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quinta-feira, 16 de maio de 2019

As faces da fé e as formas de luta



As faces da fé e as formas de luta

Por Luciane Soares da Silva*

São 22 horas do dia 15 de maio. Quando os dias adquirem um significado histórico, nascimentos, mortes e batizados são contados como caso incomum. “Nasceu no início da guerra”, “Foi batizado no primeiro dia do novo século”.

Pois então, no dia em que levantamos o povo e a juventude na cidade das usinas, conheço um casal, de perto da Favela da Linha, que vem com um carrinho de transporte manual até o Horto para buscar um armário desmontado. Ela, desempregada, ganhava dinheiro dormindo nas filas de hospital. Ele, desempregado, era ajudante de pedreiro. Perderam tudo em uma chuva e as roupas dos três filhos estão em sacos de lixo.

Não sou especialmente religiosa, mas desde que passei a pesquisar situações como esta, algo acende meu coração. E hoje isto ocorreu. Ele muito calado, como é próprio daqueles a quem Lamento Sertanejo toca, pouco disse. Ela, após pedir água e explicar sua situação, caminhou em minha direção, deu-me um abraço muito apertado e disse “Fique com Jesus”.

Eu me lembro de, em algum momento, ter pensado sobre as formas da fé. A fé na ciência, a fé em Deus, a fé no amor. E, entre tantos mistérios, sempre fui dominada pelo interesse nesta fé que Gilberto Gil descreve ao falar das procissões, que unem pessoas crentes nas coisas lá do céu.

Como se pode distribuir o que não se tem e nesta distribuição agraciar quem nunca soube o que é falta? Que tipo de generosidade resiste à miséria e à violência e sobrevive às enchentes e às humilhações, permanecendo o coração fiel ao ato da dádiva?

Campos, a cidade da riqueza represada, a cidade da pobreza silenciosa, é como as procissões cantadas por Gil. No silêncio daquele carrinho no meio da rua, cambiando entre os dois lados de uma quarta-feira, eles sumiram.

E eu voltei à morte de Trotsky e encontrei uma carta de seu amigo Adolf Joffe. Reproduzo aqui um parágrafo e espero que a leiam um dia na íntegra:

[…] se tem como eu, fé no progresso, pode-se muito bem conceber que, mesmo em caso de perdição de nosso planeta, a humanidade encontre os meios de habitar outros mais jovens e prolongue por conseguinte sua existência; e então, tudo que for feito em seu bem em nosso tempo se refletirá também nos séculos longínquos, quer dizer dará a nossa existência a única significação possível.

Até o dia 14, convoco todos a agir por estas estranhas formas de fé. Se há séculos elas têm mantido a humanidade aquecida, não é hora de esmorecer.

* Socióloga. Professora Associada à Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), Chefe do Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do Estado (LESCE/CCH/UENF) e Presidenta da Associação de Docentes da UENF (ADUENF). 

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Ives Gandra: arauto da regressão histórica

Por Paulo Sérgio Ribeiro
                
Não, a história não anda para trás e toda e qualquer tentativa de desmenti-lo tropeça no ridículo. Dito isso, “regressão histórica” é mero recurso heurístico para abordar o trade-off reforma trabalhista/direitos individuais apregoado por Ives Gandra Martins Filho, presidente do Superior Tribunal do Trabalho (TST), órgão da Justiça Federal cuja missão institucional, em tese, seria a tutela do direito ao trabalho como princípio fundamental. "Nunca vou conseguir combater desemprego só aumentando direito" *, diz o ministro, justificando, na reforma trabalhista que entrará em vigor em 11 de novembro, a indenização por dano moral com valor proporcional ao salário do trabalhador. Na visão do jurista, reparar um dano à personalidade nas relações de trabalho prescinde dessa perfumaria que a modernidade esculpiu sob o nome de igualdade. O critério é, digamos, censitário: a dignidade da pessoa humana vale o que o mercado diz que vale. Tomo, uma vez mais, as palavras do jurista para exemplificar o que soa à primeira leitura inacreditável:

"Não é possível dar a uma pessoa que recebia um salário mínimo o mesmo tratamento, no pagamento por dano moral, que dou para quem recebe salário de R$ 50 mil. É como se o fulano tivesse ganhado na loteria" *.

