tornou-se incômodo o ataque e a defesa
incondicional da ciência na atual conjuntura, por outro incomodou também
a forma como a classe média esclarecida começou a se relacionar com ciência
neste contexto. Com um discurso abertamente crítico ao atual Governo Federal,
sobretudo no que diz respeito à condução da maior crise sanitária que já
vivemos, parte considerável da grande mídia nacional iniciou uma campanha sem
precedentes, a favor da ciência e tudo aquilo que dela pode ser derivado, como
a vacina, os materiais de proteção, os protocolos sanitários, as pesquisas, os
especialistas, as tabelas, os números, as estatísticas e por aí vai. A verdade
é que não há um só dia que esta mesma mídia não exiba a fala de um
especialista, ou seja, de um cientista, ou de um médico, sobre o modo através
do qual a pandemia tem sido mal conduzida no Brasil. Nos expomos às elaborações
de vários especialistas, como se todos eles tivessem um conhecimento uniforme
sobre o vírus, o que misturou em sua maioria médicos – que têm a perspectiva do
tratamento da “doença” – com aqueles que procuram estudar e conhecer o vírus –
especialmente os virologistas e aqueles que têm suas especialidades na lida com
as epidemias e a saúde pública. Todas essas perspectivas diferenciadas de
abordagens de uma mesma pandemia produziu uma cacofonia de opiniões,
aparentemente discordantes, se não se distingue de onde elas partem.
A
voraz defesa da ciência, ou do pensamento científico, parece encenar uma
espécie de “iluminismo tardio”, anacrônico e superficial, em plena segunda
década do século XXI. Uma cruzada da racionalidade contra as trevas e o
obscurantismo que, nesta edição contemporânea, ganhou o nome, acertadamente, de
negacionismo. Essa narrativa do “iluminismo tardio” peca, no entanto, em não
conseguir se comunicar com um considerável estrato da população que nunca acreditou
ou vem sendo secular e sistematicamente excluída, por vários motivos, inclusive
educacionais, sobre a eficácia das práticas científicas. Tal narrativa soa, por
vezes, arrogante, e parece reificar a ciência como, ao fim e ao cabo, a única
forma de razoável “estar no mundo” castigado pela pandemia.
Tornamo-nos
pesquisadores em antropologia num período em que a disciplina já tinha “ido
para o divã”, em diversas ocasiões, para rever seu passado etnocentrista,
racista, colonial, machista, racionalista, hiper ocidentalizado etc. Isso não
significa que ela não seja isso, ou parte disso, ainda hoje. O que queremos
destacar aqui, no entanto, é que há uma atitude fundamental para o exercício,
não apenas da antropologia, mas da prática científica em geral. Estamos nos
referindo ao ceticismo. Na antropologia ficou charmoso, pelo menos no Brasil,
chamar ceticismo de “estranhamento”. Sem isso não há ciência, pois sem
ceticismo não há experimentação nem especulação.
Experimentação
e especulação são características apenas do chamado “pensamento científico”? A
ciência antropológica nos chamou a atenção de que todas as formas de pensamento
humano partem de um mesmo princípio que combina, entre outras operações,
a experimentação das coisas que habitam o mundo, sejam elas
seres invisíveis aos olhos humanos, tais como micro organismos ou espíritos,
e especulação sobre causas ou efeitos de fenômenos das mais
diversas naturezas. Basta que lembremos de um desses textos, a “Ciência do
Concreto”, capítulo do livro “O Pensamento Selvagem” de Claude
Lévi-Strauss.
Há
outro componente que deveríamos destacar brevemente aqui, que escapa a isso que
estamos chamando de reificação da ciência ou iluminismo tardio: a crença. A
identificação com a ciência está muito mais relacionada ao ajustamento a um
projeto de sociedade, com componentes morais, valorativos e práticos do que a
sua real capacidade de resolver nossos problemas enquanto sociedade.
“Acreditamos” na ciência e na tecnologia menos por seus resultados e mais,
porque, naquilo que os sociólogos chamam (ou chamavam) de modernidade, parte
considerável da sociedade sucumbiu aos chamados Sistemas Peritos, como tentou
definir, já há alguns anos, Anthony Giddens. Sempre que pensamos em nossa relação
com a ciência e com a técnica, é interessante lembrar exemplo do avião: não precisamos
conhecer como um avião funciona, não precisamos entender de engenharia
aeronáutica, não precisamos saber pilotar um avião, não precisamos saber em
detalhes as condições atmosféricas durante um voo para sabermos que o avião é o
meio de transporte mais seguro que a humanidade já produziu e, ao mesmo tempo,
não aceitar esta condição e ter “medo de avião” é considerado, geralmente, algo
infantil ou irracional.
Se
a noção de Sistemas Peritos aqui grosseiramente resumida é controversa na
teoria social de hoje, de todo modo podemos admitir que a ciência, além de uma
expressão do pensamento, de um conjunto metódico e bem arranjado de
procedimentos e de uma linguagem é, também, uma crença, e por isso recorremos a
esta noção num momento em que observamos construções de narrativas midiáticas e
o uso exagerado e irresponsável das redes sociais (com vinculações de
informações parciais, superficiais ou mesmo, claro, as agora conhecidas Fake
News).
Assim,
a reificação, ou sacralização da ciência nos soa estranha quando o pensamento
científico parece surgir como o “grande salvador da humanidade”. Claro que em
relação ao combate ao vírus e à pandemia, bem como para outras tantas
situações, pensamos que a humanidade não criou opções muito melhores. Nos
preocupa, no entanto, a brecha que, por conta da crise humanitária que
atravessamos, pode ser aberta para intensificar algo que já existe e para o
qual a ciência foi muitas vezes utilizada sem parcimônia: sua capacidade de
produzir hierarquias entre as áreas do conhecimento, mesmo entre aquelas
consideradas científicas, como os contrastes que desigualam em status as
“ciências do espírito” e as “ciências da natureza”, ou definindo o que é útil
ou não para ser pesquisado.
Mas
a hierarquização dos conhecimentos não reside apenas dentro da ciência. Na
verdade, o que mais tem chamado atenção é a produção de hierarquias na relação
entre a ciência e outras formas de pensamento consideradas “não científicas”,
“não acadêmicas” ou “não formais”. Nos referimos, portanto, ao que acontece
“fora” dos muros dos laboratórios ou institutos de pesquisa que, como a
antropologia sobretudo tem tentado mostrar, apenas atualiza uma hierarquia que
é de ordem moral e social se pensarmos, por exemplo, quem são os detentores do
conhecimento científico e quem são os detentores dos conhecimentos
naturalísticos ou tradicionais. No caso de sociedades desiguais como a
brasileira, infelizmente, como temos acompanhado em nossas pesquisas e
etnografias sobre as políticas de reconhecimento de povos ou comunidades
tradicionais, ou seja, grupos indígenas, quilombolas, extrativistas, pescadores
artesanais, por exemplo – detentores dos tais conhecimentos “não científicos” –
a tendência tem sido além do aprofundamento das desigualdades não só no que diz
respeito ao status dos conhecimentos naturalísticos que elas detêm, mas também
à sua exclusão ao acesso a direitos sociais básicos, além de outras violências
e silenciamentos.
O
que nós, cientistas ou não, não podemos fazer, é atualizar a falsa ideia, tanto
positivista como iluminista, de que há algo como uma “evolução do pensamento
humano”, de uma fase mais simples e tosca, para uma fase mais elaborada e
sofisticada, de modo que as outras formas de pensamento serão dirimidas,
assimiladas ou simplesmente, desaparecerão, como chegou-se a afirmar em séculos
passados do suposto duelo entre Ciência e Religião.
A
despeito destas elaborações, estranhamentos e críticas não temos dúvida que
devemos defender a ciência contra qualquer tipo de ataque que tente difamá-la,
caluniá-la ou desacreditá-la em prol de um projeto de “produção de mundo” que
tem como base a aniquilação da diferença, das controvérsias e da vida. Não
devemos esquecer que praticar ciência também é um ato político do qual, nós cientistas,
não podemos nos esquivar. A ciência não é neutra nunca e nem é objetiva sempre.
Nós cientistas, não devemos ter medo de reconhecer estas características tão
marcantes em nosso ofício. Cada vez que conseguimos reconhecer isso, estaremos
dando passos importantes, como a antropologia tem tentado realizar, para o
reconhecimento da pluralidade do pensamento humano expresso na diversidade de
modos de vida ou de se “estar no mundo”.
* El Hombre, controlador del universo - Diego Rivera - Disponível em: https://i2.wp.com/arteref.com/wp-content/uploads/2019/12/Diego-Rivera-El-hombre-controlador-del-universo.jpg?w=800&ssl=1
[1] Texto
originalmente publicado no Blog Ciência & Matemática do
Jornal O Globo, republicado aqui com a autorização dos autores. Post original
disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/pandemia-crise-politica-e-crise-do-conhecimento.html,
acesso em 03 de ago. de 2021.
[2] José Colaço e Roberto Kant de
Lima são, respectivamente, pesquisador e coordenador do Instituto
Nacional de Ciência e Tecnologia - Instituto de Estudos Comparados em
Administração de Conflitos (INCT-InEAC - www.ineac.uff.br).
domingo, 21 de fevereiro de 2021
Débora volta às aulas*
Na noite da última quinta-feira, o site do Jornal Folha da Manhã noticiou a retomada das aulas presenciais em Campos dos Goytacazes. O secretário de Educação, Ciência e Tecnologia, Marcelo Feres, anunciou a retomada das aulas, em regime híbrido, “de 30% dos alunos em, no mínimo, 10% das escolas de educação infantil das redes municipal e privada a partir de 8 de março”. A proposta sugere ainda o retorno “presencial de 50% dos estudantes no final de março e o restante do alunado em abril”. O Sindicato dos Profissionais da Educação foi peremptoriamente contra a retomada e também foi peremptoriamente desconsiderado na tomada da decisão, afinal, “o município estaria embasado no aval da Secretaria Municipal de Saúde”.
Achei tudo muito interessante, sobretudo porque li essas notícias pouco depois de conversar com uma amiga sobre a retomada das atividades escolares. Na Antropologia valorizamos muito as histórias, pois é através delas que os eventos e fenômenos são registrados, transmitidos e interpretados. Como diria Wilhelm Schapp, estamos sempre envolvidos em histórias. E a história de Débora pode nos ajudar a pensar o retorno do ensino presencial. Ela é professora do ensino fundamental, em uma escola particular de classe média de uma cidade onde as escolas já estão funcionando em regime híbrido. Débora tem pouco mais de 30 anos e, como muita gente, sofreu de diferentes maneiras com os efeitos da pandemia. No carnaval, ela não buscou as aglomerações, mas acabou por marcar um encontro com sua amiga Daniele. Elas não se viam há tempos e aquele encontro era importante para que elas renovassem as energias. Elas iniciaram a cerimonia buscando preservar os “protocolos de segurança”, mas esses foram sendo paulatinamente abandonados à medida em que os copos de cerveja eram esvaziados. Ao final do sábado de carnaval, as duas já estavam dançando abraçadas no êxtase do reencontro.
Quis o destino que, poucos dias após aquele encontro, Daniele tropeçasse em uma calçada, lesionando o tornozelo. Ela procurou auxílio médico e ouviu que precisaria de uma cirurgia. De acordo com os protocolos hospitalares atuais, para a internação, Daniele precisou realizar exames para detectar se estava contaminada pelo coronavírus. O resultado foi positivo. Assintomática, Daniele telefonou para Débora para contar a história. Débora, por sua vez, achou de bom tom informar à Direção de sua escola que teve contato com pessoa que testou positivo para covid-19. A Diretora disse que não liberaria Débora das atividades presenciais se ela não apresentasse um exame com resultado positivo – e não disponibilizou o exame à professora. Débora, que não tem plano de saúde e não estava preparada para investir recursos próprios para custear o exame, retornará para o cuidado dos pequenos na próxima segunda, “seguindo todos os protocolos de segurança sanitária”.
É claro que é apenas uma história e que não podemos generalizar, não é mesmo? No entanto, quando pensamos no que foi narrado e na situação das escolas de Campos, muitas perguntas surgem. O retorno das atividades presenciais se dá em função do controle da pandemia ou de uma certa pressão das escolas particulares para reduzir suas perdas econômicas? Será que a Secretaria de Saúde possui legitimidade para impor sua opinião aos profissionais da Educação que conhecem o cotidiano e os bastidores das escolas da cidade? As condições arquitetônicas das escolas, sejam elas públicas ou particulares, garantem uma boa circulação do ar? Aqui vale destacar que parte substantiva das escolas de Campos funciona em casas que foram adaptadas para transformar quartos de dormir em salas de aula. Também me pergunto: como se dará a testagem dos atores envolvidos? Teremos testes para professores, estudantes e funcionários? Diária, semanal, mensal ou “nuncamente”? O que acontecerá quando um aluno tossir no fundo da sala? E se o porteiro testar positivo? Partiremos para o “novo normal” com a mesma estrutura do velho anormal, com aquele sistema de transporte baseado em vans, com as escolas sucateadas e com a segurança trazida pelos 10 leitos que a Prefeitura de Duque de Caxias nos emprestou?
É claro que o anúncio da retomada das atividades presenciais pode ter sido apenas um gesto para acalmar os ânimos de quem deseja/precisa que as aulas voltem ao normal; ou não. Muita água ainda vai passar debaixo das pontes do Rio Paraíba do Sul. Todavia, fica a impressão de que as decisões estão sendo tomadas por algo que difere da análise sistemática do contexto sanitário que vivemos. Destarte, “no ar que se respira, nos gestos mais banais”, as necessidades econômicas fazem seu trottoir.
Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.
* Publicado originalmente em 19 de Fevereiro de 2021 em http://www.folha1.com.br/artigos/2021/02/1270100-carlos-valpassos-debora-volta-as-aulas.html
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021
De máscara no queixo*
Janeiro de 2021 se encerra e nada indica que teremos um retorno à normalidade. Novas cepas do vírus já foram identificadas e uma delas, aparentemente oriunda de Manaus, parece querer nos mostrar os efeitos imediatos de ignorar o vírus e adotar um comportamento de normalidade. Não bastaram as mortes e as histórias trágicas derivadas do colapso do sistema de saúde manauara, ainda tivemos como efeito do descaso uma nova variante do coronavírus. Em função disso, diversos países fecharam suas fronteiras para viajantes brasileiros - e o governo brasileiro parece não se preocupar muito com isso.
As vacinas continuam a representar a única esperança de um lento retorno à normalidade, mas, dada a confusão promovida pelo Ministério da Saúde e por nossa diplomacia conflituosa, mesmo elas navegam em um oceano de incertezas. O que deveria ser uma vacinação em massa, anunciada pelo ministro da saúde como “a maior campanha de vacinação do mundo”, parece se arrastar na lentidão de um conta gotas. Todavia, a vacina existe e isso parece ser o suficiente para manter a esperança e negligenciar que o problema continua o mesmo – ou pior.
Enquanto não voltamos ao normal, fingimos que tudo está normal – só que de máscara no queixo. A necessidade de preservar o funcionamento econômico associada ao desejo de negar a pandemia parece ter gerado efeitos deletérios. Em Campos, o vice-prefeito declarou que o sistema de saúde quase entrou em colapso. A informação não foi divulgada no calor do momento, mas serviu para fundamentar o fechamento do comércio da cidade por uma semana. Na sexta-feira daquela semana, um médico da Santa Casa de Misericórdia gravou um vídeo, que circulou por diferentes mídias sociais, em que ressaltava a sobrecarga de trabalho de sua equipe e a saturação do sistema e dos profissionais da saúde em Campos. Nada disso freou o ímpeto da Câmara dos Dirigentes Lojistas - que ignorou a OMS, o médico da Santa Casa, o sistema de transporte em vans da cidade, a arquitetura destituída de ventilação de inúmeras lojas e muitas outras coisas mais – para pressionar pela reabertura do comércio. Aquilo que deveria ser um intervalo de 7 dias, passou a ser um intervalo de 6 dias e explicitou a dificuldade na adoção de medidas de contenção da epidemia. É preciso frisar que, nesse ínterim, Campos passou a contar com mais 10 leitos de UTI, cedidos pela prefeitura de Duque de Caxias, e isso reduziu a porcentagem de ocupação dos leitos. Todavia, fica a pergunta: até quando isso será suficiente?
Na escalada da crise pandêmica, notamos um discurso de negação dos fatos que chega a ser chocante. O efeito das notícias falsas propagadas por aplicativos de mensagem é sentido na contabilidade diária das vítimas de covid-19 e no desprezo pelas orientações de caráter científico. O presidente do Brasil já desprezou inúmeras vezes a capacidade destrutiva do vírus e até mesmo a eficácia da vacina. E diante disso é preciso simplificar a questão: quem é o presidente nessa fila do pão? Eu mesmo posso responder: um ex-militar mal sucedido na carreira, expulso por indisciplina e outras coisas mais; fez um curso de manutenção de máquinas de lavar roupas, mas ninguém nunca teve uma máquina consertada por ele – e mesmo assim ainda chegou a dizer que se trabalhasse com isso ganharia mais de dez mil reais mensais -; atuou por quase 30 anos como deputado, mas só aprovou dois projetos de leis. Resumidamente: nosso presidente é o tipo de pessoa que nunca bateu um prego em uma barra de sabão e que pode até ter ouvido o galo cantar, mas não sabe onde! É justamente esse sujeito, desprovido de conhecimento, de experiência e de qualquer tipo de formação técnica/científica que desqualifica o conhecimento científico e incentiva que as pessoas não adotem o distanciamento social. E há quem ainda o chame de mito, mesmo depois de tudo que já se sabe, de tudo que ele já disse enquanto presidente, tudo que fez e tudo o que não fez.
Vale lembrar que, em caso de contágio e internação, as pessoas não serão tratadas pelo “mito”. Ele não virá de Brasília ou da Barra da Tijuca para tratar alguém – ele não apenas não sabe fazer isso como também não se importa com tal tarefa. Caso o cidadão campista se contamine no comércio, ele não será atendido por ninguém da Câmara dos Dirigentes Lojistas, nem pelo Prefeito, muito menos pelo “mito”. Há grande chance de que ele seja atendido e tratado pelo médico cansado, de jaleco verde, que há uma semana gravava um vídeo pedindo para que a população permanecesse em casa, praticando o isolamento social. Não apenas aquele médico, mas muitos outros, assim como as diversas equipes de enfermagem. E a pior parte é que, enquanto essas pessoas exercem seu ofício no tratamento da saúde da população, elas podem se contaminar, adoecer e morrer; ou levar a doença para seus familiares ou amigos.
Todavia, pedir qualquer grau de solidariedade que demande algum nível de sacrifício, no Brasil, é coisa de esquerdista, não é mesmo? Aqui, o nacionalismo é para inglês ver, pois basta a primeira demanda para que ele se desmanche no ar. Temos mais de 220 mil pessoas mortas e continuamos a negar os efeitos da pandemia. Não procuramos soluções novas para enfrentar o problema, agimos como se ele não existisse, aceitamos as notícias que distorcem a realidade para justificar a manutenção de nossas rotinas e ambições. Seguimos. Seguimos sabe-se lá para onde, desdenhando a Ciência, ignorando o médico da Santa Casa, adiando o colapso da saúde com o empréstimo de 10 leitos e fazendo de conta que está tudo normal.
Não se trata de ignorar as necessidades das pessoas ou de fazer alarde sobre um problema que não é tão grande assim. O que estou defendendo é que não sejamos cínicos e que não aceitemos discursos hipócritas. Nós enfrentamos a pior crise humanitária em mais de um século e, ao invés de pensarmos em alternativas, em soluções ou inovações, estamos aceitando a farsa do retorno à normalidade, ignorando que isso não resolverá o problema e que poderá, mais cedo ou mais tarde, atingir, direta ou indiretamente, cada um de nós.
Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.
* Publicado originalmente no Jornal Folha da Manhã, de Campos dos Goytacazes, em 30 de Janeiro de 2021.
terça-feira, 19 de janeiro de 2021
2021: EUA, Brasil e Campos*
Processos sociais e fenômenos biológicos, como o coronavírus, podem até ser influenciados pelos calendários definidos pelos humanos, mas certamente a virada de um ano para outro não representa o arquivamento do que estava em andamento. Assim que o novo ano se apresentou, os desdobramentos de 2020 não tardaram a se manifestar. Nos Estados Unidos, em menos de uma semana em 2021, tivemos o evento que ficou conhecido como “Invasão do Capitólio” - quando apoiadores de Donald Trump entraram no Congresso estadunidense para contestar a derrota de seu líder nas eleições presidenciais. Cabe recordar que um discurso de Trump incitou o ato e que, além das cenas de balbúrdia em pleno templo da democracia, 5 pessoas morreram. Os desdobramentos disso ainda estão em curso, com a possibilidade de impeachment de Trump e de novos tumultos antes da posse do presidente eleito Joe Biden, marcada para o próximo dia 20. Todavia, já é certo afirmar que os eventos de 06 de janeiro entraram para História como uma mácula para o sistema democrático dos Estados Unidos e que os discursos e as posturas de Trump ali manifestaram um pouco de seu potencial destrutivo – poderia ter sido ainda mais grave.
Enquanto a loucura vivenciada nos Estados Unidos era observada com pavor por quase todo o mundo, no Brasil tudo caminhava como em 2020, de tal modo que os eventos do Capitólio, se fossem aqui, poderiam ser confundidos com mais uma das aglomerações causadas por nosso presidente Bolsonaro – que, não por acaso, já foi chamado de “Trump dos trópicos”. Sem manifestar repúdio aos acontecimentos, o presidente limitou-se a declarar que, em 2022, algo ainda pior pode acontecer no Brasil caso não seja implementado um sistema de votos impressos. Obviamente que, tal como em 2020, o presidente continuou flutuando a 5 metros do solo da realidade e desconsiderou que as suspeitas de fraude nos EUA ocorreram justamente em um sistema eleitoral que faz uso de votos impressos.
O recrudescimento do contágio pelo coronavírus, previsto e anunciado por inúmeros profissionais de epidemiologia como efeito das festas de final de ano, se confirmou. A cidade de Manaus, um dos locais mais intensamente atingidos durante a primeira onda, que chegou a ser considerada como um exemplo da suposta imunidade de rebanho, voltou a sofrer drasticamente com os efeitos da combinação entre pandemia e incompetência governamental. E nos últimos dias não faltaram relatos sobre hospitais superlotados, falta de leitos de UTI e, por fim, falta de cilindros de oxigênio. Enquanto isso, o presidente continua a insistir na cloroquina e a questionar as vacinas, afastando-se de qualquer responsabilidade.
Em Campos, 2021 trouxe Wladimir Garotinho como prefeito. Depois de afirmar em campanha que os problemas da cidade eram decorrentes da falta de gestão de Rafael Diniz, pois havia dinheiro, Wladimir não demorou para declarar estado de calamidade pública, confirmando o que Rafael Diniz passou quatro anos repetindo. Em um ato prático e repleto de simbolismo, a gestão de Wladimir começou por realizar mutirões de limpeza, retirando toneladas de entulho da cidade. E se podemos dizer que Rafael Diniz passou parte substantiva de seu mandato tentando, sem êxito, resolver o problema do transporte público, podemos afirmar que ao menos as lotadas ilegais estavam controladas. Com Wladimir, em menos de 15 dias de governo, o problema do transporte público ainda não apresenta respostas e as lotadas voltaram como se nada tivesse acontecido. Enquanto isso, o Prefeito repete a fórmula de Rafael Diniz: culpa a antiga gestão por todos os problemas. A diferença é que, agora, a tomada de empréstimos está no horizonte. E mesmo que a sabedoria popular ensine que “ninguém tem uma segunda chance de causar uma primeira boa impressão”, ainda estamos em meados de janeiro e pode ser cedo para afirmar que “de onde menos se espera, daí é que não sai nada”.
Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.
* Texto originalmente Publicado no Jornal Folha da Manhã em 16 de Janeiro de 2021. Também publicado no Blog Opiniões do Jornal Folha da Manhã: https://opinioes.folha1.com.br/2021/01/17/abraao-eua-de-trump-brasil-de-bolsonaro-e-campos-de-wladimir/