Ganhar na loteria seria um acaso e não fruto do esforço, insinua Gandra em acolhimento ao liberalismo mais pedestre, típico dos que evocam a meritocracia para sequestrar do debate público as pautas relativas à questão social. De todo modo, considerando a reforma trabalhista como uma das injunções da ditadura civil que se instala no país exigindo cada vez mais esforços de mistificação dos seus vencedores, cabe não se dar por vencido no embate de ideias. Aqui, podemos voltar ao termo “regressão” enquanto uma espécie de revivalismo sociopata do século 19, quando os direitos de cidadania eram, no alvorecer da Revolução Industrial, tão somente a afirmação dos direitos civis do homem adulto de empreender a si mesmo, por sua conta e risco, na sociedade de mercado, limitando-se o poder estatal à manutenção da ordem legal dos contratos – feitos agora à imagem e semelhança do capitalista brasileiro ávido em inverter os polos da relação capital-trabalho, inaugurando, com um pé na economia real e outro no rentismo, o princípio protetivo do empregador – e da segurança pública.

Ora, se a situação de quase pleno emprego da última década ocorreu sem prejuízo da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), Gandra nada mais faz do que expor a condução política errática – ao menos, do ponto de vista de quem não dissocia o direito ao trabalho de um desenvolvimento autossustentado – de um governo ilegítimo cuja propaganda oficial alardeia a “retomada do crescimento”. Mas não se trata apenas de arbítrio senão de um ato de fé. Detendo-se o controle na alocação dos recursos de poder, o que impediria de empregá-los segundo a ideia de justiça social na qual se acredita? No caso em tela, estaríamos diante de uma decisão movida pela “ética da convicção”, que não tem outro fim senão o de manter e reforçar a própria convicção, já que a reforma trabalhista, nos termos da Lei 13.467/2017, é simplesmente impraticável.

No entanto, independente da justificativa que se queira atribuir a uma ideia ultraliberal de justiça social, a implantação da reforma trabalhista depara-se, inevitavelmente, com os paradoxos da política de que fala Weber, pois não seria menos razoável apoiar-se na “ética da responsabilidade”, que, na atual conjuntura, implicaria a auditoria da dívida pública - verdadeira sangria do orçamento da União - como contrapartida das medidas de racionalização do gasto público alardeadas como solução de todos os males. 

Weber asseverou que tais paradoxos confirmam a tensão entre esses dois princípios éticos, jamais vividos em separado pelo homem de “vocação política” cujo exercício só é reconhecível na medida em que jamais se alcança o possível sem se tentar o impossível. Além de empregos, tudo o que mais nos falta no momento é a vocação política de que nos fala o mais contemporâneo de nossos clássicos nas ciências sociais, notadamente quando a ordem do dia convida a enxergar com ousadia outro horizonte da ação: o restabelecimento da receita pública sem nenhum direito a menos para os trabalhadores do campo e da cidade.

* Jornal Folha de S. Paulo, 06/11/17.

Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/11/1933111-e-preciso-flexibilizar-direitos-sociais-para-haver-emprego-diz-chefe-do-tst.shtml

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Desemprego ampliado

Desemprego ampliado*

George Gomes Coutinho **

Índices são construções de agências, instituições e pesquisadores que tem por objetivo traçar um diagnóstico sobre determinado fenômeno ou simplesmente permitem operacionalizar um conceito abstrato. Almejam mensurar um ou outro. Usualmente são aplicados em diversos momentos em uma trajetória temporal/histórica, o que permite a possibilidade da comparação de um ano ou mês X com ano ou mês Y. São ainda mais interessantes quando há dados que permitem sua aplicação em diferentes nações, algo que igualmente incentiva o exercício comparativo.

Um índice de qualidade permite diversas aplicações e os considero tanto melhores, para além do já exposto, quando agregam variáveis que realmente importam e não escamoteiam o que pretendem mensurar. É o caso do índice de desemprego ampliado publicado pelo Banco Credit Suisse, cuja sede é em Zurique/Suíça. Os dados do último trimestre de 2016 colocam o Brasil na sexta posição dentre os países analisados. O primeiro lugar do ranking está com a Grécia, justamente o país que implementou ao pé da letra as medidas recessivas que vêm aplicando por aqui.

A taxa de desemprego ampliado brasileira é, no período, de 21,6%. Para o IBGE a taxa de “desocupação” está em 12%.  Portanto, os números do Credit Suisse são quase o dobro dos apresentados pelo IBGE.

Cabe notar que o índice aplicado pelo Credit Suisse condensa o seguinte conjunto de elementos: 1) considera os que procuram uma vaga no mercado de trabalho e não encontram; 2) inclui os que desistiram de procurar uma vaga por se sentirem desalentados com a conjuntura; 3) agrega todos os que estão subutilizando sua força de trabalho fazendo os famosos “bicos”.

Em termos numéricos, 23 milhões de pessoas da força de trabalho nacional encontram-se na situação descrita em uma conjuntura política conservadora onde medidas de precarização da relação patrão X empregado tem sido alardeadas como possíveis soluções milagrosas. Desconheço encaminhamento mais covarde. Só irão aprofundar o desemprego ampliado.

* Texto publicado no Jornal Folha da Manhã em 04 de fevereiro de 2017


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes